18/12/2015

Conhecer a história do presépio português através de 25 presépios. Exposição no Museu Nacional de Arte Antiga

"O presépio é um tema fortíssimo na cultura portuguesa”. É assim que António Filipe Pimentel, director do Museu Nacional de Arte Antiga, se refere ao tema da nova sala do museu dedicada à história do presépio português e inaugurada na quinta-feira.
A narrativa é contada cronologicamente. O percurso inclui 25 obras, criadas entre o século XVI e XIX. A grande surpresa revela-se logo no início: dois torsos e uma asa, fragmentos de figuras do presépio do Convento de Santa Catarina da Carnota (Alenquer), o mais antigo presépio português feito em barro, que remonta a 1570. Foi encomendado pela infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel, para o presépio do convento, ao retirar-se para Alenquer devido à peste de 1569.
Há referências documentais que provam a existência de presépios em Portugal pelo menos desde o século XVI, mas até há pouco tempo não se sabia da existência física desses presépios.
A escultura presepista portuguesa do século XVII é ilustrada por dois anjos do presépio do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça. A partir do século XVII o presépio começa a individualizar peças preparando aquilo que será depois o presépio português, que se vai complexificando. O número de figuras vai aumentando e, ao longo do século, o presépio vai ganhando cenas de género, que se intensificam na viragem para o século XVIII nas obras de António Ferreira.
António Ferreira é um dos grandes presepistas portugueses e é aquele que Machado de Castro vai admirar e que diz que foi o grande criador do estilo pastoril. Foi com as obras de António Ferreira que se introduziram as cenas pastoris e de vegetação, presentes por exemplo no Presépio do Convento da Nossa Senhora das Necessidades (Lisboa), que já é um presépio característico português, moldado em barro, ao contrário do presépio napolitano, e que se desenvolve sobre um torrão, uma estrutura em cortiça e madeira que nos dá um sentido de perspectiva, quase um sentido pictórico e 3D.
Ao contrário do que se julga, Machado de Castro fez muito poucos presépios. Trabalhou no presépio da Basílica da Estrela e no da Sé. A inovação de Machado de Castro passa por trazer para primeiro plano os reis magos, e não os pastores como era habitual, dando um maior estatuto aos presépios, que eram muitas vezes encomendas da família real. Os grandes presepistas são os que antecipam Machado de Castro, e a exposição mostra obras de outros nomes da escultura presepista portuguesa como António Ferreira, Silvestre de Faria Lobo, Faustino José Rodrigues e José Joaquim de Barros, conhecido como Barros Laborão.
Um dos grandes destaques da sala é o presépio do Convento das Salésias (Lisboa), que se apresenta dentro de uma maquineta (armário do século XVIII). Este presépio une o sentido quase encantatório dos presépios ao sentido teológico. Entre vários pormenores como espelhos e conchas, o presépio mostra diversas cenas, como a Natividade, a Anunciação e o primeiro sonho de Jacó. Tem este sentido de maravilha, de uma máquina que se abre e nos dá a conhecer, [quase como se fosse] uma caixa de surpresas.
O percurso termina com Barros Laborão, o grande presepista dos finais do século XVIII e dos presépios barrocos. O presépio do Paço Patriarcal de São Vicente ilustra o trabalho do escultor. Na sua obra é evidente a enorme qualidade escultórica, a qualidade compositiva, o dramatismo e a elegância das figuras, que já apontam no sentido do rococó, se não até mais longe. A história do presépio em Portugal culminará na Capela das Albertas, marco do barroco nacional que tem reabilitação prevista para breve, e onde será exposto o Presépio dos Marqueses de Belas, terminado na primeira década do século XIX.
O director do MNAA, António Filipe Pimentel, atribui à sala uma “grande capacidade pedagógica, onde é fácil trazer turmas e contar-lhes a história do presépio em Portugal”.
Tocador de Sanfona, de António Ferreira (primeira metade do século XVIII) MNAA
Tocador de Sanfona, de António Ferreira (primeira metade do século XVIII) MNAA.

