29/05/2015

Homicídio no Plistoceno

Na época do Plistoceno, há 430.000 anos, o homem moderno ainda não tinha surgido, mas outras espécies de humanos já tinham colonizado a Eurásia, a partir de África. Na Europa, vivia o Homo heidelbergensis, que se pensa ter dado origem aos neandertais. Agora, a reconstituição de um crânio encontrado numa gruta de Espanha revelou a existência de uma luta fatal há 430.000 anos, onde se utilizou uma arma, fazendo recuar no tempo o registo mais antigo de violência intencional humana, revela um artigo publicado nesta semana na revista PLOS ONE.
Na paleoarqueologia, é sempre difícil tirar conclusões sobre as acções que provocaram a existência dos vestígios encontrados. Já se encontraram esqueletos de humanos que sofreram diferentes traumas, mas podiam ter sido originados durante a caça. Há provas de canibalismo antigas, com 600.000 anos. Mas, até agora, as provas incontestáveis e mais antigas de violência entre humanos eram muito mais recentes, provinham do Neolítico, há cerca de 10.000 anos, obtidas em vestígios deixados pelo homem moderno.
O crânio que permitiu a nova descoberta não foi encontrado de uma só vez. A equipa do Centro Misto de Evolução e Comportamento Humanos, do Instituto de Saúde Carlos III, em Madrid, foi obtendo, um a um, os 52 pedaços do crânio, à medida que ia escavando em Sima de los Huesos, um dos vários sítios arqueológicos na Serra de Atapuerca, em Burgos, Espanha. Os locais arqueológicos desta pequena cordilheira são Património da Humanidade da UNESCO devido à sua importância para compreendermos o modo de vida dos humanos pré-históricos.
Sima de los Huesos fica na base de um poço natural com 13 metros, situado na gruta Cueva Mayor. O local está a ser escavado desde 1984, com toneladas de material a ser retirado de lá, para depois se estudar cuidadosamente. Já foram recuperados restos de, pelo menos, 28 indivíduos que viveram há cerca de 430.000 anos, e que estão identificados como Homo heidelbergensis.
O crânio agora reconstituído, a partir dos 52 pedaços, é o número 17. Pertence a uma espécie de humanos que “está muito próxima do Neandertal”, explicou ao PÚBLICO Nohemi Sala, autora do estudo, referindo-se à espécie que iria surgir dali a cerca 200.000 anos. “Este indivíduo foi morto num acto letal de violência interpessoal, abrindo-nos uma janela para um aspecto muitas vezes invisível da vida social dos nossos antepassados humanos.”
Para chegarem a esta conclusão, os cientistas tiveram primeiro de reconstituir o crânio. Depois, utilizando diferentes tipos de técnicas, analisaram os dois buracos na parte frontal do crânio, por cima da cavidade do olho esquerdo. A análise aos dois buracos permitiu compreender que não houve um processo de cicatrização após o trauma, indicando que os buracos foram feitos na altura da morte daquele humano. Por outro lado, os dois buracos foram provocados pelo mesmo objecto. Tudo isto põe de lado a hipótese deste humano ter caído no poço e ter batido duas vezes contra a mesma rocha.
“Devido à consistência da forma e do tamanho, é claro que os traumas brutais não foram involuntários, mas, antes, parecem ter sido produzidos pelo uso de um instrumento com um determinado tamanho e forma”, conclui o artigo. “A severidade destas feridas, com ambos os golpes a penetrarem na barreira entre o osso e o cérebro, e a ausência de um processo de cicatrização, por renovação do osso, leva-nos a considerar que este indivíduo não sobreviveu aos traumas cranianos. Cada um dos dois eventos traumáticos foram provavelmente mortais, e a presença de golpes repetidos poderá sugerir uma intenção clara de matar.”
Assim, estamos perante aquilo que os autores dizem representar “o acto mais antigo de agressão deliberada e letal no registo fóssil” humano. Os vestígios de Sima de los Huesos já tinham mostrado que aquela população usava preferencialmente a mão direita. Como os golpes estão na parte esquerda do crânio, a equipa acredita que alguém bateu naquele humano, usando o braço e mão direita e, claro, um instrumento.
“É importante lembrarmo-nos de que estes humanos eram robustos e que esta era uma das partes mais densas do crânio”, explica ao jornal norte-americano Los Angeles Times Danielle Kurin, antropóloga forense da Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, que não faz parte da equipa. “Era necessário muita força para provocar uma fractura que faça o osso penetrar no cérebro.”
Mas esta descoberta também obriga a repensar a função daquele poço, onde se encontraram vestígios de quase três dezenas de indivíduos. Este humano que foi assassinado em circunstâncias desconhecidas teve, depois, de ser transportado para ali. “Este local é a prova das mais antigas práticas funerárias descobertas até agora”, explica Nohemi Sala. Ou, como disse também ao Los Angeles Times o investigador Ignacio Martínez, da Universidade de Alcalá, de Madrid, que também participou neste estudo, “acreditamos que a violência intencional entre pessoas é um comportamento que acompanha os humanos desde há 430.000 anos, assim como também é o cuidado que damos aos doentes ou mesmo aos mortos”. E remata: “Não mudámos assim tanto no último meio milhão de anos.”
Serra de Atapuerca
Crânio, encontrado em Sima de los Huesos (Espanha), com os buracos bem visíveis na região frontal.

