24/04/2021

Córdova por volta do ano mil

O líder político e militar Almançor desperta uma guerra santa que estivera adormecida durante mais de meio século, para se legitimar no poder e fazer esquecer que é um usurpador. Para que não existam dúvidas do seu fervor religioso, demonstra publicamente uma piedade irrepreensível. Recopia com o seu punho um Corão que costuma levar consigo em campanha. Ignora-se se o decora para fazer jus ao título de «hâfiz» (bela memória). Aparece também, vestido de luto, a participar numa oração implorando por chuva. Ordena, em 988, a ampliação da Grande Mesquita de Córdova. Das obras são incumbidos os prisioneiros cristãos, que erguem oito novas naves laterais. Com a sua floresta de mil colunas, em mármore, jaspe e pórfiro, os seus 19 portais, o pátio das abluções e os seus 200 castiçais, com o seu «mirhab», o tabernáculo revestido de ouro e mosaicos trabalhados à maneira de Bizâncio, o púlpito constituído por 37 pequenos painéis em marfim e madeiras preciosas, a mesquita é, então, o mais belo templo muçulmano do mundo.

Para cristãos e judeus, al-Andaluz continua a ser a terra de tolerância que sempre foi, e isto numa época em que nenhum muçulmano pode estavelmente fixar-se na Ibéria católica. À chegada, os conquistadores haviam encontrado uma Espanha na maior parte pagã, onde o cristianismo ainda não ganhara raízes fortes, e os judeus sofriam as perseguições dos visigodos. Todos acolheram bem os recém-chegados - servindo-lhes, nalguns casos, de batedores até Toledo -, que não tinham intenção de os forçar a converter-se. A maioria dos hispânicos adotará o islão; os cristãos não convertidos aceitarão os costumes e a língua árabes. Apesar de ser praticamente impossível construir novas igrejas, e de a apostasia ser punida com a pena de morte, cristãos e judeus gozam de total liberdade de culto, mediante o cumprimento de certas obrigações e o pagamento de impostos especiais associados ao estatuto de «dhimmis» (contribuintes).

No coração do país mais urbanizado da Europa, a Córdova de Almançor alberga perto de 200 mil habitantes, tantos quantos o Cairo e dez vezes mais que os de Paris. Em população, só Bagdad e Constantinopla a precedem. São às centenas as escolas e colégios, onde se aplica a palavra do Profeta: «A tinta do aluno é mais sagrada do que o sangue do mártir.» É capital do conhecimento, colmeia de eruditos, juristas, médicos, sábios e poetas, «tão numerosos», diz um cronista, «como as areias do oceano». Em campanha, Almançor chega a fazer-se acompanhar por 40 poetas de corte. O seu reinado preserva o esplendor cultural de al-Andaluz, que atingirá o apogeu, após a abolição do califado, nos 26 pequenos Estados nascidos da sua pulverização. Assiste-se ao progresso da ciência «árabe», que durante muito tempo terá um papel de vanguarda em relação a todas as outras. Uma ciência importada primeiro do Oriente, sobre um fundo de cultura helenística e latina, e se torna depois autóctone em todos os domínios: álgebra, astronomia, biologia, botânica, zoologia, música. A Andaluzia adota o sistema de numeração indiano, com uma base 10, antepassado do nosso e cuja peça mestra é o zero. A partir de agora, os sábios árabes passarão a preocupar-se menos em explicar a natureza do que em agir sobre ela. Esta conversão estimula os talentos e as invenções. O melhor cirurgião muçulmano, Abulcasis, vive então em Córdova. Lá se constrói um «planetário»; fabricam-se astrolábios, relógios, quadrantes; utilizam-se as tábuas de astronomia indianas; abrem-se parques zoológicos e jardins botânicos; apuram-se farmacopeias. No tempo de Almançor, a cultura de al-Andaluz irradia até aos Pirenéus, e para lá deles. Nos mosteiros catalães onde estuda, o jovem Gerbert d'Aurillac, o futuro papa Silvestre II, absorve, maravilhado, o saber vindo de Córdova. Sem sequer imaginar que a Espanha muçulmana ali introduziu tantas outras técnicas e produtos que a Europa cristã irá descobrindo aos poucos, do bicho-da-seda ao papel, passando pelo arroz, o açúcar, o algodão, os limões ou os espargos. Esta sociedade consente o epicurismo. Um poeta, grande apaixonado pela vida, escreve então: «Atravesso o círculo dos prazeres como um corcel em fúria que toma o freio nos dentes.» Para retocar o seu perfil de califa, Almançor afasta-se do Alcazar. Abd al-Rahman III tinha mandado construir para si uma cidade-palácio, "Madinat al-Zahra", a oeste da capital, no sopé da "Montanha da Desposada", que domina a planície de Córdova. O "hadjib" imita-o. É ou não verdade que tem tudo a recear dos humores de uma plebe obstinadamente fiel aos omíadas? Escolhe uma curva do Guadalquivir, a leste de Córdova, para aí instalar uma nova cidadela, que batiza quase como a precedente, "al-Madina al-Zahira" (a cidade que brilha). Manda que o seu nome figure nas orações, nas moedas e, bordado a fio de ouro, nas roupas de cerimónia. As duas cidades serão postas a saque quando da guerra civil de 1009-1010, que instaura o caos. Da primeira ficaram ruínas sumptuosas; da segunda não se encontram sequer vestígios.