15/12/2015

Goya: The Portraits - exposição na National Gallery de Londres

A crítica é unânime: é a exposição do ano no Reino Unido, uma das melhores da década. Goya: The Portraits, na qual a National Gallery de Londres nos dá o mestre espanhol como retratista, é a sensação do calendário internacional das artes neste Inverno. Nunca antes, Francisco de Goya (1746-1828), considerado por muitos como o último dos clássicos e o primeiro dos modernos espanhóis, tinha tido uma exposição focada apenas nos seus retratos e é por isso também que a mostra de Londres surpreende. São 70 obras, oriundas das mais diversas colecções (privadas e públicas), reunidas pela primeira vez num só espaço. São sete salas nas quais a vida de Goya se cruza com a história do seu país.
Há muito tempo que conhecemos muitos dos seus retratos mas provavelmente nunca olhámos para eles como um todo, até porque estes são apenas uma parte da vasta e importante obra de Francisco de Goya, que pintou até morrer, passava já dos 80 anos. Segundo os estudiosos da obra do espanhol, resistem hoje cerca de 150 retratos, um terço da obra total – quase metade está exposta na National Gallery na exposição inaugurada em Outubro e que se mantém até ao dia 10 de Janeiro de 2016.
Até agora, os retratos de Goya têm sido estudados como uma subsecção dentro da sua obra, não tendo sido vistos ou pensados de forma isolada. Goya: The Portraits, procurou contar a história da vida extraordinária do espanhol e os tempos turbulentos que viveu através dos seus retratos, dando vida a uma área menos conhecida da sua carreira e que foi claramente muito importante.
Quando entramos na exposição, somos recebidos pelo auto-retrato de Goya aos 34 anos, muito pouco tempo antes de Goya se tornar Goya, o artista bem relacionado e desejado por todos. Foram precisos três anos para que Goya conseguisse a sua primeira encomenda importante: o "Retrato do Conde de Floridablanca", o magistrado nomeado primeiro-ministro pelo rei Carlos III. Estávamos em 1783 e as portas dos círculos oficiais de Madrid abriam-se para o pintor – o Infante D. Luís de Bourbon, irmão mais novo de Carlos III, foi o seu primeiro grande patrono. Goya passou algum tempo na residência deste e foram vários os retratos de família que ali produziu, com destaque para "A Família do Infante D. Luís" (1784), um óleo de grandes dimensões com uma cena doméstica e que representava o primeiro retrato grande de grupo feito por Goya. Obra que recorda "As Meninas", pintada em 1656 por Diego Velázquez (1599-1660): ambas retratam uma cena íntima familiar e nas duas pinturas os dois artistas representam-se na tela à esquerda. Tanto o "Retrato do Conde de Floridablanca", que pertence à colecção do Banco de España, como "A Família do Infante D. Luís", há décadas na fundação italiana Magnani Rocca, em Parma, integram esta exposição.
Conhecer a obra de Goya não passa apenas pela sua vida mas também por aquelas que foram as suas referências e que de várias formas o pintor foi prestando homenagem nos seus trabalhos. "A Família do Infante D. Luís" é um exemplo mas há mais para descobrir nesta exposição de Londres. É já famoso o que o Javier, filho de Goya, disse, que o seu pai tinha três mestres: Velázquez, Rembrandt e a Natureza. Velázquez é talvez o mais importante quando falamos de retratos. Não só Goya imitou o confiante trabalho com o pincel para capturar realces e texturas, como também foi buscar emprestados formatos e poses de Velázquez: para os seus retratos de Carlos III e Carlos IV com roupa de caça, Goya recorreu claramente ao retrato que Velázquez fez de Filipe IV. No final dos anos 1770, Goya estudou, copiou e gravou os retratos de Velázquez na Colecção Real Espanhola e por isso estava muito familiarizado com o trabalho do artista. Vale a pena recordar também que Goya aspirou a tornar-se no Primeiro Pintor da Câmara do Rei, um lugar que Velázquez havia ocupado cerca de 150 anos antes e para o qual mais nenhum artista espanhol tinha voltado a ser apontado.
A reputação de Goya crescia de tal forma que este não se ficava apenas pela corte, tornando-se no pintor predilecto de todas as figuras importantes da sociedade (aristocratas, políticos, intelectuais, militares, etc.). Em 1789, depois da morte de Carlos III, Goya ocupa finalmente o ambicionado cargo de Primeiro Pintor da Câmara do Rei, nomeado então por Carlos IV.
A sua forma de pintar, que rejeitava a idealização dos retratados e introduzia elementos originais, não se sentindo obrigado a fazer com que aqueles que posavam para si parecessem bonitos ou perfeitos, fez de Goya um retratista único. Os retratos de Goya têm uma honestidade e uma modernidade que, ainda hoje, atingem em cheio o público. As pessoas falam muitas vezes da intensidade psicológica dos retratos de Goya, mas a sua abordagem ao retrato foi antes de tudo a descoberta da verdade – pintar a essência da pessoa que se sentava à sua frente. Isto é o que todos os retratistas querem alcançar e é o que torna os seus retratos relevantes para nós, mesmo hoje, 200 anos depois. Goya fugia ao estereótipo – o próprio dizia que na pintura não havia regras. E isso fica claro ao percorrer a exposição. A cada sala, uma nova faceta do mestre. Goya arriscava. Tanto se podia focar nas feições de quem pintava como em detalhes como o calçado ou o vestuário. Goya não foi um pintor, Goya foi vários.
Através da variedade de objectos em exposição, vê-se claramente a evolução do estilo de Goya: dos primeiros retratos nos anos 1780, aos retratos extremamente confiantes dos anos 1790 e inícios de 1800, aos últimos que pintou durante o exílio auto-imposto em Bordéus, nos anos 1820. A diversidade dos retratos de Goya é notavelmente evidente – não há um retrato que se pareça com outro e Goya consegue sempre reinventar o retrato.
Diferente também é poder apreciar algumas destas obras expostas lado a lado pela primeira vez. A National Gallery oferece a todos uma oportunidade única de ver tantos retratos de Goya, reunidos num só lugar. É uma oportunidade de ver grupos de retratos reunidos, como é o caso do Conde de Altamira [um óleo de 1787 e que pertence à colecção do Banco de España], com a sua mulher [A Condessa de Altamira, de 1787-8, da Lehman Collection, Nova Iorque], e o filho [Manuel Osorio Manrique de Zuñiga, 1788, Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque], juntamente com a sogra do conde [A Viúva Marquesa de Vilafranca, 1796, Museu do Prado, Madrid], e o seu cunhado, o Marquês de Vilafranca e mais tarde Duque de Alba [óleo de 1795, Museu do Prado, Madrid].
Goya: The Portraits é uma ocasião, que dificilmente se repetirá, pelo menos desta dimensão, para ver ao vivo retratos que estão normalmente em mãos privadas. Algumas peças emprestadas podem ser vistas pela primeira vez como é o caso de "Don Valentín Bellvís de Moncada y Pizarro" (Fondo Cultural Villar Mir, Madrid) ou o desenho de "Francisco Otín" (colecção privada). Outras, raramente viajaram – se é que alguma vez viajaram – para fora das suas casas habituais, como acontece com "A Duquesa de Alba" da The Hispanic Society of America, que está no Reino Unido pela primeira vez, assim como o par excepcional de retratos de "Carlos IV Com Roupa de Caça" e "Maria Luísa com uma Mantilha Vestida", os dois do Palácio Real, em Madrid. A estrela da exposição é mesmo a pintura a óleo da "Duquesa de Alba" (1762-1802), uma das mulheres mais destacadas da sociedade espanhola e com quem Goya mantinha uma relação muito próxima. Vestida com o traje tradicional espanhol, a duquesa, já viúva, aponta o dedo indicador para o chão onde se lê, ao contrário, "solo Goya". É justamente um dos ícones do retrato europeu do século XVIII. Também se destaca o retrato de "Josefa Bayeu", a mulher de Goya, e cuja obra pertence a uma colecção privada. Este desenho mostra um lado mais privado de Goya. É um esboço íntimo da sua mulher, de perfil, sentada numa humilde cadeira de cozinha. A privacidade deste desenho, que provavelmente nunca foi pensado para ser exposto em público, é um maravilhoso contraponto aos retratos mais pomposos de Goya da aristocracia espanhola, pelos quais era mais conhecido.
Existe uma sala nesta exposição dedicada aos colegas artistas e amigos de Goya. Os retratos nesta sala estão entre os seus mais francos, íntimos e realistas: é como se Goya estivesse realmente numa conversa com os retratados. Os retratos variam de escala e de suporte, de um desenho a giz vermelho do historiador de arte "Juan Agustín Ceán Bermúdez" (colecção privada), na qual podemos ver o requintado controlo de Goya no uso de giz; à pintura de pequena escala de um homem que se pensa ser "Asensio Julià" (Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid), que a determinado momento pertenceu ao comerciante francês Paul Durand-Ruel e em cuja posse foi provavelmente visto por Édouard Manet; a toda uma série de retratos de artistas (entre os quais, um dourador, um arquitecto e uma actriz). Nestes retratos dos amigos pode-se ver que Goya estava livre de qualquer constrangimento – ele sentia que podia representar estas pessoas da maneira que mais desejasse, e essa liberdade está reflectida na sua ousada e expressiva técnica de pintura.
Pinturas, desenhos, uma litografia, miniaturas em cobre e retratos com figuras múltiplas em grandes telas. As obras vieram de todo o mundo – e foi difícil convencer as pessoas a participarem com as suas obras-primas de Goya. A exposição esteve em preparação dez anos e as negociações dos empréstimos às vezes foram tensas.
No final, na sétima sala, o último quadro que vemos é o retrato de "Mariano Goya e Goicoechea", o neto que Goya foi capaz de pintar pouco antes de morrer. É o último trabalho que se conhece do pintor, feito provavelmente no Verão de 1827, quando Goya tinha 81 anos – pertence ao Meadows Museum, em Dallas, nos Estados Unidos.
Replicar esta exposição para outro museu não parece ser opção. A resposta do público também tem sido impressionante.
Goya
Auto-retrato de Goya datado de 1792-5.
MUSEO DE LA REAL ACADEMIA DE BELLAS ARTES DE SAN FERNANDO, MADRID
Goya
A Família do Infante D. Luís (1784)
FONDAZIONE MAGNANI ROCCA, PARMA
Goya
A Duquesa de Alba (1797)
MADRID, MUSEO NACIONAL DEL PRADO
Goya
Carlos IV Com Roupa de Caça (1799)
PATRIMONIO NACIONAL
Goya
Maria Luísa com uma Mantilha Vestida (1799)
PATRIMONIO NACIONAL
Goya
O neto de Goya, Mariano Goya y Goicoechea (1827)

04/12/2015

Há um documentário que desvenda parte da Lisboa romana

A descoberta de um fundeadouro romano no subsolo de Lisboa, feita pelos arqueólogos durante a construção de um parque de estacionamento na Praça D. Luís I, deu origem a um documentário. Com esta obra, que inclui uma recriação em três dimensões de Olisipo, Raul Losada quer dar a conhecer a cidade com cerca de dois milénios que se esconde debaixo dos nossos pés.
O documentário Fundeadouro Romano em Olisipo, é apresentado como “um projecto de divulgação do património arqueológico”.
A história deste documentário começa com a notícia da descoberta, pelos arqueólogos da empresa ERA - Arqueologia, de um fundeadouro romano, durante a construção de um parque de estacionamento subterrâneo da empresa Empark. Nesse local de ancoragem de embarcações, que terá sido usado pelo menos entre os séculos I a.C. e V d.C., foram também encontradas meia centena de ânforas e algumas peças de cerâmica. Entre os achados feitos nessa altura estava ainda uma madeira, com cerca de 8,5 metros de comprimento, que mais tarde se concluiu ser parte de uma embarcação romana que terá navegado no Atlântico.
Raul Losada, que trabalha como operador de imagem e mantém há vários anos no Facebook a página Portugal Romano (criada para divulgar a arqueologia romana em Portugal), leu a notícia e dirigiu-se às escavações com a intenção de obter autorização para fazer o seu registo. “Inicialmente a ideia era fazer um pequeno vídeo para publicar no Portugal Romano”, explica, acrescentando que o projecto foi crescendo até se perceber que havia “potencial” para um documentário.
Também envolvido no projecto foi César Figueiredo, um mestre em ilustração que nos últimos anos tem trabalhado na área da arqueologia e do património. A posposta inicial era que desenhasse um navio romano, mas o trabalho de “ilustração e arqueologia virtual em três dimensões” realizado para o documentário acabou por incluir uma reconstituição da cidade romana de Olisipo.  “Foi um trabalho monstruoso”, sublinha Raul Losada, para quem se trata de “uma inédita e surpreendente recriação”. César Figueiredo confirma que este foi um trabalho que demorou muitos meses a concluir, acrescentando que tal se deveu à necessidade de consultar uma série de fontes de informação e de promover várias reuniões com investigadores da área. O ilustrador admite que fazer "uma espécie de reatrato robot" da cidade há cerca de dois milénios envolveu algum risco, dado que o conhecimento que se tem dessa época “ainda é parco”, apesar haver “estudos recentes de vários investigadores” sobre a matéria. César Figueiredo adianta que a recriação em três dimensões foi feita tendo por base informações já dadas como certas, como “os limites da cidade”, “o traçado da muralha” e a localização de alguns “pontos-chave”, como as fábricas de produção de preparados de peixe e o teatro romano. “Temos consciência de que não é 100% a cidade que existia. É uma visão aproximada”, constata o ilustrador. “É a imagem do que era expectável ser a cidade”, corrobora Raul Losada, reconhecendo que são muitos os “pontos negros” que permanecem por desvendar e que por isso fazer esta recriação foi quase como montar um puzzle. “Todos os dias se estão a descobrir coisas em Lisboa", remata. Essa ideia é também sublinhada no documentário, no qual se diz que “aos poucos a Lisboa romana vai sendo revelada, muitas vezes por mero acaso”.
“Debaixo da cidade esconde-se uma outra Lisboa, praticamente desconhecida”, acrescenta-se no filme, que inclui o depoimento de investigadores e arqueólogos e se centra essencialmente no “achado singular” que foi o fundeadouro romano, no qual foram também encontrados “um notável conjunto de ânforas” e a madeira de uma embarcação, classificada como “um achado raro e uma das peças mais valiosas deste encontro feliz com o mundo romano”. Numa exibição do documentário que teve lugar na Ordem dos Arquitectos, o administrador da ERA - Arqueologia considerou que este é “um documento paradigmático do que devia ser feito na arqueologia portuguesa”, e que é “comunicar de forma alargada”. “Tendencialmente a arqueologia é muito escondida, muito envergonhada, muito realizada por trás de tapumes”, lamentou Miguel Lago, para quem isso “não faz sentido”. Para este responsável, o documentário Fundeadouro Romano em Olisipo “é um trabalho excepcional”, que “seguramente vai ter um impacto muito grande”. “Curiosamente foi feito não por uma instituição mas por uma pessoa individual”, notou ainda Miguel Lago.
Tanto Raul Losada como César Figueiredo têm a expectativa de que a concretização deste projecto, e a demonstração de que não só é possível fazer algo assim como de que há um público interessado, lhes abra portas e permita que este seja apenas o primeiro documentário de arqueologia feito pela dupla.