28/05/2015

Novos fósseis da Etiópia vêm complicar a história da evolução humana

A revista Nature publica esta quinta-feira um artigo científico que anuncia a descoberta de uma nova espécie de australopiteco. A equipa de Yohannes Haile-Selassie, do Museu de História Natural de Cleveland, nos EUA, chama-lhe Australopithecus deyiremeda e fundamenta a existência deste novo australopiteco na descoberta de duas mandíbulas e de um maxilar, com 3,3 a 3,5 milhões de anos, na região de Afar, na Etiópia, em 2011. Muito perto desse sítio tinha-se encontrado, em 1974, o celebérrimo esqueleto de Lucy, uma fêmea da espécie Australopithecus afarensis. Para a equipa, os novos fósseis são uma confirmação indubitável de que pelo menos duas espécies de pré-humanos viveram na mesma região e ao mesmo tempo, numa altura em que já não faltava muito para o aparecimento do género Homo — ou seja, dos primeiros humanos.
Actualmente, já se sabe que entre há três e quatro milhões de anos, na época do Plioceno Médio, o planeta era povoado por mais do que uma espécie de hominíneos — a subfamília de todos os nossos antepassados a seguir à separação do ramo dos chimpanzés, o que ocorreu há cerca de oito milhões de anos. Hoje, somos o único membro dessa subfamília. Mas nem sempre a ideia de existência de vários hominíneos no Plioceno Médio, e na mesma área geográfica, foi facilmente aceite. Essa altura é particularmente importante na história da evolução humana por ser pouco tempo antes do aparecimento dos humanos.
Durante muito tempo, parecia que uma espécie de hominíneos tinha dado lugar a outra e depois esta a outra, até que apareceram os primeiros Homo, há 2,8 milhões de anos. Era pelo menos o que se pensava que indicavam os fósseis que se iam descobrindo. Só que a árvore da evolução humana tem muitos ramos, alguns simultâneos, que secaram pelo caminho — no fundo, experiências evolutivas que não desembocaram em nada.
A ideia da coexistência de vários hominíneos ganhou peso com a descoberta dos fósseis do Australopithecus bahrelghazali (embora hoje haja dúvidas de que se trate de um novo australopiteco e muitos cientistas consideram-no, afinal, um Australopithecus afarensis), em 1995 no Chade, e do Kenyanthropus platyops, em 1998 no Quénia. Tanto o Australopithecus bahrelghazali como o Kenyanthropus platyops (ou “homem do Quénia com face plana”) viveram justamente há cerca de 3,5 milhões de anos no Leste de África — ou seja, na mesma altura e na mesma área geográfica de Lucy, cuja descoberta representou um marco na paleoantropologia e ainda hoje é uma super-estrela entre os fósseis pré-humanos.
Classificada logo em 1978 como Australopithecus afarensis, a Lucy viveu há 3,2 milhões de anos, media cerca de um metro de altura e — o mais surpreendente — já era bípede. Até à descoberta do seu esqueleto, não existiam provas concretas desse modo de locomoção numa espécie de hominíneos com mais de dois milhões de anos. Os ossos da bacia, das pernas e dos pés de Lucy foram provas essenciais. Além de caminharem em duas pernas, sabemos agora que os indivíduos da mesma espécie de Lucy — que existiu num período de tempo entre há 3,8 e 2,9 milhões de anos — também se sentiam confortáveis em trepar às árvores.
Agora, a equipa coordenada por Yohannes Haile-Selassie encontrou o maxilar, ainda com os dentes, e as duas mandíbulas (de indivíduos diferentes, portanto) de um hominíneo na área de Woranso-Mille, na região de Afar. Em Março de 2011, os cientistas estavam à procura de fósseis naquela área porque já tinham encontrado aí a impressão parcial de uma pegada de hominíneo, datada com 3,4 milhões de anos e que consideraram, num artigo na revista Nature em 2012, revelar uma nova maneira de andar e confirmar a diversidade nos hominíneos do Plioceno Médio. “O espécime era contemporâneo do Australopithecus afarensis, mas demonstrava a existência de um modo distinto de locomoção bípede”, lembra agora a equipa de Yohannes Haile-Selassie no artigo desta quinta-feira. Mas sem ossos do crânio, incluindo mandíbulas, maxilares e dentes, era difícil identificar o autor da pegada parcial.
Encontraram realmente ossos, mas como nenhum estava associado à pegada parcial, continua a não ser possível atribuir-lhe um autor. Mas a equipa considerou que lhe saiu na mesma a sorte grande, uma vez que classificou os ossos como sendo de uma nova espécie de australopiteco. Os cientistas consideraram que, apesar de os ossos da cara e os dentes terem mais características de australopiteco do que de outros hominíneos, tinham diferenças suficientes para serem atribuídos a uma espécie nova de australopiteco. Eis assim o Australopithecus deyiremeda, em que a designação específica é composta por duas palavras da língua da região de Afar: deyi, que significa “próximo”, e remeda, que quer dizer “parente”, porque, argumentam os cientistas, “esta espécie é um parente próximo de todos os hominíneos posteriores”.
A zona onde se encontraram os fósseis fica apenas a cerca de 35 quilómetros a norte do sítio onde estava o esqueleto de Lucy (e a 520 quilómetros da capital da Etiópia). “Esta nova espécie (...) mostra que havia pelo menos duas espécies de hominíneos contemporâneas na região etíope de Afar a viver entre há 3,3 e 3,5 milhões de anos e é uma confirmação adicional da diversidade taxonómica dos primeiros hominíneos no Leste de África durante a época do Plioceno Médio”, escrevem os cientistas no artigo na Nature. “A diversidade de espécies do Plioceno Médio tem sido alvo de debate nas últimas duas décadas, particularmente depois da classificação do Australopithecus bahrelghazali e do Kenyanthropus platyops, que se juntaram à bem conhecida espécie Australopithecus afarensis. Análises posteriores fundamentam a proposta de que diversas espécies de hominíneos co-existiram durante esse período”, justificam ainda no artigo.
Como não muito longe da Etiópia, no Quénia, vivia ainda o Kenyanthropus platyops, a equipa defende agora que pelo menos três espécies de hominíneos viveram há cerca de 3,5 milhões de anos em grande proximidade geográfica.
Mas a própria equipa reconhece que a proposta de uma nova espécie pode acabar por complicar ainda mais a já complicada árvore da evolução humana, como se lê também no artigo na Nature: “As relações taxonómicas e filogenéticas dos primeiros hominíneos estão a tornar-se cada vez mais complicadas à medida que se acrescentam novos taxa [unidades de classificação, como os géneros e espécies] ao registo fóssil do Plioceno Médio e se reconsidera a distribuição temporal (...) dos primeiros Homo.”
Antecipando críticas da comunidade científica, até porque a evolução humana costuma suscitar debates científicos acalorados, Yohannes Haile-Selassie já lhes está a responder num comunicado do Museu de História Natural de Cleveland: “Esta nova espécie da Etiópia leva para outro nível o debate em curso sobre a diversidade dos primeiros hominíneos. Alguns dos nossos colegas vão ficar cépticos em relação a esta nova espécie, o que não é invulgar. Mas penso que é altura de olharmos para as fases iniciais da nossa evolução com a mente aberta e examinarmos os fósseis disponíveis, em vez de rejeitarmos imediatamente aqueles que não encaixam em hipóteses antigas.”
Eugénia Cunha, especialista em evolução humana e antropóloga forense da Universidade de Coimbra, está entre os cientistas que têm dúvidas quanto à robustez das provas apresentadas na Nature. Quando se lhe pergunta qual a importância da descoberta, a investigadora comenta: “É uma descoberta importante, porque é mais um fóssil a provar a diversidade de hominíneos há 3,3-3,5 milhões de anos. No entanto, diversidade não tem de equacionar obrigatoriamente novas espécies.” E acrescenta: “Os autores da descoberta acham que as características dentognáticas [dos dentes e mandíbulas] são suficientes para a criação de uma nova espécie, mas pode não ser assim. O futuro o dirá. Não tenho nada contra a existência de uma nova espécie, mas os argumentos que excluem a possibilidade de ser a mesma espécie do Kenyanthropus platyops não são completamente convincentes.” A investigadora diz ainda mais sobre as características morfológicas usadas para classificar os fósseis como sendo de novo australopiteco: “Essas características morfológicas tiram força para a manutenção do Kenyanthropus platyops como um novo género e uma nova espécie, porque as características distintivas do Kenyanthropus estão presentes nesta nova espécie.” Portanto, ou os novos fósseis são de um Kenyanthropus platyops ou os fósseis do Kenyanthropus platyops acabam por vir a ser considerados como o novo Australopithecus deyiremeda? “Tanto pode ser uma coisa como outra. Creio que poderá ser esta nova espécie a vingar, porque o Kenyanthropus quase caiu no esquecimento. Mas se a face distintiva do Kenyanthropus não estiver preservada nesta nova espécie, não se pode comprar o que não é comparável”, responde Eugénia Cunha. “É uma hipótese que para mim fica em aberto: poderá o Kenyanthropus vir a ser englobado nesta espécie, não obstante os autores desta descoberta apontarem para umas particularidades, quase subtilezas, de distinção? Fico com a dúvida.”
Subjacente a todo a este debate está, no fundo, o confronto entre duas correntes de classificação dos seres vivos: aquela que considera que as diferenças encontradas num exemplar justificam logo a criação de uma nova espécie e aquela que agrupa mais esse exemplar numa mesma espécie. “É a velha questão do confronto de perspectivas dos splitters [divisores] versus lumpers [agrupadores]”, resume Eugénia Cunha a propósito do novo australopiteco. “Haverá sempre a tendência em dar nomes novos a novas descobertas, até que, uns anos depois, se chega à conclusão de que era quase tudo o mesmo. A diversidade pode ser acomodada dentro de uma mesma espécie. No fundo, esta questão de dar nomes é artificial. O que importante é saber que éramos muito diversos.” Quanto a Eugénia Cunha, é mais uma lumper: “Veja o que tem acontecido com os primeiros Homo. Agora dizem que, apesar da grande diversidade, o Homo rudolfensis, habilis, ergaster, erectus e georgicus são todos a mesma espécie.”
Sejam de um novo australopiteco ou não, o certo é que os novos fósseis revelam a diversidade entre os pré-humanos. Mas ainda não respondem a uma das grandes questões sobre o nosso passado: qual é o antepassado directo do género Homo? Nem o Australopithecus deyiremeda nem Australopithecus afarensis fizeram a transição directa para os primeiros humanos, explica Eugénia Cunha. “Sem dúvida que neste período entre 3,3 e 3,5 milhões de anos coexistiam várias espécies e até géneros, o que contrasta fortemente com a situação actual. Terá havido várias tentativas para o bipedismo, umas bem-sucedidas e outras não, e nem todas com as mesmas adaptações morfológicas. Tudo fortemente dependente do ambiente e da dieta. Quem é que seguiu em frente é, todavia, uma questão que não tem resposta.”
maxila de Australopithecus deyiremeda
A maxila com os dentes do novo hominídeo encontrado na Etiópia.
Yohannes Haile-Selassie
O investigador Yohannes Haile-Selassie.