Estas precauções não chegam. Para neutralizar a velha aristocracia militar árabe e meter na ordem os esclavónios, Almançor "berberiza" e reforma o exército. A África do Norte, à qual Córdova estende pouco a pouco o seu protetorado, fornece-lhe um viveiro quase inesgotável de mercenários berberes que atravessam o mar em clãs inteiros, e em breve constituirão o grosso do exército omíada. São tratados com desvelo, magnificamente equipados, armados dos pés à cabeça. Usando uma política de mistura das unidades militares, que fará frequentemente escola longe da Andaluzia, quebra as amarras familiares e tribais onde a nobreza de sangue ia muitas vezes buscar a clientela e extrair a força. Sob o comando de Almançor, o exército cordovês chega aos 60 mil homens, um número enorme para o tempo. Para o financiar, vai ser necessário tributar os camponeses com novos impostos, o que dará azo ao protesto e acarretará, a prazo, a ruína da economia. A berberização do exército, agora menos fiel à dinastia dos omíadas, apressará a queda do califado. Almançor segura firmemente as rédeas do poder. Gerida com firmeza, competência e relativa justiça, a Espanha muçulmana possui a melhor administração do mundo ocidental. O seu chefe garantir-lhe-á duas décadas de tranquilidade aquém-fronteiras. Os criminosos e os conspiradores, mas também os importunos, são castigados sem clemência, envenenados, ou crucificados, atados a postes num embarcadouro do rio. Os espiões são eficazes, a polícia vigia as ruas e os mercados. Volta a ser possível caminhar por Córdova à noite sem grandes receios. A previdência preside ao aprovisionamento: em 991, reservas de trigo empilhadas em silos substituem de imediato as colheitas que uma invasão de gafanhotos destruiu. "Tenho mais cereal ao meu dispor do que o próprio José", gaba-se Almançor um dia. A moeda - moedas de ouro, prata ou cobre - é estável; o fisco, eficaz. O tesouro real acumula-se em quatro casas-fortes do palácio, às quais se recorre todos os meses, mas muito mais em junho, em vésperas das grandes expedições de Verão. Almançor prepara cuidadosamente cada nova campanha. Ao vale do rio, a jusante de Sevilha, onde o pasto abunda e vivem três mil éguas de criação e 300 garanhões, vão buscar-se os cavalos, que já estão à espera; na província de Múrcia, reúnem-se os 400 camelos para o transporte da carga pesada; e o exército, que em campanha depende das populações locais, não deixa Córdova sem antes se ter certificado do estado das colheitas.

À Espanha cristã não resta senão reforçar a defesa. As mais graves derrotas que Almançor lhe inflige ocorrem em San Vincente, Zamora, Rueda (981), Barcelona (985), cujo revés dos cristãos serve de pretexto ao rei dos francos, Hugo, o Capeto, para acelerar a sagração do filho Roberto, em Leão (988), no termo de uma batalha que um astrólogo lhe aconselhara ('Marcha contra essa cidade. Conseguirás apoderar-te dela!'), em Ávila (994) e a seguir, após Compostela (997), em Cervera, no Ano Mil. Chegada a velhice, Almançor é assaltado com mais frequência pela ideia da morte. Guarda com ele a mortalha que as filhas talharam de uma peça de linho. No pino do Verão de 1002, ao regressar de Castela, sente que o fim está próximo. Minado por crises de gota, recusa ser tratado. É transportado em liteira por negros, cujo andar é mais leve e flexível. No posto fronteiriço de Medinaceli, dita o seu testamento político ao filho, Abd al-Malik. Aconselha-o a deixar intocado o título de califa e a ilusão de autoridade que ele reflete. Ao ver o filho chorar, prediz, com aspereza, mas também com lucidez: "Eis uma boa de forma de pressagiar o fim próximo do império." Morre a 10 de agosto de 1002, quase a fazer 66 anos. É enterrado ali mesmo, sob uma austera pedra tumular com dois únicos versos gravados em sua glória. Antes, porém, recobrem-lhe a mortalha, conforme vontade expressa, com a poeira trazida agarrada à roupa no regresso das expedições e que guardava consigo, religiosamente, numa arca.

Córdova no ano mil

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