Fundeadouro romano em Olisipo
Reconstituição de Olisipo.

24/11/2015

O mistério de The Little Street de Vermeer

Durante três séculos discutiu-se sobre a localização da rua retratada pelo pintor barroco Vermeer (1632-1675) em The Little Street. Agora, Frans Grijzenhout, professor de História de Arte na Universidade de Amsterdão, descobriu o sítio exacto das famosas casas de tijolo: é Tripe Gate ("Portão das Tripas"), os números 40 e 42 da Vlamingstraatn em Delft. Depois de várias teorias avançadas por especialistas ao longo dos anos, o professor recorreu ao arquivo municipal para investigar se, afinal, a rua seria fictícia ou real. E chegou a um documento intitulado Livro Fiscal da Dragagem dos Canais na Cidade de Delft, datado de 1667 (cerca de dez anos depois de o quadro ter sido pintado), que regista a taxa que os proprietários de casas no canal tinham de pagar para a dragagem. A consulta revelou que, na época, apenas as casas que hoje correspondem aos números 40 e 42 da Vlamingstraat podiam ser as retratadas no quadro.
“A resposta à pergunta sobre a localização de The Little Street de Vermeer tem uma grande importância quanto à forma como olhamos para este quadro e quanto à imagem que temos de Vermeer enquanto artista”, diz Pieter Roelofs, curador das obras do século dezassete do Rijksmuseum (Amsterdão), numa nota publicada no site da instituição, que detém a obra do pintor e que inaugurou na semana passada uma exposição a propósito da descoberta, patente até 13 de Março de 2016. Durante a investigação, Frans Grijzenhout consultou outras fontes, em particular o Google Maps. Para comemorar a descoberta, o Google Art Project fez uma compilação especial com algumas informações sobre a obra. Segundo Frans Grijzenhout, a pintura é “o mais antigo ‘retrato’ do exterior de uma casa vulgar na Arte do Norte da Europa”. As casas originais retratadas foram demolidas e, no seu lugar, foram reconstruídas outras no final do século XIX, mantendo-se a passagem visível entre as duas casas no quadro. A investigação revelou ainda que a casa da direita retratada pertencia a Ariaentgen Claes van der Minne, uma tia viúva do pintor, que sustentava os seus cinco filhos vendendo tripas. Por esse motivo, a passagem era conhecida como Penspoort ("Portão das Tripas"), nome que surpreendentemente é referido num documento de 1877. O Rijksmuseum avançava que a obra tinha sido pintada em 1658, mas Frans Grijzenhout acredita que a pintura foi feita mais tarde, entre 1660 e 1665. Até à descoberta revelada pela investigação, a teoria mais aceite entre os especialistas apontava que as casas retratadas podiam ser vistas a partir da pousada Mechelen, de que Vermeer era proprietário. Vermeer nasceu e viveu toda a sua vida em Delft. Pintou apenas 45 quadros, dos quais 35 sobreviveram até hoje. Entre as suas obras, é aclamado pelas pinturas Rapariga com Brinco de Pérola e A Leiteira.
Vermeer
A pintura de Vermeer, The Little Street, e os números 40 e 42 da Vlamingstraat.

17/11/2015

O projecto Scan Pyramids - sondar as pirâmides do Egipto

O projecto Scan Pyramids mostra câmaras térmicas de infravermelhos a colorir as pirâmides de Gizé do amarelo ao magenta (fúcsia) – e a seguir, imagens daquelas majestosas construções de pedra filmadas por drones. Promete descobertas fundamentais graças à combinação “excepcional” das ciências exactas e da egiptologia.
O objectivo: conseguir responder à pergunta que todos fazemos desde a mais tenra infância: “O mistério das pirâmides vai ser resolvido?”
Este ambicioso projecto, lançado há semanas, recorre a um método não invasivo e não destrutivo, à base de câmaras de infravermelhos, para cartografar, sem causar um único arranhão, o coração das pirâmides de Gizé – esses monumentos com mais de quatro milénios de idade.
As câmaras também já serviram, em inícios de Novembro, para sondar o túmulo de Tutankamon, em Luxor, tentando confirmar a credibilidade da teoria do arqueólogo britânico Nicholas Reeves, que pensa que a lendária rainha Nefertiti está lá sepultada, numa câmara secreta. Recorde-se que, em Agosto deste ano, Reeves anunciou ter encontrado indícios de que Nefertiti teria sido secretamente sepultada junto de Tutankamon.
Ao sondarem as pirâmides, os cientistas esperam detectar “a presença de corredores e câmaras desconhecidos” – e até vestígios de rampas que permitiriam elucidar o enigma da sua construção.
O ministro egípcio das Antiguidades, Mahmoud el-Damati, revelou os primeiros resultados do projecto Scan Pyramids, lançado a 25 de Outubro sob a direcção do seu ministério. Uma equipa de cientistas egípcios, franceses, canadianos e japoneses já conseguiu observar anomalias térmicas “impressionantes” no flanco leste da pirâmide de Quéops, perto do chão, bem como outras, menos flagrantes, a meio da fachada.
Alguns dos enormes blocos de pedra apresentam de facto temperaturas que se afastam até seis graus Celsius da temperatura dos blocos adjacentes. Isso traduz-se, nas imagens de câmara térmica, pelo aparecimento de cores quentes, vermelhas e amarelas, enquanto o resto do monumento funerário adquire uma cor entre azul e magenta, uma assinatura térmica mais fria.
As deviações de temperatura detectadas assinalam a presença de cavidades – ou pelo menos, de correntes de ar – e abrem o caminho a uma multiplicidade de interpretações, que deverão ser estudadas até ao termo do projecto, em finais de 2016.
Para testar as câmaras de infravermelhos, a missão Scan Pyramids começou por realizar medições, em inícios de Novembro, no túmulo de Tutankamon. E de facto, as diferenças de temperatura aí registadas num dos muros abonam em favor da hipótese de Nicholas Reeves, pelo menos no que respeita à existência de uma câmara secreta. Se para Reeves se trata da câmara de Nefertiti, para el-Damati poderá ser o de outra rainha. As análises prosseguem, mas o ministro afirma desde já estar à espera da “descoberta do século XXI” para a egiptologia. Nefertiti, a rainha cuja beleza se tornou legendária, foi, há 3300 anos, a esposa principal de Akenaton, o pai de Tutankamon – o único faraó cuja sepultura foi encontrada intacta em 1922 (todas as outras foram pilhadas ao longo dos milénios). O túmulo de Tutankamon encerrava 5000 peças, em grande parte de ouro – um dos mais fabulosos tesouros jamais descobertos, que inclui a celebérrima máscara funerária em ouro maciço, incrustado de pedras preciosas, que enfeitam os manuais de história do mundo inteiro. O antigo Egipto guarda ainda mil e um segredos. Muitos egiptólogos concordam em dizer que o surgimento de novas tecnologias e o contributo de especialistas das ciências exactas poderão conduzir a novas descobertas. “Todos os engenheiros já sonharam com as pirâmides e o património egípcio representa um formidável terreno para a inovação e a imaginação fazerem progredir as várias disciplinas”, estima Mehdi Tayoubi, fundador do instituto francês Herança, Inovação Preservação (HIP), que coordena esta missão científica. Para o egiptólogo Achraf Mohie, o que se esconde por detrás da parede da pirâmide de Quéops não é o que mais interessa nesta fase das investigações, mas sim as próprias anomalias térmicas, que constituem, só por si, uma “descoberta inédita”.
pirâmides de Gizé
As pirâmides de Gizé a serem estudadas com térmicas de infravermelhos.