22/05/2015

Rapariga de Egtved (Dinamarca)

Uns 2400 quilómetros percorridos em 15 meses, uma morte ocorrida a mais de 800 quilómetros da sua região natal e do sítio onde cresceu: os restos de uma mulher da Idade do Bronze contam a história da sua vida, há quase 3400 anos. A sepultura da jovem, que morreu entre os 16 e os 18 anos, foi descoberta em 1921 na aldeia dinamarquesa de Egtved. Jazia num caixão talhado no tronco de um carvalho, embrulhada numa pele de boi, desde um dia de Verão do ano 1370 antes da era cristã. Foi o estudo do seu cabelo, dentes, unhas e vestuário, todos muito bem preservados, que permitiu agora reconstituir o itinerário desta mulher emblemática da Idade do Bronze, explica um artigo publicado na quinta-feira na revista Nature Scientific Reports. Um autêntico trabalho de detectives, que acompanha, com uma precisão sem precedentes, as deslocações de um dos nossos antepassados pré-históricos.
Conhecida como “rapariga de Egtved” (o nome da aldeia onde foi sepultada), tudo indica que não terá sido originária daquele local – ao contrário do que se pensou durante muito tempo. Segundo o novo estudo, a rapariga terá nascido na actual Alemanha, a centenas de quilómetros do sítio onde foi inumada.
“A análise de um dos primeiros molares da jovem mulher (já completamente formados quando tinha três ou quatro anos de idade) permite-nos concluir que a rapariga de Egtved nasceu e passou os seus primeiros anos de vida numa região geologicamente mais antiga e diferente da Península da Jutlândia, na Dinamarca, onde se situa Egtved”, diz Karin Margarita Frei, do Museu Nacional da Dinamarca, co-autora do trabalho, em comunicado da Universidade de Copenhaga.
Foi através da análise de diversos isótopos (variantes) de estrôncio, um elemento químico contido nos alimentos que se incorpora ao esmalte dos dentes, que os cientistas conseguiram determinar, como se de um GPS se tratasse, o local onde a rapariga vivia quando os seus dentes se formaram. Para eles, a jovem mulher será oriunda da Floresta Negra, no Sudoeste da Alemanha, a mais de 800 quilómetros do sítio onde morreu.
A análise da roupa que ela vestia quando foi sepultada – um curto "casaco" de lã e uma saia feita de tirinhas de lã e de pele de boi – permite concluir que esse peças foram confeccionadas fora do que é hoje a Dinamarca. “As ovelhas que forneceram a lã pastaram em prados com as mesmas características geológicas que os da Floresta Negra, salienta Karin Margarita Frei.
“Penso que esta jovem alemã foi dada em casamento a um homem da Jutlândia para estabelecer uma aliança entre duas grandes famílias”, explica por seu lado Kristian Kristiansen, da Universidade de Copenhaga e igualmente co-autor do estudo. Durante a Idade do Bronze, as relações entre a Dinamarca e o Sul da Alemanha eram muito estreitas, nomeadamente devido ao comércio do âmbar e do bronze.
Quanto aos restos do cabelo da jovem, com 23 centímetros de comprimento, permitiram reconstituir o seu percurso, mês a mês, ao longo dos dois últimos anos da sua vida. Isto porque as características químicas do cabelo e das unhas fornecem informações acerca da localização geográfica da pessoa na altura em que cresceram. No caso desta jovem mulher, a parte mais recente do seu cabelo (que corresponde aos seus últimos quatro a seis meses de existência) e das suas unhas indica que ela terá feito uma viagem muito longa pouco tempo antes de morrer. “Uns 15 meses antes da sua morte, a jovem mulher ainda se encontrava na sua região natal”, explica Karin Margarita Frei. “Depois, partiu para a região da Jutlândia. Após uma estadia de nove meses naquele local, regressou à sua região de origem, onde passou quatro a seis meses, tendo a seguir voltado a Egtved, onde morreu um mês mais tarde.” A jovem percorreu assim cerca de 2400 quilómetros em 15 meses – uma distância equivalente à que separa Paris da Finlândia.
Museu Nacional da Dinamarca
A sepultura da rapariga de Egtved, que morreu em 1370 a.C. (Museu Nacional da Dinamarca).

