21/06/2016

Conferência Internacional Canção de Protesto e Mudança Social

Folhetos de canções vendidos por músicos viajando de terra em terra no século XVIII. Canais do YouTube que usam estruturas hip hop para passar mensagem. Italianos no século XIX a adoptarem um coral de ópera como forma de protesto, assim contornando a censura austríaca – parece uma história familiar: ouvimo-la várias vezes aos músicos portugueses, que, durante o Estado Novo, procuravam escapar ao lápis dos censores. Para trás e para a frente no tempo, cruzando geografias e formas musicais. Para trás e para a frente, a música como uma expressão privilegiada para a denúncia, para a luta política.
Temas debatidos na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), na Universidade Nova de Lisboa, na primeira Conferência Internacional Canção de Protesto e Mudança Social, que aí decorreu entre 15 e 17 de Junho. Inserida no plano de actividades do recentemente fundado Observatório da Canção de Protesto, com sede em Grândola, a conferência foi uma co-organização do Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança (INET-MD), do Instituto de História Contemporânea da FCSH, da Universidade Nova de Lisboa e da Câmara Municipal de Grândola.
Para além dos académicos e estudantes portugueses, contou com a participação de quase duas dezenas de investigadores vindos de todo o mundo, numa rede de olhares e estudos complementados com a abertura ao exterior da academia – e ouviram-se as Heróicas, de Lopes-Graça nas ruínas do Carmo, quarta-feira; e viajou-se no dia seguinte até Grândola, vila de ressonâncias míticas na história da canção de protesto portuguesa, para ouvir falar das canções da Primavera Árabe, ou para ver uma exposição dedicada a José Afonso.
Decorrendo em várias salas em simultâneo, pudemos acompanhar a história do hip hop na África do Sul pós-apartheid, contada por Lee Watkins, da Universidade de Rhode Island, e depois, através da apresentação de Pedro Miguel Nunes, perceber como o coral Va pensiero, do Nabucco de Verdi, estreado em 1842, se transformou em hino não oficial do desejo de independência italiano perante a ocupação austríaca. “O mia Patria, si bella e perduta!”, cantavam os milaneses aos soldados que nada podiam fazer para impedir o protesto – pois se era “apenas” um coral sobre os hebreus em fuga dos babilónios, que podia fazer a censura do poder para impedir a manifestação, rapidamente replicada por todo o território italiano?
Enquanto acompanhávamos as apresentações – a música da luta anti-nuclear japonesa no pós-Fukushima, por Noriko Manabe, a difusão de canções de protesto nos Estados Unidos do século XX, por Anthony Seeger, a intervenção online com a sátira e a música como elementos primordiais, por Amit Gullitz –, alargava-se perante nós o mundo da canção como arma política. Concluíamos também que, no fundo, as mudanças estão mais relacionadas com a evolução tecnológica do que com a natureza do processo.
No Espaço do Aluno, no piso térreo da Torre B, está montada a exposição Disco na Luta, dedicada à discografia revolucionária portuguesa. Mais de duzentas capas da colecção pessoal de Hugo Castro. Entre edições estrangeiras de José Afonso, álbuns históricos de Adriano Correia de Oliveira ou raridades de edição partidária, vemos, por exemplo, a discografia do GAC, grupo fundamental na refundação da relação da música portuguesa com as suas tradições, ligado à UDP, ou discos do Coro Popular O Horizonte É Vermelho, criado no seio do PCTP-MRPP.
António Moreira pertencia ao GAC. Carlos Moreira, seu irmão, ao Coro Popular O Horizonte É Vermelho. Ouvi-los é perceber como o fervor revolucionário era vivido nos anos 1970. “Agora percebemos que estávamos, no fundo, a lutar pelo mesmo”. Não na altura. Aí, discussões e diferenças inconciliáveis podiam manifestar-se na simples ordem de uma frase. Exemplo: “A terra faz o pão”, ou “O pão faz a terra”.
Antes, contara como, para pôr em canção aquilo que tinha de ser dito claramente, sem passar pelas metáforas para enganar a censura, se empenhou numa “guerrilha fonográfica”. Ou seja, contactou amigos e os políticos no exílio que tantas vezes o requisitavam para actuações, e propôs-lhes uma pré-compra de um single que gravaria com o dinheiro assim reunido. Single esse, Ronda do soldadinho, que depois entraria clandestinamente em Portugal, “distribuído como um panfleto”. Isto aconteceu há quatro décadas, mas o descrito por José Mário Branco parece estranhamente familiar. Assemelha-se a uma prática que julgamos muito do nosso tempo pós-internet. Crowdfunding.
A tecnologia muda. A música faz-se. As vozes ergueram-se, erguem-se, continuarão a erguer-se.
Esses conflitos eram vividos no estúdio – António recordou como a introdução de um violoncelo numa sessão de gravação do GAC provocou debate intenso, resolvido com a proclamação: “Camarada, o violoncelo também é uma arma!”. E eram vividos em casa pelos Moreira. Estavam em barricadas diferentes, mas habitavam a mesma casa. As letras inscritas em papel que mostraram a quem assistia à mesa-redonda eram passadas na mesma máquina de escrever.
Com António e Carlos Moreira, materializaram-se perante nós essas viagens de norte a sul para levar as canções e a revolução ao povo, quer em comícios onde seriam naturalmente bem-vindos, quer, por exemplo, em festas de paróquia, onde a recepção estaria longe de ser calorosa.
Antes do concerto nocturno de despedida, a conferência seria encerrada com chave de ouro com a presença de José Mário Branco. Determinante na história da música portuguesa dos últimos 50 anos, o autor de Margem de Certa Maneira, em conversa moderada por Hugo Castro e Ricardo Andrade, mostrou-se um contador de histórias cativante e um professor capaz de explicar com pormenor e sageza os detalhes e processos da sua arte. Falou-nos de como o seu trabalho de produção e composição, a que chama “encenação sonora” e que definiu como “a criação do espaço para a emoção”, emana do teatro e do cinema. “Tinha que ser para as minhas canções gravadas no estúdio aquilo que o encenador é para os actores: o representante do público futuro, aquele que tenta chegar ao que quer que público sinta”, explicou Branco. E abriu-nos as portas ao processo criativo, revelando episódios deliciosos, como a escova de cabelo (de Zélia Afonso) raspada sobre um timbale utilizada em Coro da Primavera, uma das canções de Cantigas do Maio, ou a utilização de um carrinho de fricção do filho em Por terras de França. Quando do público lhe perguntaram pelos factores determinantes para a sua formação enquanto músico, identificou três. “As coisas novas que começaram a acontecer na música, como os Beatles e George Martin”, e álbuns como Rubber Soul e Sgt. Peppers, que Sérgio Godinho muito ouvia quando se lhe juntou em Paris. O trabalho feito por Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça na revelação de uma etnografia musical portuguesa distante dos clichés folcloristas do Estado Novo. E “o movimento estudantil e Zeca Afonso”: “Dei cabo da voz até ao meu quarto disco porque queríamos todos imitar o mestre”.

josé mário branco
José Mário Branco com Adriano Correia de Oliveira.