13/11/2015

Escavada em Cabo Verde a igreja mais antiga dos trópicos

“Quem visita a Cidade Velha pela primeira vez pode ser perdoado por não reconhecer nesta povoação aprazivelmente ensonada o grande entreposto comercial que foi em tempos, no cruzamento das rotas do tráfico de escravos do Atlântico.” É assim que começa o relato — que deverá ser publicado em breve na revista Current World Archaeology — das escavações arqueológicas lideradas em Cabo Verde (ilha de Santiago) por dois cientistas da Universidade de Cambridge (Reino Unido).
Em colaboração com colegas cabo-verdianos e portugueses, estudantes e trabalhadores locais, Marie Louise Stig Sørensen e Christopher Evans têm trabalhado, desde 2007, não só para resgatar do esquecimento a mais antiga construção religiosa europeia a ser erguida nos trópicos, como também parte do passado histórico da população cabo-verdiana.
Quando as ilhas de Cabo Verde foram descobertas pelos portugueses em 1456 — décadas antes de Cristóvão Colombo descobrir a América —, não estavam habitadas. As dez pequenas ilhas que compõem o arquipélago são feitas de rocha vulcânica e até àquela altura não havia lá nem árvores, nem pessoas, nem mamíferos. Mas aquilo que começou por ser um local estratégico para o comércio com a África subsariana transformou-se, no século XVI, num centro global de comércio de escravos africanos — principalmente com destino à nova colónia portuguesa do Brasil. Estas ilhas foram um ponto de partida para a primeira vaga de globalização, integralmente baseada no tráfico de escravos.
Os portugueses transformaram as ilhas num dos principais centros do tráfico transatlântico de escravos, trazendo com eles plantas cultiváveis, animais domésticos e pessoas — comerciantes, missionários e milhares de escravos. Os escravos eram seleccionados e vendidos antes de serem despachados para as plantações espalhadas por todo o mundo atlântico. Uma vez que o arquipélago de Cabo Verde se situa mais ou menos a meio caminho entre a costa de África Ocidental e o Brasil, a descoberta do Brasil e o estabelecimento de plantações ali fez explodir o comércio que passava por Cabo Verde.
A Cidade Velha, instalada num pequeno vale fluvial pautado por campos de cana-de-açúcar e palmeiras, foi a primeira cidade que Portugal fundou em África, na sua aventura dos Descobrimentos. E durante 300 anos, foi não só a capital de Cabo Verde, como também chegou a ser a segunda cidade mais rica do império português. A Cidade Velha foi declarada Património Mundial da Humanidade pela UNESCO em 2009.
Em 2006, Sørensen e Evans foram convidados pela Universidade Jean Piaget de Cabo Verde a realizar escavações na Cidade Velha com o apoio do Ministério da Cultura daquele país. O principal objectivo consistia em localizar a Capela da Nossa Senhora da Conceição, que se pensava ser a igreja original da Cidade Velha — e, como tal, candidata a ser uma das primeiras igrejas cristãs dos trópicos.
Konstantin Richter, historiador de arquitectura [da Universidade Jean Piaget] tinha reparado numa plataforma com argamassa que batia certo com o mapa que indicava a localização da igreja. A seguir foi localizada a fachada da igreja e após duas campanhas de escavações preliminares concluíram que tínham encontrado a igreja. Agora, os cientistas deram por acabada a escavação e a conservação do monumento, que deverá passar a poder ser visitado pelo público.
Os primeiros vestígios da Capela da Nossa Senhora da Conceição remontam à década de 1470, com uma construção de maiores dimensões datada de 1500.
Foi possível recuperar a totalidade da planta de superfície da igreja, incluindo a sacristia, a capela lateral e a varanda lateral. Construída por volta de 1500, a sua porção mais complicada é o coro situado na extremidade oriental, onde se erguia o altar-mor, e que foi sofrendo múltiplas reconstruções devido aos estragos causados pelas cheias sazonais.
Para além da igreja, os arqueólogos descobriram várias lápides de dignitários locais da época. Uma delas é a de Fernão Fiel de Lugo, traficante de escravos e tesoureiro da cidade entre 1542 e 1557. Os cientistas também descobriram um cemitério, cavado no chão da igreja, onde estimam que mais de um milhar de pessoas foi enterrado antes de 1525 — uma autêntica “cápsula do tempo” dos primeiros 50 anos de vida colonial na ilha. Já foram realizadas análises que indicam que cerca de metade eram corpos de africanos e que o resto dos sepultados provinha de várias partes da Europa. Uma escavação está prevista para analisar esses restos mortais de forma a conhecer melhor a população fundadora do país e as primeiras fases da história dos escravos que por lá passaram.
Com base nos textos históricos, sabemos que houve uma sociedade ‘crioula’ que se desenvolveu rapidamente, com terras herdadas por mestiços que tinham direito a desempenhar cargos oficiais e os restos mortais agora descobertos constituem uma oportunidade de testar esta representação das primeiras gentes de Cabo Verde.
As escavações revelaram ainda faianças e azulejos vindos de Portugal, objectos de pedra provenientes da Alemanha, porcelanas chinesas e cerâmicas oriundas de várias partes da África Ocidental. Foi, aliás, essa a razão — em parte graças a circunstâncias fortuitas — da entrada na equipa da investigadora Tânia Casimiro, arqueóloga portuguesa especialista de faiança portuguesa da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É ela que faz o registo, identificação e estudo de toda a cerâmica identificada nas escavações.
Ilha de Santiago Cabo Verde
Ruínas da igreja cristã mais antiga jamais descoberta na África subsariana.
Ilha de Santiago Cabo Verde
Lápides de traficantes de escravos portugueses reveladas durante a escavação.