Abertura do museu dos Coches

Hoje, ainda que as viaturas já ocupem o seu espaço devido, é preciso imaginar que a museografia concebida por Mendes da Rocha e pelo arquitecto português Nuno Sampaio está completa, com grandes projecções nas paredes que evocam a relação dos coches com o cinema, com instalações sonoras que reproduzem o barulho das rodas na gravilha e toda a informação adicional em painéis digitais interactivos que permitem olhar para o interior destas jóias construídas entre os séculos XVI e XIX e conhecer melhor todo o seu contexto.
É que, depois de mais de dois anos de intensa polémica, em que esteve de portas fechadas, o edifício composto por dois corpos, um expositivo e outro anexo, confiado ao auditório e a serviços, vai ser inaugurado praticamente como estava no final de 2012, quando foi dado por concluído (a obra só foi oficialmente entregue no início do ano seguinte). A colecção já lá está, é certo, mas, além da museografia, que estará instalada até ao fim do ano, falta-lhe também a passagem pedonal e ciclável sobre a linha do comboio e a Avenida da Índia, que a partir de Junho de 2016 deverá ligar o novo conjunto arquitectónico ao rio, a cafetaria e o restaurante, já construídos mas ainda vazios: prevê-se que estejam a funcionar no “último trimestre deste ano”, garante João Póvoas, do gabinete do secretário de Estado da Cultura, esclarecendo que sábado, dia da abertura ao público, estará em funcionamento uma gelataria e um espaço de restauração provisório, com produtos portugueses, na praça do museu. A sala de exposições temporárias também estará, por enquanto, vazia, porque “neste momento importa dar destaque à exposição permanente”.
Esta sala, cuja programação dependerá, como é natural, da aprovação da equipa técnica do museu, que continuará a ser dirigido por Silvana Bessone, pelo menos até Março de 2018, é um dos elementos a ter em conta no novo plano de gestão, do qual ainda pouco se sabe. O espaço poderá vir a ser ocupado por privados, assim como o auditório e a praça, “introspectiva, resguardada, intimista”, segundo Bak Gordon, marcada por um edifício principal que “não tem frente nem verso”.  
A qualidade do projecto de arquitectura é algo que o secretário de Estado da Cultura (SEC), Jorge Barreto Xavier, nunca pôs em causa, chegando a defender que um museu de Mendes da Rocha em Lisboa era um “activo” a levar em conta. E isto mesmo sendo sempre muito crítico em relação à opção do governo socialista de José Sócrates de aplicar as contrapartidas da construção do Casino de Lisboa numa nova casa para os Coches.
A arquitectura é, aliás, o que o leva a inaugurar hoje um museu que já está pronto há mais de dois anos: “Já esperámos muito e esperar mais não se justificava. O novo museu, já o disse, é como a Casa da Música ou o Museu de Serralves - o exercício da arquitectura e o discurso da arquitectura são muito relevantes.” Se assim é, fica a pergunta: “Porquê inaugurar agora e não há mais de dois anos?”, disse há quase duas semanas, na conferência em que a obra foi apresentada aos jornalistas.
Barreto Xavier rejeita qualquer leitura que associe o timing desta inauguração às legislativas que se aproximam. Uma leitura que é feita, por exemplo, pela historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, que nos últimos anos tem sido uma das vozes públicas mais activas contra o novo museu, que define esta abertura como “um acto da campanha eleitoral que já estamos a viver”. Para o SEC, tudo se resumiu a uma questão de dinheiro, ou à falta dele.
Previsões “conservadoras”
Falando na conferência de imprensa de 11 de Maio, o SEC reconheceu os atrasos, atribuindo-os à necessidade de conter despesas, sobretudo em 2013, e à inexistência de um modelo de gestão exequível, capaz de viabilizar um museu cujos custos de funcionamento previstos rondavam, de início, os 3,5 milhões de euros por ano, um aumento extremamente significativo se levarmos em conta que, em 2014, último ano em que o museu funcionou no antigo picadeiro do Palácio de Belém, se ficaram pelos 950 mil, mais de metade dos quais assegurados por receitas próprias.Hoje, e afinada que está a estratégia de gestão, segundo Barreto Xavier, a previsão para o funcionamento desceu para os 2,7 milhões de euros /ano, uma redução que fica a dever-se, em parte, a uma diminuição muito significativa do número de funcionários a contratar para o novo museu – as primeiras contas foram feitas prevendo um acréscimo de 56 pessoas, sendo que apenas 30 foram incorporadas na equipa, que passa a contar com 62 elementos nos dois pólos (novo edifício e picadeiro do século XVIII).
Barreto Xavier preferiu não dar pormenores sobre o modelo para o museu, mas garantiu que terá grande participação de privados, com a restauração, loja e aluguer de espaços para exposições, concertos, conferências e outras iniciativas como importantes fontes de receita, para além da bilheteira. A participação do Estado no orçamento de funcionamento deverá ser a mesma que tinha no antigo museu (cerca de 400 mil euros), esperando o SEC receitas na ordem dos 2,3 milhões de euros. Receitas que espera ainda vir a aumentar progressivamente.
Até que a museografia esteja instalada, o bilhete para o novo edifício custará seis euros, sendo a entrada conjunta oito (com o Picadeiro). Depois da exposição completa, a casa de Mendes da Rocha passará a custar oito (os dois pólos ficarão, então, nos dez euros).
As previsões de visitantes – 350 mil/ano, o mesmo número que o museu teve em 1998, ano excepcional para o turismo em Lisboa por causa da Exposição dos Oceanos – são “conservadoras”, admite o SEC, mas permitem um exercício mais realista do que as que apontavam, logo em 2009, para um milhão de visitantes, “número fantasma” que começou a circular sem se saber muito bem de onde viria, ou, já em 2013, para os 600 mil (em 2014 foram 207 mil os que entraram no antigo picadeiro).