30/10/2015

Adoração dos Magos, pintura de Domingos Sequeira

A campanha só agora começou, mas isso não impediu o director do Museu Nacional de Arte Antiga de já lhe ter reservado um lugar nas futuras galerias. A Adoração dos Magos, que integra um conjunto de quatro óleos a que os historiadores se referem como o “testamento” de Domingos António de Sequeira, vai ter a seu lado outras obras deste que é um dos mais importantes pintores portugueses do século XIX. Lá estarão a Alegoria à Constituição, a Coroação da Virgem, o Retrato da Família do 1.º Visconde de Santarém e o do conde de Farrobo, assim como uma das pinturas que o artista fez quando, regressado dos seus primeiros anos em Roma, achou que o meio cultural português era demasiado pequeno e que o melhor mesmo era tornar-se monge na Cartuxa de Laveiras.
“Se vamos arriscar uma campanha como esta, inédita no país, temos de ser optimistas. E eu sou um optimista congénito”, diz António Filipe Pimentel, director de Arte Antiga. “Até já encomendámos a tabela da obra”, com a respectiva legenda e informação adicional. A campanha a que se refere destina-se a comprar a pintura Adoração dos Magos por 600 mil euros a um privado, descendente do primeiro duque de Palmela, e pretende atrair grandes e pequenos mecenas. Será a primeira do género em Portugal, embora seja prática comum em vários países há décadas. A ideia, explica, é envolver a sociedade civil na aquisição de uma “obra absolutamente excepcional” para o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), a sua “casa natural”, já que Sequeira (1768-1837) é o artista mais representado na sua colecção – 45 pinturas, embora 23 sejam esboços mais ou menos acabados, e 760 desenhos, mais de metade dos que lhe são hoje atribuídos (1417).
Quando António Filipe Pimentel chegou à direcção do MNAA, em 2010, já se discutia – e preparava – a compra da Adoração dos Magos (1828) desde o ano anterior. O seu dono, que prefere manter o anonimato, manifestara a intenção de a vender e disponibilizava-se a fazê-lo directamente ao museu, privando-se do valor mais alto que poderia atingir no mercado de leilões, sobretudo o português, já que, no estrangeiro, lembra Isabel Cordeiro, técnica do MNAA e antiga directora-geral do património, “Sequeira é muito pouco conhecido” e, por isso, não alimentaria grandes disputas. Seiscentos mil euros, garante o director do MNAA, é uma cifra definitiva, que não foi sujeita a qualquer negociação. Porquê este preço? É o valor pelo qual a obra foi segurada à data da última exposição que integrou (D. João VI e o seu tempo), no Palácio Nacional da Ajuda, em 1999, explica Pimentel. “É um preço com mais de 15 anos. Estou convencido de que no mercado nacional encontraria facilmente comprador e é muito provável que atingisse um valor mais elevado. O facto de o proprietário insistir que fique aqui é um acto de generosidade, de cidadania. É preciso não esquecer que o dono desta Adoração está à espera de a vender há seis anos. Tem estado à nossa espera.”
A relevância desta compra para o museu não tem a ver com valores de mercado, que dependem sempre das circunstâncias, sublinha Cordeiro, defendendo que o que interessa é o peso simbólico que a pintura tem para Portugal e para a colecção do MNAA. “Trata-se de uma obra de grande qualidade de um dos maiores pintores portugueses do século XIX, para muitas pessoas o maior. É vital para dar coerência e força ao discurso do museu sobre a pintura portuguesa, que começa um pouco antes dos Painéis de São Vicente [c.1470] e acaba em meados do XIX. Esta obra vem preencher uma lacuna, uma cratera, fechando com uma peça-chave a história que as galerias novas vão contar [a partir de 2016].”
Essa “lacuna” diz respeito à fase final de Sequeira – os últimos anos em Roma, de intensa experimentação – que, com a Adoração, passaria a estar representada “ao mais alto nível”. É impossível falar da sua carreira, argumenta Pimentel, sem nos demorarmos neste testamento que tem um “lado de exegese muito grande”, um “sentido profundo de fim”.
A pintura que o MNAA quer agora comprar faz parte da chamada “série Palmela”, um conjunto de quatro telas sobre a vida de Cristo (todas com 100X140cm) – Descida da Cruz, Adoração dos Magos, Ascensão e Juízo Final –, que terão sido executadas entre 1827 e o começo da década de 1830 (o que se sabe ao certo é que, devido à doença que o deixou física e mentalmente incapaz, em 1833 Sequeira já não trabalhava e que o óleo do Juízo, o último, está inacabado). As obras foram compradas por D. Pedro de Sousa Holstein, duque de Palmela, à filha do artista, em 1845, e estão ainda hoje nas mãos dos seus descendentes (estiveram todas no MNAA na última exposição ali dedicada ao artista, em 1997).
“Começa aqui a compra das quatro”, brinca Pimentel, sem deixar de sublinhar que basta que cada português contribua com seis cêntimos para que a Adoração passe a ser um privilégio de todos – e não apenas de alguns. “Se tudo correr bem, daqui a seis meses só nos faltarão três.”
Também Alexandra Markl, conservadora de desenho do MNAA e autora de uma tese de doutoramento sobre Sequeira (2013), gostaria de ver toda a “série Palmela” a título permanente nas paredes do museu. Em primeiro lugar, pela qualidade pictórica, em segundo pela coerência que é capaz de imprimir ao discurso da própria colecção. Sequeira é, lembra, um pintor formado na melhor tradição, que vive num tempo de profundas transformações, em que o neoclassicismo está a chegar ao fim, em que os artistas procuram novos caminhos e o romantismo dá os primeiros passos.
“Esta Adoração, tal como a Descida, é uma obra nocturna, com muitas figuras. Tem uma luz mística, intimista, e uma paleta quente. Faz lembrar Rembrandt [pintor holandês do século XVII]”, diz Alexandra Markl. “Ela é um epílogo natural para a história da pintura antiga portuguesa que começamos a contar um pouco antes dos Painéis de S. Vicente. E porquê? Porque ela vem do passado mas está à procura de algo que é inteiramente novo.”
Como se tudo isto não bastasse para justificar a compra da Adoração, Markl lembra que o museu tem já dezenas dos desenhos preparatórios e os quatro cartões da série (estudos finais para as pinturas), resgatados dos cofres do Montepio de Roma, em 1859, pelo marquês de Sousa Holstein (1838-1878), filho do primeiro duque de Palmela e autor de uma biografia, possivelmente inacabada e hoje desaparecida, de Sequeira. Quando a colecção da família foi a leilão, 20 anos mais tarde, estes cartões foram comprados para a Real Academia de Belas-Artes, integrando depois o acervo do MNAA. “Estes cartões provam que Sequeira era um mestre do desenho, muitíssimo ousado e inovador. Provam também que o tratamento da luz tem uma importância absolutamente central na sua produção, sobretudo nos trabalhos finais.”
Desenhador exímio, pintor talentoso, Domingos Sequeira fez a sua formação em Portugal e em Itália, trabalhou para príncipes, aristocratas e burgueses, e chegou a pintor régio, no meio de um percurso tantas vezes conturbado que incluiu um breve período de vida monástica, acusações de colaboracionismo (com os franceses das Invasões) e até a prisão, na noite de Natal de 1808. Liberal entusiasta, acabou por optar pelo exílio em 1823, vivendo em Paris os três anos seguintes e em Roma, que conhecia bem como estudante de pintura, a última década de vida. Controverso, impulsivo e pouco disciplinado quando se tratava de ensinar – assim o descreve Markl – Sequeira trabalha muito, procurando sempre aperfeiçoar-se e, nos últimos anos em Roma, entrando no debate sobre o futuro da pintura a que a comunidade artística se dedicava.
“O bom Domingos Sequeira é certamente dos bons pintores da Europa do seu tempo”, defende Pimentel, citando como obras de referência, além da Adoração dos Magos e das restantes da “série Palmela”, o Retrato da família do 1.º Visconde de Santarém ou os do conde de Farrobo e de João Baptista Verde, amigo e cunhado do artista.
O “capital simbólico” desta Adoração dos Magos, precisa Raquel Henriques da Silva, prende-se com a importância do seu autor para a história da arte portuguesa e com as características da própria pintura, e prende-se também com as circunstâncias da sua aquisição no século XIX e com o lugar que ocupa no percurso de Domingos Sequeira. “É uma obra de uma qualidade pictórica absolutamente extraordinária. O acerto entre o tema e a sua execução é primoroso, com as figuras a dissolverem-se sob a acção da luz. É de uma grande modernidade, transformadora, e foi comprada para uma colecção que fez história na arte portuguesa, a dos Palmela.” A modernidade a que se refere tem como referente, no passado, Rembrandt, e, no tempo de Sequeira, William Turner (1775-1851). Tal como Francisco de Goya (1746-1828), diz Raquel Henriques da Silva, Sequeira passou de artista do Antigo Regime a pintor da revolução, viveu uma guerra civil, foi perseguido e emigrou por motivos políticos. “Nos tempos que vivemos hoje, a história do Sequeira é fácil de passar, mesmo a um público que não o conheça e que não morre por isso. É uma boa altura para falar nele e esta campanha é também uma oportunidade de levar as pessoas a descobrirem uma obra que vale mesmo a pena, de que se podem orgulhar.” A professora universitária lembra ainda que acções deste tipo, até aqui inéditas em Portugal, são prática comum noutros países e defende que o envolvimento dos cidadãos deve vir depois da intervenção do próprio Estado: “Quando falamos da possibilidade de comprar para Arte Antiga um tesouro como este, o Estado deve dar o exemplo e dar o exemplo significa ser o primeiro subscritor da campanha. Dar o exemplo não é chegar no fim e, caso a campanha tenha ficado aquém do objectivo, pôr o dinheiro que falta.” Acrescenta esta académica que, por princípio, a participação estatal não deve ser inferior a um terço do custo da obra a adquirir. “Um terço é o mínimo, sem isso não há credibilidade, não há como o Estado esperar que o comum dos cidadãos faça da compra de uma pintura de um artista de quem até poderá nunca ter ouvido falar uma causa sua.” O que tem acontecido nos últimos tempos, é que, sem uma estratégia de aquisições, a Secretaria de Estado da Cultura (SEC) tem reagido ao mercado sempre em cima da hora. Ainda que reconheça que, apesar de tudo, tem feito algumas compras, houve pelo menos um caso em que “acordou tarde de mais”: O Almoço do Trolha, de Júlio Pomar, ícone da pintura neo-realista portuguesa, que foi leiloada em Maio por 350 mil euros e que agora faz parte da colecção do Centro de Arte Manuel de Brito, “em vez de estar no Museu do Chiado”.
João Fernandes, director-adjunto do Museu Rainha Sofia, em Madrid, classifica a campanha para a compra da Adoração como uma "iniciativa interessante de cidadania" mas, tal como José Luís Porfírio, crítico e antigo director do MNAA, alerta para o facto de ela não isentar o Estado de assumir as suas responsabilidades. “O ónus não pode recair apenas sobre os cidadãos e a participação do Estado é um indicador de que a obra vale a pena”, diz Fernandes, que dirigiu o Museu de Serralves, no Porto, e que é uma das figuras públicas que participam nos vídeos da campanha, a par do artista plástico Julião Sarmento ou da fadista Carminho. Se deve pôr uma verba à disposição do museu à cabeça ou chegar no fim da campanha “é indiferente, desde que participe”.
António Filipe Pimentel não avança detalhes sobre uma eventual participação da SEC na aquisição da pintura, mas garante que “a tutela está a fazer um esforço” e lembra que, apesar das enormes contingências orçamentais, as compras para os museus portugueses aumentaram a partir de 2012 e já contemplaram, mais do que uma vez, o MNAA, embora com obras longe do valor desta Adoração (o Tríptico de Santa Clara, 30 mil euros; uma papeleira do século XVIII, 20 mil; e uma pintura do maneirista espanhol Francisco Venegas, 22 mil).
Optimista, uma vez mais, Pimentel acredita que, no final, muitos mais conhecerão Sequeira e que a resposta dos portugueses ao repto “seja mecenas por um euro ou por 100 mil” vai ser adequada à importância da Adoração. “Temos de ser nós, todos nós, a fazer dos museus lugares onde vale a pena ir, onde vale a pena estar. E a boa pintura, uma obra-prima como esta, torna os museus melhores.”
Adoração dos Magos de Domingos Sequeira.