Independentemente do número, não é difícil imaginar a praça cheia de movimento, com turistas em passeio ou nas esplanadas, fazendo uma pausa naquela que é a zona monumental mais visitada do país. É verdade que os Coches terão de disputar atenções com o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém e outros museus circundantes, mas também é verdade que terão a seu favor dois importantes trunfos: uma das melhores colecções do mundo no seu género e um edifício desenhado por um dos mais importantes arquitectos brasileiros.
O edifício principal, que com seis mil metros quadrados quase triplica a área expositiva do antigo museu, é dominado por duas grandes naves de 135X20 metros, números redondos, onde a disposição dos coches obedece a uma ordem cronológica. O pé direito de 8,5 metros nestas galerias permitiu a instalação de passadiços superiores que dão ao visitante uma perspectiva aérea da colecção. Para já não pode comentar-se o efeito cenográfico geral da museografia, mas é seguro dizer que nela a iluminação terá um papel decisivo, já que a luz natural, por motivos de conservação, é muito diminuta nas áreas de exposição. À vista estarão 78 exemplares da colecção, um aumento face aos 55 que o picadeiro mostrava. O antigo museu deixava as viaturas do século XIX quase todas no paço ducal de Vila Viçosa, onde continuará a funcionar outro pólo do museu. Da vila alentejana foram agora transferidas para Lisboa 25 viaturas.
A nave sul do novo edifício faz uma viagem entre os séculos XVI e XVIII, começando no coche de Filipe II (fabricado possivelmente no século XVI), em que o monarca viajou de Madrid a Lisboa em 1619, dois anos antes de morrer, e terminando naquele que é conhecido como o coche da mesa ou da troca das princesas, célebre episódio histórico na fronteira do Caia destinado a fortalecer as ligações entre as casas reais portuguesa e espanhola. A galeria norte começa por apresentar um conjunto de berlindas e viaturas eclesiásticas, detém-se depois em cadeirinhas, liteiras e carros de passeio da burguesia, terminando com uma mala-posta de meados do século XIX, primeiro transporte público colectivo português, que levava dias a fazer a ligação Lisboa-Porto com 16 passageiros, alguns sentados no tejadilho. Nas duas naves em que a sensação de espaço é permanente – juntas formam uma espécie de hangar cuja dimensão é impossível ignorar - o contraste entre a aparente simplicidade da arquitectura e a profusão decorativa dos coches é evidente. E diverte.
O edifício anexo – auditório, biblioteca, restaurante e áreas administrativas - tem uma relação completamente diferente com a luz natural, abrindo os espaços ao exterior. Da grande janela do restaurante é possível “entrar” nos jardins do palácio presidencial, chegar ao Padrão dos Descobrimentos ou acompanhar as filas que se formam à porta dos Jerónimos e dos pastéis de Belém.
Um longo processo
O projecto de um novo museu para os coches reais remonta aos anos 1990, quando Pedro Santana Lopes era secretário de Estado da Cultura e ordenou a compra dos terrenos das antigas Oficinas Gerais do Material do Exército, onde viria a ser construído o edifício de Mendes da Rocha. Foi preciso esperar até 2008 para que Manuel Pinho, ministro da Economia do primeiro governo de Sócrates, viesse a anunciar o projecto do novo museu, que queria ver inaugurado no centenário da República, em 2010. Falhou a data por cinco anos.
Desde que o arquitecto brasileiro começou a dedicar-se ao projecto, há sete anos, até à abertura das portas, muito se disse e escreveu sobre o novo museu. Por vezes a partir de posições extremadas. E quase sempre negativas.
O líder socialista António Costa, então presidente da câmara de Lisboa, chegou a dizer que um novo edifício para os Coches era “desnecessário” e nunca escondeu que preferia ver as contrapartidas do casino aplicadas a outros projectos culturais na capital, como o Museu das Descobertas e o centro de cultura africana, ideias que não chegaram a avançar.
Outro dirigente político que sempre fez questão de manifestar as suas reservas foi o actual secretário de Estado da Cultura. Barreto Xavier afirmou diversas vezes, pelo menos uma delas em sede parlamentar, em Outubro de 2013, que optar por reinstalar os Coches tinha sido um erro e que, num clima de contenção orçamental transversal a todas as áreas da governação, o projecto não era “prioritário”. Em causa estava, lembrou, o custo geral da obra, que hoje se cifra em 40 milhões de euros e foi assegurado na quase totalidade pelas contrapartidas do Casino de Lisboa, e as avultadas verbas que teriam de ser destinadas ao seu funcionamento.
Houve ainda um deputado da coligação no governo a chamar-lhe “mamute branco” e a classificá-lo como “uma obra de regime”. De um “regime”, note-se, que não é o actual. E o arqueólogo Luís Raposo, à data ainda presidente da secção portuguesa do Conselho Internacional de Museus, classificou-o mesmo como um “erro colossal”. No meio da polémica, e já com o edifício praticamente pronto, falou-se até da possibilidade de o vir a afectar a outro museu, algo que nunca foi assumido publicamente.
Em Setembro do ano passado juntou-se mais um dado ao já intricado folhetim do novo museu – António Lamas assumiu a presidência do Centro Cultural de Belém (CCB) com a dupla missão de gerir a casa e de criar um plano de gestão integrada para o eixo monumental Belém-Ajuda. Os Coches, cuja abertura Lamas considerou desde logo “prioritária”, deverá ser um dos elementos deste documento que, segundo o gabinete do SEC, tem Junho como prazo de entregue.
Hoje, na cerimónia de inauguração, Mendes da Rocha voltará a caminhar pelas grandes naves dos Coches. Mas, se quiser ver como reagem os portugueses à casa que desenhou, terá de voltar no dia seguinte, quando a entrada é gratuita e o museu estará, de facto e finalmente, aberto.
Coches museu
Museu dos coches