Antepassado de humanos e grandes símios terá sido mais parecido com um… gibão

A ideia de que o último antepassado comum a grandes e pequenos símios era grande foi abalada pelo estudo dos restos fósseis de um pequeno primata descoberto em Espanha.
Em meados do Mioceno – há mais de dez milhões de anos – na actual província de Barcelona, a zona hoje ocupada pela freguesia de Els Hostalets de Pierola era de floresta cerrada. O clima húmido e quente que lá reinava – e a abundância de pontos de água fresca – favoreciam a diversidade da fauna.
Hoje, a riqueza dos fósseis que têm vindo a ser encontrados naquela zona nos últimos 13 anos – mais precisamente num conjunto de escavações arqueológicas realizadas no Aterro de Can Mata – atestam da riqueza daquela antiga vida animal.
Era ali que vivia, há 11,6 milhões de anos, um pequeno primata, hoje extinto – um trepador lento e cauteloso, dotado de uma grande flexibilidade de movimento e de alguma capacidade de se pendurar dos ramos, que comia fruta madura –, e cujos restos fósseis foram descobertos em 2011. Agora, o estudo da morfologia desse primata – publicado na revista Science pela equipa de Salvador Moyà-Solà, da Universidade Autónoma de Barcelona – vem não só definir uma nova espécie de primatas, como também pôr em causa certas ideias feitas acerca das primeiras fases da evolução dos hominídeos. Mais precisamente, segundo os autores, os seus resultados permitem concluir que o último antepassado comum aos hominídeos e aos gibões actuais não tinha bem o aspecto que se pensava. A nova espécie foi baptizada Pliobates cataloniae.
Os hominídeos actuais incluem os grandes símios (chimpanzés, gorilas e orangotangos) e os humanos. E na árvore da vida, o ramo que daria origem aos hominídeos terá divergido do ramo dos símios mais pequenos, dos quais os gibões são os representantes actuais, há uns 17 milhões de anos, explica em comunicado a Associação Americana para o Avanço da Ciência, editora da Science.
Como terá sido o mais recente antepassado comum a grandes e pequenos símios? O registo fóssil, muito incompleto, sugeria até agora que o tamanho corporal daquele antepassado estaria mais próximo do dos grandes símios. É justamente essa visão que a descoberta agora anunciada veio, segundo os autores do estudo, radicalmente alterar. Até aqui, a maioria dos cientistas pensava que, como todos os fósseis de [símios] descobertos eram de grande tamanho, o último antepassado comum aos gibões e aos hominídeos tinha tido, ele também, um corpo grande. Mas esta descoberta vira tudo ao contrário. De facto, surge assim um símio, até aqui desconhecido, que, apesar de ter vivido milhões de anos depois da suposta divergência entre grandes e pequenos símios era claramente muito pequeno. Pesava entre quatro e cinco quilos e tinha um tamanho comparável ao dos mais pequenos gibões actuais. É a primeira vez que um fóssil de primata desse tamanho apresenta um conjunto de características comuns aos hominídeos e gibões, presumivelmente herdados do último antepassado comum a todos eles, que viveu provavelmente em África vários milhões de anos antes de Pliobates cataloniae.
Os restos fósseis de Pliobates cataloniae (que recebeu entretanto a alcunha de “Laia”, diminutivo de “Eulalia”, padroeira de Barcelona) são compostos por 70 fragmentos, incluindo a maior parte do crânio e várias partes das articulações do cotovelo e do pulso. Ora, apesar de algumas das suas características serem muito primitivas, a anatomia do braço da nova espécie possui a arquitectura de base dos hominídeos e dos gibões actuais. Segundo os autores, que realizaram uma minuciosa análise morfológica dos restos fósseis, tudo indica que Pliobates cataloniae se situa extremamente perto do nó da árvore dos símios que deu origem aos hominídeos e aos gibões actuais. Estes resultados sugerem que, pelo menos em termos de tamanho e de morfologia craniana, o mais recente antepassado comum aos [hominídeos e gibões] poderá ter sido mais parecido com os gibões (e menos parecido como os grandes símios) do que geralmente se supõe.
Pliobates cataloniae ilustração científica do crânio
Ilustração científica do crânio do novo primata.

Pliobates cataloniae reconstituição virtual do crânio
Reconstituição virtual do crânio do novo primata baseada em imagens de TAC.

Pliobates cataloniae crânio visto por baixo
O crânio visto por baixo.

Pliobates cataloniae ossos do braço
Ossos do braço esquerdo de Pliobates cataloniae: húmero (A), rádio (B); e ulna (C).


20/10/2015

Museu do Homem em Paris reabre totalmente renovado

Após seis anos de encerramento para obras, o quase octogenário Museu do Homem, em Paris, abre este sábado as suas portas ao público numa versão assumidamente virada para o século XXI, renascendo das suas próprias cinzas (ou melhor, das suas poeiras).
O Museu do Homem foi fundado em 1937, quando as colecções etnográficas do seu precursor (o Museu de Etnografia do Trocadéro, em funções desde 1882) foram reunidas num mesmo espaço com as colecções de antropologia e de pré-história humana vindas do Museu Nacional de História Natural (MNHN) francês, do qual o Museu do Homem depende desde o início
De facto, surgia assim algo de muito original para a época: um museu da espécie humana. Instalado no Palácio de Chaillot, ao pé do rio Sena, mesmo em frente à Torre Eiffel, albergava debaixo do mesmo tecto todas as colecções do Estado francês que diziam respeito à humanidade, à sua evolução, às suas civilizações e culturas.
Porém, o projecto foi perdendo fôlego ao longo das décadas que se seguiram e, já em finais dos anos 1990, as suas salas e corredores, mal iluminados e com o seu velho chão em soalho, tinham-se tornado vestustas e poeirentas. Lentamente, as peças expostas nas vitrinas foram sendo esquecidas pelas pessoas. Em 2009, quando encerrou para obras, o Museu do Homem já só recebia 150.000 visitantes por ano – o que é muito pouco pela bitola dos museus parisienses.
O golpe potencialmente mortal veio em 2003, com a transferência de 300.000 peças da colecção de etnologia não europeia do Museu do Homem para o então recém-inaugurado Museu do Quai Branly, sucessor do extinto Museu das Artes Africanas e Oceânicas, instalado num espectacular e moderno edifício mesmo ali perto, do outro lado do Sena. E como se isso não bastasse, em 2005 foi a vez de as colecções de etnologia europeia saírem porta fora, com destino ao futuro Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo (MuCEM), inaugurado em 2013 em Marselha.
Apesar de o Museu do Homem possuir ainda valiosas e extensas colecções – incluindo uma série de tesouros como o crânio do filósofo francês René Descartes ou o do célebre Homem de Cro-Magnon –, seguiu-se então um período de indefinição e de incerteza.
Agora, o Museu do Homem reabre de facto com um projecto novo e radicalmente diferente – não puramente artístico, mas científico. Um projecto dedicado à evolução da espécie humana sob todas as suas facetas que faz do novo museu algo de único na Europa, sendo considerado um dos maiores museus mundiais da pré-história. O seu custo total rondou os 93 milhões de euros – e os responsáveis pela renovação esperam receber 400.000 visitantes já no primeiro ano.
A nova organização do Museu do Homem parte de três perguntas científicas fundamentais: “Quem somos?; de onde viemos?; onde vamos?” Para responder a cada uma delas, o museu dispõe de 700.000 objectos pré-históricos, 30.000 “conjuntos de antropologia” e 6000 objectos “que ilustram a apropriação da natureza pelas sociedades humanas”, pode ler-se na apresentação do projecto no site do museu.
O “percurso” (a exposição) permanente desenvolve-se numa Galeria do Homem, uma área de 2500 metros quadrados onde paredes, chão e tectos são brancos e onde o vidro se mistura com estruturas de aço para compor um décor minimalista.
Num dos espaços, baptizado Refúgio dos Antepassados e mergulhado na escuridão, o visitante é confrontado com as suas origens. É aí que está exposto o crânio de Cro-Magnon (e não é uma réplica, é mesmo o original). Conhecido como “o velho”, este Homo sapiens viveu há uns 28.000 anos e foi descoberto em 1868 na região de Dordogne, no Sudoeste da França.
Ao seu lado, o crânio da Dama de Cavillon, tingido de ocre vermelho e coberto de conchinhas. E ainda os nossos primos neandertais, representados em particular pelo Homem de la Ferrassie, um outro fóssil descoberto em Dordogne. As ferramentas utilizadas pelos nossos antepassados perfazem esta mostra.
Já a Sala dos Tesouros alberga uma das jóias da coroa do Museu do Homem: a Vénus de Lespugue (do nome de outra localidade do Sudoeste francês), uma pequena estatueta de formas voluptuosas esculpida em marfim de mamute há cerca de 23.000 anos e descoberta em 1922. E ainda uma outra vénus, esta qualificada de “impúdica” porque o seu autor representou o sexo feminino com um risco na junção das pernas.
Uma novidade é a chamada Varanda das Ciências, instalada no átrio do museu e onde os cientistas da instituição vão mostrar ao público as suas pesquisas. Isto porque de facto – e tal como vem sendo a sua vocação há quase 80 anos –, o museu inclui um laboratório, agora equipado com as mais modernas tecnologias de análise genética e outras, onde trabalham 150 investigadores.
Uma das mais espectaculares instalações da exposição permanente é uma estrutura em forma de pauta musical com 11 metros de altura e 19 metros de comprimentos, onde estão pousados 79 bustos em gesso pintado e 12 bustos de bronze. Os bustos em gesso, que “ilustram a diversidade humana”, foram realizados no século XIX com base em moldes das caras de pessoas vivas, obtidos junto de populações autóctones aquando de expedições científicas às Américas, África e Ásia.
A exposição permanente também aborda a evolução do estudo da anatomia humana, com bustos do século XIX que representam as zonas frenológicas do cérebro e belíssimas esculturas anatómicas de cera, executadas em finais do século XVIII pelo artista e anatomista francês André-Pierre Pinson. Uma destas é a chamada “Mulher com uma Lágrima”, uma cabeça “aberta” verticalmente que revela a anatomia interna da face e o do pescoço. O museu exibe ainda figuras de “esfolados” em papier-mâché do médico francês Louis Auzoux (1797-1880), mundialmente conhecidas.
O Museu do Homem convoca todas as disciplinas científicas para lançar um olhar rico e benevolente sobre a nossa humanidade em toda a sua diversidade e abrir caminhos para o futuro que estamos a construir para nós próprios. A sua herança e missão únicas colocam-no no centro das questões naturalistas, que ao mesmo tempo não poderiam ser abordadas sem o contributo maciço das ciências humanas.
A escala dos bustos
A "escala dos bustos" da nova exposição permanente do museu.
A mulher com uma lágrima, busto anatómico do século XVIII
A Mulher com uma Lágrima, busto anatómico de cera, século XVIII.
Figura de esfolado em papier-mâché, século XIX
Figura de "esfolado" em papier-mâché, século XIX.

17/10/2015

Dois manuscritos medievais portugueses entram para a Memória do Mundo da UNESCO

Os manuscritos medievais portugueses Apocalipse de Lorvão, célebre pelas suas iluminuras, e o Comentário ao Apocalipse do Beato de Liébana foram inscritos esta semana como registos da Memória do Mundo pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Os dois livros, guardados atualmente na Torre do Tombo e na Biblioteca Nacional, fazem parte de um conjunto de 11 manuscritos feitos na Península Ibérica a partir do Comentário do Apocalipse pelo Beato de Liébana.
A UNESCO diz no seu site que são “considerados os mais bonitos e originais produzidos pela civilização medieval ocidental”.
Foi nas Astúrias do século VIII, tornada reduto contra a invasão muçulmana, que o padre Beato de Liébana escreveu em 786 o Comentário ao Apocalipse como uma interpretação do último livro do Novo Testamento — o Apocalipse, também conhecido como Apocalipse de S. João ou Livro da Revelação. Decidiu fazê-lo para que os cristãos comuns conseguissem entender a linguagem simbólica do texto.
Mais tarde, no século XII (c. 1189), o monge Egas, no Mosteiro do Lorvão, fez uma cópia do texto do Beato de Liébana que ficou conhecida como Apocalipse do Lorvão, ilustrando-a com 66 iluminuras e incluindo comentários pessoais.
O original do século VIII perdeu-se e foi feita, entre 1201-1300, no Mosteiro de Alcobaça, uma cópia do texto a partir do Apocalipse do Lorvão de Egas a que se chamou Comentário ao Apocalipse do Beato de Liébana. Agora, as duas cópias portuguesas foram distinguidas pela UNESCO em conjunto com os outros códices espanhóis que compõem assim os Manuscritos do Comentário do Apocalipse (Beatus de Liébana) na Tradição Ibérica.
Devido às suas iluminuras ricas em tons de amarelo e vermelho, o Apocalipse do Lorvão destaca-se entre as duas cópias. Egas apresenta um produto da realidade do século XII, baseando-se no Comentário ao Apocalipse de Beato de Liébana do século VIII. As iluminuras retratam episódios do livro do Apocalipse da Bíblia e situações quotidianas do século XII.
O Apocalipse de Lorvão de Egas foi feito no Mosteiro do Lorvão, em Penacova, mas em 1853 o escritor e historiador Alexandre Herculano levou-o para a Torre do Tombo, em Lisboa. Já o Comentário ao Apocalipse do Beato de Liébana foi criado no Mosteiro de Alcobaça e aí permaneceu até à extinção das ordens monásticas, em 1834, integrando actualmente a colecção da Biblioteca Nacional de Portugal.
Considerados únicos no seu género, os Manuscritos do Comentário do Apocalipse (Beatus de Liébana) na Tradição Ibérica são um conjunto de 11 códices e fragmentos que foram submetidos à UNESCO numa candidatura conjunta feita por Portugal e Espanha em 2014. A Torre do Tombo aponta-os no seu site como “uma das provas materiais da transição do mundo antigo para os tempos medievais no campo da arte, da literatura e do pensamento no mundo mediterrânico e na Europa Ocidental”.
Esta não é a primeira vez que Portugal vê um documento da sua História declarado registo da Memória do Mundo, um programa criado pela UNESCO em 1992 com o objectivo de consciencializar o público para a necessidade e importância de preservar e valorizar o património documental. A Carta de Pêro Vaz de Caminha (1500) aquando da descoberta do Brasil, a versão castelhana do Tratado de Tordesilhas (1494) e o Diário da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia (1477-1499) são outros documentos nos registos da UNESCO.
Manuscritos medievais iluminados
Uma das páginas do Apocalipse de Lorvão.
Manuscritos medievais iluminados
Uma das páginas do Comentário ao Apocalipse do Beato de Liébana.