08/05/2015

Governo interrompeu há mais de um ano negociações directas para regresso do Crivelli

Christopher Marinello,  um dos grandes especialistas mundiais em acordos para a restituição de obras de arte perdidas, roubadas ou saqueadas, não revela o paradeiro de “Virgem com o Menino e Santos”, uma pintura datada de 1487 e de valor estimado acima de cinco milhões de dólares (4,4 milhões de euros). No entanto, ao longo de várias conversas revela detalhadamente inúmeros passos de um caso que diz ter estado já a ponto de se resolver e que afirma que provavelmente só não se resolveu ainda por falta de resposta do Governo português.
Foi em Julho de 2013 que Jorge Barreto Xavier, o actual titular da pasta da Cultura, anunciou ter revogado a autorização de venda atribuída por Francisco José Viegas, o seu antecessor do mesmo XIX Governo Constitucional. Supostamente, a revogação teria efeitos retroactivos e visaria o regresso da pintura ao país. O anúncio da revogação foi feito na Assembleia da República e desde então que a SEC alega estar a tentar reaver a obra. A 14 de Abril último foi o que alegou perante o Supremo Tribunal de Justiça por forma a continuar a manter em segredo a documentação relativa ao caso. Já na versão de Marinello as diligências pelo retorno da obra foram interrompidas há quase um ano e meio. Marinello diz que “houve um momento em que estava preparado para devolver o quadro a Portugal” mas que desde Janeiro de 2014 que as autoridades portuguesas não dão sequer resposta às suas múltiplas tentativas de contacto. Segundo o negociador inglês, “nos últimos 16 meses” as autoridades portuguesas “ignoraram pelo menos 18 cartas e emails” – uma média de mais de um contacto por mês deixado por responder.
Marinello não esclarece quem detém neste momento a titularidade da obra. Numa conversa inicial aponta “uma colecção privada”. Posteriormente dirá apenas que a pintura “já teve mais de um proprietário” desde que deixou Portugal e que a sua empresa representa “várias partes”. Não explica se “várias partes” numa cadeia de interesses projectada no futuro – com actuais proprietários e novos candidatos à titularidade – se “várias partes” numa cadeia de interesses relativa ao passado – com actuais e anteriores proprietários. Marinello esclarece apenas que Pais do Amaral não está entre os seus clientes – “tem o seu próprio representante”. O negociador inglês não comenta também os pontos de passagem internacionais da obra ao longo dos últimos dois anos. Um percurso que começou em Paris, no antiquário Jean-François Heim, e levando depois a Londres e, por fim, aos Estados Unidos. Sobretudo, Marinello não avança qual o montante pedido pelos actuais proprietários ao Governo português pela devolução da obra. Confirma apenas que o valor do Crivelli aumentou desde que deixou as mãos de Pais do Amaral.
Tanto quanto se sabe, Pais do Amaral teve uma oferta de compra de cinco milhões de dólares (4,4 milhões de euros, ao câmbio actual). Segundo Marinello, a revalorização da pintura com 1,62 metros de altura por 1,07 metros de lado deve-se em parte a um processo de restauro oneroso e complexo.
Mas o dinheiro “não é a questão fundamental”, sublinha o negociador: “Ninguém esperava que o Estado [português] pagasse esta pintura num momento [de crise] como o que atravessa.”
Segundo o negociador, a 18 de Dezembro de 2013, a reunião no escritório de Isabel Cordeiro deu-se por concluída com “uma excelente proposta em que os desejos das autoridades portuguesas seriam respeitados, tal como os direitos dos proprietários” que “de boa-fé” haviam investido na aquisição da peça. Um mês depois, a 16 de Janeiro do novo ano, houve ainda contactos sobre a base do acordo: a criação de um colégio de patronos que colectivamente comprariam a pintura para o Estado português. Depois, nada. “[Os responsáveis da DGPC] disseram-nos que a proposta iria ser entregue à Secretaria de Estado da Cultura”, explica Marinello. Que esperou até Março para voltar a contactar as autoridades portuguesas. Nessa altura, a DGPC tinha já novo responsável.
No princípio de Fevereiro, Isabel Cordeiro deixou funções sem voltar a prestar declarações sobre o “caso Crivelli”. Cedeu vez a Nuno Vassallo e Silva à frente da DGPC. Foi já a assistente deste que a 28 de Março fez saber a Marinello que “a proposta estava ainda a ser analisada”.
Contactada, Isabel Cordeiro recusou prestar declarações alegando estar obrigada a reserva e esclarecendo que não fará quaisquer comentários sobre o caso enquanto o “dossier” não for aberto e feito público. As mesmas perguntas enviadas à SEC foram também enviadas à DGPC, que não lhes deu qualquer resposta.
Acima de Vassallo e Silva, já da parte da Secretaria de Estado da Cultura, o negociador inglês afirma ter sido informado de que “faltava ‘follow up’”.
“Resposta, zero”, diz Marinello. E é assim, sem resposta, que afirma que os actuais proprietários da “Virgem portuguesa” foram deixados desde então pelo Governo português. Uma situação “contrária aos interesses da população portuguesa”.
Afirmando não perceber quais as actuais intenções das autoridades portuguesas, Marinello define como “pouco escrupulosa” a “falta de comunicação em nome da Secretaria de Estado da Cultura”.
“O Estado português nunca reclamou formalmente a devolução da obra, mas também nunca retirou a reclamação informal” constante na carta de Dezembro de 2013, explica o negociador. Por outro lado, “a proliferação de reivindicações infundadas” que Portugal faz sobre a obra “é uma nuvem” sobre o título de propriedade “que é prejudicial” para qualquer proprietário, presente ou futuro. É também “litigável” em tribunal e passível de levar a indeminizações, diz o negociador.
Porque não avançam então os actuais proprietários para uma acção legal? É mais uma pergunta a que Marinello responde apenas indirectamente: explica que mesmo o problema de titularidade dos dois Matisse da família Rosenberg, um dos quais envolvido no complexo “caso Gurlitt”, foi resolvido extrajudicialmente.
Foi resolvido a favor dos clientes de Marinello – apesar de a lei norueguesa, aplicável num dos casos, lhes ser contrária.
A resolução extrajudicial é a especialidade deste negociador que numa entrevista a um jornal italiano sobre o “caso Gurlitt” explicou: “Não há nada mais caro, demorado e prejudicial à reputação […] do que uma litigação.”
Virgem com o menino e os Santos
Marinello com o Crivelli já restaurado, a primeira fotografia pública do quadro de que antes havia apenas reproduções.

07/05/2015

Senhora de Vermelho - esqueleto do paleolítico superior descoberto na Cantábria

Há 18.700 anos a última era glaciar ainda não tinha terminado, mas os gelos que tinham tomado conta de boa parte da Europa já estavam a retroceder e uma nova cultura humana começava a prosperar. Apesar de não ser assim há tanto tempo, aquele era um mundo completamente diferente. Não havia agricultura e muito menos escrita ou cidades, mas o pensamento simbólico já tinha nascido e a arte ficou marcada para sempre nas gravuras deixadas em grutas. As comunidades humanas subsistiam graças ao que a natureza lhes oferecia. Os vestígios da caça e os instrumentos usados para esta actividade que chegaram até hoje são bastantes e as plantas também faziam parte da dieta do Paleolítico Superior.
Agora, descobriram-se vestígios de cogumelos nos dentes de um esqueleto de uma mulher que viveu naquela altura, numa gruta no Norte de Espanha, mais precisamente na Cantábria. Esta é a indício mais antigo de sempre do uso de cogumelos na alimentação humana, conclui um artigo publicado recentemente na revista Journal of Archaeological Science, e é um dos aspectos novos que surgiu com a descoberta da Senhora de Vermelho, o nome dado ao esqueleto, devido ao pigmento ocre usado nos rituais fúnebres e que foi encontrado nos ossos.
O esqueleto foi descoberto em 2010 pela equipa de Lawrence Straus, da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos, e Manuel González Morales, da Universidade da Cantábria, que desde 1996 têm estado a escavar a gruta de El Mirón. A gruta tem vestígios arqueológicos que atravessam várias dezenas de milénios, desde há 46.000 anos até à Idade Média. A gruta tem uma das mais longas sequências do período magdaleniano na Península Ibérica.
A cultura magdaleniana, associada a determinados vestígios de utensílios e arte, surgiu há cerca de 20.000 anos e durou até há cerca de 12.000 anos, quando se pensa que uma diminuição do número de animais na Europa alterou o equilíbrio ecológico das populações humanas. Mas nunca tinha sido encontrado um esqueleto tão completo do magdaleniano na Península Ibérica. A sua escavação continuou até 2013 e o seu estudo resultou agora em 13 artigos assinados por vários cientistas, reunidos numa edição especial da revista Journal of Archaeological Science.
“O nome que lhe dei foi em memória da famosa Senhora de Vermelho de Paviland [uma gruta em Gales], o primeiro enterro do Paleolítico descoberto na Europa, no início do século XIX”, explica Lawrence Straus, acrescentando que, inicialmente, o esqueleto de Gales foi atribuído a uma mulher da Roma Antiga, mas mais tarde compreendeu-se que era, na verdade, o de um homem que viveu há 33.000 anos.
Os ossos da nova Senhora de Vermelho permitiram calcular que ela morreu com uma idade entre os 35 e 40 anos, e que tinha uma estrutura robusta: media 1,59 metros e pesava cerca de 69 quilos. Não tinha cáries. Sobre a sua vida sabe-se bastante menos, mas os cientistas já têm alguma informação sobre o dia-a-dia da comunidade que vivia naquela altura em El Mirón, graças a vários vestígios descobertos lá.
“As pessoas faziam instrumentos e armas com material lítico daquele e de outros locais e ainda com chifres e ossos. Caçavam a cabra-montês e algumas camurças nas encostas altas à volta da gruta, e o veado-vermelho no grande vale e nas encostas mais baixas junto ao rio Asón e aos seus afluentes, onde também pescavam salmão. Construíam fogueiras, poços e possivelmente paredes. Esquartejavam as carcaças e processavam os seus produtos, e costuravam roupas e sapatos. Comiam, cantavam, dançavam, contavam histórias, reproduziam-se, riam-se, choravam, dormiam… e morriam. Mas só raramente eram enterradas nas grutas onde tinham vivido”.
Quando morreu, a Senhora de Vermelho foi sepultada numa depressão natural entre um grande bloco, que caiu de uma das paredes da gruta pouco tempo antes da sua morte, e uma das paredes da gruta. Os cientistas descobriram primeiro uma mandíbula e ao longo dos anos foram recolhendo cerca de 100 dos seus 206 ossos. Muitos dos ossos maiores faltavam: o crânio, os dois fémures, uma tíbia, os dois rádios e as duas ulnas e ambos os úmeros (os ossos do antebraço e do braço). Mas pelo que ficou, os investigadores suspeitam que os ossos foram apanhados por um lobo ou por um cão algum tempo depois do enterro – uma tíbia tinha as marcas de uma mordidela. Depois, alguém voltou a enterrá-los.
Uma análise ao pigmento ocre revelou que tinha minerais de hematite com cristais. “Era tão rico que a zona da sepultura brilhava”, explicam os autores no mesmo artigo. “À medida que escavámos, sabíamos que estávamos na sepultura pela intensa cor vermelha e os cristais brilhantes.” A zona do bloco caído junto à sepultura também estava pintada de vermelho. E os cientistas descobriram que alguns dos ossos voltaram a ser pintados quando foram enterrados pela segunda vez. O ocre é um dos elementos que levaram os investigadores a suspeitar de que estavam perante uma mulher especial para a sua comunidade. As pinturas de dois animais na gruta e vários riscos gravados no bloco junto à sepultura foram outras pistas.
“Na superfície do bloco, há gravuras que representam [provavelmente] a região púbica feminina em forma de triângulo e mãos. As gravuras foram cobertas por sedimentos após o enterro, por isso poderão constituir algum tipo de marca”, diz Lawrence Straus, explicando que a mulher é um enigma. “Não temos qualquer ideia por que é que ela era ‘especial’. Tudo o que podemos dizer é que há várias sepulturas magdalenianas em França e na Alemanha, mas esta é a primeira na Península Ibérica, apesar de se escavarem locais da cultura magdaleniana há cerca de 140 anos.”
Mas os dentes desta mulher-mistério ajudaram, pelo menos, a conhecer um pouco mais da alimentação daquelas comunidades. Uma equipa liderada por Robert Power, do Instituto Max Planck para a Antropologia Evolutiva, em Leipzig, na Alemanha, analisou o tártaro em três dentes da mandíbula da Senhora de Vermelho e em um dente isolado encontrado na gruta em estratos mais recentes. Os cientistas dizem que no tártaro se encontram vestígios de alimentos. Usando técnicas de microscopia óptica e de microscopia electrónica de varrimento, a equipa descobriu vestígios de carne, de sementes e tubérculos de plantas nos dentes da Senhora de Vermelho, mas também esporos de fungos. Embora não consigam identificar as espécies a que pertencem os esporos, os cientistas sabem pelo menos que são de grupos de cogumelos com espécies comestíveis. Há uma longa tradição no consumo de cogumelos. O famoso Ötzi – o homem que morreu nos Alpes, há cerca de 5300 anos, e foi encontrado mumificado em 1991, em Itália, perto da fronteira com a Áustria – carregava cogumelos. Mas tanto poderiam ser para comer como para uso medicinal. Agora a descoberta de esporos de cogumelos no tártaro da Senhora de Vermelho é um forte indício de que os cogumelos faziam parte da roda de alimentos destes humanos. “É possível que esta descoberta seja a do uso mais antigo de cogumelos para consumo humano no Paleolítico”, lê-se no artigo de Robert Power. Lawrence Straus explica-nos a importância de se saber mais sobre os hábitos alimentares desta comunidade: “Aprendemos como é que eles sobreviveram aos rigores da última era glacial na Europa: servindo-se da caça e da recolha de alimentos, à custa de viagens quotidianas planeadas, de tácticas e tecnologias, da partilha de informação e da cooperação com outros grupos. Tudo sem a agricultura.”
Cantábria
A entrada da gruta El Mirón, na Cantábria (Norte de Espanha).
mandíbula senhora de vermelho cantábria
A mandíbula da mulher.
dentes da senhora de vermelho da cantábria
Restos microscópicos de plantas detectados no tártaro dos dentes estudados.
Manuel González Morales
Lawrence Straus (à direita) e Manuel González Morales (à esquerda) escavaram a gruta desde 1996.

05/05/2015

Colecções do Kunstmuseum de Basileia em Madrid

Uma das melhores colecções do século XX, inclui pinturas, desenhos, esculturas, colagens, fotografias e vídeos de Picasso, Cézanne, Manet, Gauguin, Van Gogh, Giacometti, Monet, Richter, Judd, Rothko, Warhol e Hodler. Uma galáxia de estrelas da arte que fez 1700 quilómetros por estrada e deixou temporariamente a sua casa, o Kunstmuseum de Basileia, em obras de renovação, para se instalar no Museu Centro de Arte Rainha Sofia e no Museu Nacional do Prado até 14 de Setembro.
O Rainha Sofia recebe 170 obras, divididas em dois núcleos distintos: o primeiro reúne a maior fatia (106), chama-se Fuego Blanco e mostra uma selecção da colecção de arte moderna do museu suíço que testemunha a sua evolução nos últimos 150 anos; o segundo – Coleccionismo y modernidad – parte de duas colecções particulares ligadas ao museu, a de Karl Im Obersteg e a de Rudolf Staechelin, para traçar um percurso pela pintura figurativa desde finais do século XIX até 1940, e assim falar, também, da burguesia suíça e de como a sua relação com a arte e os artistas influenciou os contextos de produção nas primeiras décadas do século XX. No Prado, as atenções concentram-se num número bem mais reduzido de pinturas – dez Picassos, obras singulares que atravessam diversas fases da produção do mestre de Málaga, desde 1906, o chamado período ibérico que antecede o cubismo, explica a pinacoteca madrilena, à fase mais tardia, já no final dos anos 1960.
Olha-se para a lista dos artistas representados nas três exposições e é fácil perceber que há uma série de nomes que se repetem, que contaminam os diversos espaços, mas há apenas uma constante – Picasso, o artista que foi nomeado director do Prado precisamente no mesmo ano em que o museu de Basileia foi inaugurado, 1936. Há registos de que Picasso se interessou pelo Prado e pelos mestres da pinacoteca madrilena logo na adolescência, aos 16 anos, conta o historiador e crítico de arte Francisco Calvo Serraller no catálogo da exposição, num texto em que explica por que razão a obra do artista espanhol se compreende melhor quando relacionada com obras e objectos que dela distam centenas de anos: “Na realidade, a relação paradigmática de Picasso com a arte do passado revalida-se cada vez que se confronta com qualquer imagem ou objecto fabricado pelo homem desde a noite dos tempos porque a sua grandeza criadora, a sua capacidade de invenção ou inovação, nele e em qualquer mortal, está subjugada à amplitude da paisagem histórica que aborda: tanto maior será esta quanto maior for o artista e, claro, vice-versa.”
Talvez porque Picasso sempre prestou a devida reverência a Velázquez, a El Greco ou a Goya, e porque sempre falou da importância do passado mesmo quando se dedicada aos mais arrojados gestos artísticos, não é de todo estranho vê-lo exposto na galeria central do Edifício Villanueva, no Prado, mesmo que para lá chegar seja preciso passar por uma sala que testemunha a relação do pintor italiano Ticiano com a monarquia espanhola e pelo retrato de Isabel de Portugal, mulher de Carlos V, feito depois da sua morte e de acordo com a imagem que o imperador dela guardava.
Les Deux Frères (1906) é a primeira das dez pinturas expostas e testemunha, com Arlequin Assis (1923), a relação muito especial que a cidade de Basileia sempre manteve com a obra do artista espanhol, para muitos o mais influente do século XX. “São muito poucos os artistas que conseguem manter um diálogo com os seus mestres”, disse na apresentação das exposições o director do Prado, Miguel Zugaza, lembrando que na grande galeria onde agora estão, ocupando todo o eixo central, tem por vizinhos Tintorettos, Rubens e Veroneses, tendo a poucos metros os Velázquezs e os Goyas que sempre assombraram a sua imaginação.
A pintura representando um rapaz que leva às cavalitas o irmãos mais novo, executada durante as dez semanas de 1906 que Picasso passou em Gósol, um povoado nos Pirinéus, pertence ao chamado Período Rosa do artista e é uma obra luminosa, de grande serenidade. Talvez, dizem os historiadores, porque foram “tempos especialmente felizes” para o autor de Guernica. Da mesma altura é Homme, Femme et Enfant, a tela seguinte. Uma e outra ligadas a um episódio fundador, tal como o Arlequin Assis.
Para perceber como se relacionam alguns dos Picassos que o Prado tem agora expostos com Basileia é preciso ir até ao Rainha Sofia e às duas exposições que ali mostram parte do acervo do museu suíço. É lá que ficamos a conhecer dois coleccionadores cujos descendentes mantêm ainda obras em depósito no Kunstmuseum: Karl Im Obersteg e Rudolf Staechelin.
Im Obersteg e Staechelin eram empresários e amigos, mas tinham maneiras muito diferentes de coleccionar. O primeiro concentrou as suas compras em peças contemporâneas a partir de 1916, o segundo, com um espírito mais pragmático que o levava a olhar para as suas aquisições também como um investimento a médio/longo prazo, começou por se interessar por arte francesa do final do século XIX, diversificando mais tarde, mas apostando sempre em nomes já consagrados ou com algum reconhecimento público. As colecções que reuniram servem hoje, no entanto, um mesmo objectivo: mostrar como evoluiu a pintura figurativa moderna até 1940. E, tendo ambas fundos importantes de artistas suíços, reúnem também nomes como Pablo Picasso, Vincent van Gogh e Marc Chagall. Chegam, aliás, a incluir a mesma obra, lembra o Rainha Sofia na pequena brochura que acompanha a exposição – Arlequin Assis, do mestre malaguenho, agora em exposição no Prado, começou por pertencer a Im Obersteg, que depois a vendeu a Staechelin. A pintura está hoje nas mãos da cidade de Basileia e do seu museu, que a adquiriu à família do coleccionador em 1967, numa das primeiras acções de crowdfunding na Suíça.
Sabendo que os Staechelin se preparavam para vender Arlequin Assis e Les Deux Frères, os cidadãos de Basileia organizaram uma angariação de fundos sem precedentes para garantir que as obras não deixavam o seu museu. E conseguiram mais do que comprá-las por 8,5 milhões de francos suíços (7,9 milhões de euros). O próprio pintor, sabendo da mobilização popular, decidiu recompensar a cidade oferecendo-lhe quatro novos trabalhos: um estudo para a pintura-paradigma Les Demoiselles d'Avignon, definida como a obra fundadora do cubismo, e três pinturas agora expostas no Prado - Homme, Femme et Enfant, Vénus et L'Amour (1967) e Le Couple (1967).
O Kunstmuseum tem sido apontado como um modelo de coleccionismo, desde que o seu acervo começou a ser reunido, em 1662, até que se transformou num museu público. E precisamente pela relação harmoniosa que mantém entre o que pertence aos privados e o que é de todos. Este museu foi também dos primeiros a apostar nos artistas das vanguardas e na “arte degenerada” (expressão cunhada pelos nazis para classificar tudo o que fugia ao cânone estabelecido pelo III Reich), e a valorizar em território europeu as propostas que nasciam nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra. É por isso que a colecção do museu suíço que Fuego Blanco mostra de forma cronológica, e partindo de artistas locais como Ferdinand Hodler, Le Corbusier e Paul Klee, se concentra precisamente em dois períodos específicos do século XX e em dois centros de gravidade separados pelo Atlântico: num primeiro núcleo estão reunidas obras dos movimentos de vanguarda europeus das primeiras décadas; no outro a proposta passa pela arte que se fez nos Estados Unidos na segunda metade do século, pondo a tónica no desenvolvimento da abstracção.
Como Coleccionismo y modernidad, Fuego Blanco, que vai buscar o seu nome a uma obra lendária de Barnett Newman, contribui para o reconhecimento da importância do fenómeno do coleccionismo para o nascimento da arte moderna e o papel central que nele tem a burguesia ao longo de todo o século XX, ocupando um lugar que, historicamente, pertencia aos aristocratas, salientam os comissários Bernhard Mendes Bürgi, Nina Zimmer e Manuel Borja-Villel.
Pablo Picasso, Paul Cézanne, Édouard Manet, Pierre-Auguste Renoir, Fernand Léger, Vincent van Gogh, Claude Monet, Donald Judd, Mark Rothko ou Ferdinand Hodler invadem o Rainha Sofia numa embaixada que João Fernandes, o curador português que é subdirector do museu, define como “um autêntico sonho”. A partir de Julho, o Rainha Sofia mostrará também uma outra obra que até há bem pouco tempo integrava o acervo do Museu de Arte de Basileia: Nafea Faa Ipoipo (1892), qualquer coisa como “Quando irás casar?” (101X77cm), uma pintura de Paul Gauguin que fazia parte da colecção Staechelin e que foi recentemente vendida ao Qatar por 270 milhões de euros, soma que faz dela a mais cara de sempre. Mostra duas mulheres da Polinésia francesa, uma em trajes tradicionais, com uma flor no cabelo, e outra com um vestido convencional e um olhar que desafia, numa espécie de espelho do limbo em que vivia o pintor francês, sempre entre dois mundos.

Picasso
Picasso - Les Deux Frères.
Picasso
Picasso - Arlequin Assis.
Museu Rainha Sofia
A colecção do museu de Basileia está dividida em dois no Museu Rainha Sofia.