16/10/2015

S. Bento, o homem e o santo: 400 anos de fé que a natureza abraça

Esta mostra insere-se na necessidade de se dar a conhecer a vida, obra e a presença, há 400 anos de devoção a S. Bento aqui invocado como da Porta Aberta, Pai e Padroeiro da Europa. A Mesa Administrativa, atenta, ao "fenómeno" extraordinário e único desta devoção de feição popular, quer aproveitar esta Semana dedicada ao Património para, não só, ajudar os peregrinos ou simples turistas, a conhecerem e entenderem melhor esta relação afectiva do povo com S. Bento como contribuir para um aprofundamento da Fé. Exposição audiovisual sobre S. Bento e a história da Basílica com sua envolvente natural (Parque Nacional da Peneda Gerês).
No Claustro da cripta. Rio Caldo - Terras de Bouro, Santuário de São Bento da Porta Aberta
Santuário de São Bento da Porta Aberta
S. Bento da porta aberta - Exposição 15 a 25 de outubro.

06/10/2015

Estado Islâmico destruiu Arco do Triunfo de Palmira

Com cerca de dois mil anos, o Arco do Triunfo encontrava-se situado na entrada da histórica rua com colunas das antigas ruínas e era o ícone de Palmira, foi destruído pelos jiadistas do autodenominado Estado Islâmico. Trata-se de uma destruição sistemática da cidade. Após terem tomado a cidade - cujas ruínas históricas estão classificados pela UNESCO como património da humanidade - o Daesh já destruíra o tempo de Baal Shamin e o templo de Bel, também com cerca de dois mil anos. Conhecida como a “Pérola do Deserto”, antes da guerra Palmira era visitada anualmente por cerca de 150 mil turistas. Especialistas advertem que para além de estarem a levar a cabo a destruição das ruínas pré-islâmicas, o Daesh tem também estado a vender artefactos históricos no mercado negro como forma de aumentar o seu financiamento.
Palmira, Síria
Arco do Triunfo, Palmira, Síria.

30/09/2015

"El Greco, nova contribuição biográfica, crítica e médica ao estudo do pintor Doménico Theotocópuli", artigo de Ricardo Jorge de 1913

E o que se imagina no caso do pintor de Creta e Toledo, defendia Ricardo Jorge num ensaio publicado em 1913 numa separata da Revista da Universidade de Coimbra ("El Greco, nova contribuição biográfica, crítica e médica ao estudo do pintor Doménico Theotocópuli"), podia muito bem ser produto de paranóia. O médico português que muito escreveu sobre arte, literatura e história lembra neste ensaio que o regresso à primitividade e o grotesco, características que encontra nas “figuras deformadas contra natura e contra razão” de El Greco, são próprias da arte feita nos manicómios por “alienados”. No texto, carregado de informação retirada de fontes da época e de historiadores contemporâneos de Ricardo Jorge, reconhece-se mérito na sua pintura, mas faz-se um retrato pouco abonatório do homem. Escreve o médico português que vivia num “pardieiro”, entre o “fausto” e a “penúria”, carregado de dívidas, trabalhando para “igrejas de pouca renda e fidalgos de meia tijela”. Pintor, levava até à megalomania o conceito das suas faculdades artísticas; a sua craveira excedia a dos mais grados, o seu pincel não tinha preço. Um génio deveras complexivo e rico de dotes, afectado de uma hiperestesia de personalidade, levada até ao delírio”, continua Ricardo Jorge, sublinhando que, na época em que escreve, o mundo da arte vivia já uma verdadeira “grecofilia”, transformado que estava o “o solitário de Toledo” em “glória mundial”. Ricardo Jorge vai buscar uma das mais aclamadas pinturas do artista para ilustrar esta coincidência de “génio” e “delírio”, descrevendo a cena inferior de O Enterro do Conde de Orgaz como um “soberbo trecho de pintura” e a superior, a do “reino da glória” – o conde recebido no paraíso –, como “a coisa mais desengraçada e clownesca que pode ver-se; ou antes que confrange ver, como borrão que é numa obra-prima”. Loucura; quem pode subtrair-se à ideia de que em telas assim se espelha o espírito de um doido?
A crítica, e desde logo a do romantismo, reconhece o médico, teve dificuldade em lidar com a obra de El Greco, atribuindo a sua originalidade a uma “enfermidade cerebral”. “Os desabrimentos e desequilíbrios da sua pintura que haviam de ser senão da mão dum doido?”, interrogavam-se os especialistas do século XIX.
O Grego, precisa neste ensaio de 50 páginas, “alonga o corpo e apequena a cabeça”, “amachuca os panejamentos”, “ilumina e modela as figuras de um modo singular” e exagera a assimetria dos rostos “até à carantonha”. “Nos últimos tempos”, diz ainda o médico-historiador, “não há cara que não esteja torta; nem o menino Jesus escapa”. Depois de uma análise atenta de todos os erros e exageros do pintor na representação do corpo humano, Ricardo Jorge, que não espera da pintura uma “simples execução da anatomia” e dá até como exemplo “o efeito delicioso” que as três vértebras a mais dão à Odalisca de Ingres, passa à análise das semelhanças que existem entre a arte do pintor de Toledo e a que é feita por doentes mentais.
Ricardo Jorge vai buscar as obras A Visão de S. João e A Ceia em Casa de Simeão para falar das suas “almas penadas”, de um “mostruário de horrores e de grotescos”, de “gente desfeita por todas as misérias físicas e morais”, perguntando em seguida: “Loucura; quem pode subtrair-se à ideia de que em telas assim se espelha o espírito de um doido?”
Doido ou não, o médico reconhece, apesar de tudo, que a sua obra é singular: “[…] a luminosidade é um dos predicados do artista; inimigo do escuro, a sua pintura nada em luz. Traço algum de macabro ou pavoroso, nem martírios, nem torturas, nem negruras; abertas radiantes de glória, figuras celestiais e angélicas, animado tudo de um misticismo ingénuo e fervente, que seria o de São João da Cruz e de Santa Teresa de Jesus, se não fora o dele mesmo.”
A sua pintura, lembra Fernando Marías, um dos mais influentes historiadores de arte da actualidade, comissário da mais importante das exposições que em 2014 assinalaram os 400 anos da morte de El Greco e autor de uma importante monografia sobre o artista (Biografia de um Pintor Extravagante, 1997), convoca emoções. Marías, que escolheu a Sagrada Família com Santa Ana que se pode ver no Museu de Arte Antiga até 10 de Janeiro (é o "comissário" desta exposição de um quadro só), explica que essa emoção se deve, em parte, ao magnífico jogo de mãos que a composição guarda. Desse jogo que atrai faz parte uma Virgem que abraça e um São João Baptista que, de início, El Greco quis ver a apontar para Jesus e que, por fim, pintou a pedir-nos silêncio.
A Visão de S. João ou O Quinto Selo, 1608-1614.

Um El Greco ainda sem fantasmas, mas já com “aquela luz”

Até ao fim assinou como Domenikos Theotokopoulos, como se nunca tivesse pertencido a outro lugar se não à ilha onde nasceu, Creta; como se os anos que passou em Toledo, a que deve a fama tardia, não tivessem chegado para que espanholizasse o seu nome. É como El Greco, no entanto, que o mundo o conhece.
O retrato que dele traçam os seus contemporâneos apresenta-o como irascível, conflituoso, arrogante, inadaptado e megalómano. Sentia-se só em Toledo, julgando, do alto da formação humanista que fazia dele um homem culto, que ninguém o compreendia e, muito menos, o aceitava. Talvez fosse assim. Certo é que a sua obra ficou, redescoberta pelos românticos, quase divinizada pelos modernos. Pelo meio “diagnósticos” vários, como o do médico português Ricardo Jorge, tantas vezes transformado em historiador de arte e de literatura, que atribuía as suas figuras descarnadas de rostos assimétricos à doença mental, fazendo dele um génio paranóico. Seria?
A Sagrada Família que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) tem em exposição no seu programa Obra Convidada, que nesta “edição” integra a Mostra Espanha 2015, é uma das versões deste tema que El Greco (1540/1541-1614) – o Grego – pintou, mas encerra um mistério que não é comum às restantes e que diz respeito à identidade do homem que nela está representado como São José e que só um restauro feito no Museu do Prado na década de 1980 tornou visível. Quem era este retratado cuja fisionomia foge à das outras figuras da composição? Seria o doador? Por que razão terá sido apagado e quando? Terá caído em desgraça? E por que motivo?
Estas perguntas, diz José Alberto Seabra Carvalho, historiador de arte e director adjunto do MNAA, juntam-se a outro debate, o que envolve o nome da mulher à direita da Virgem. Será Santa Ana, mãe de Maria, ou Santa Isabel, sua prima? E o que está a fazer? Procura confirmar o sexo do bebé que acaba de nascer – o que está muito longe de ser um detalhe, sobretudo dado o contexto - ou o seu gesto destina-se a evocar a morte de Cristo?
Muitos, explica Seabra Carvalho, apostam na mãe da Virgem, atendendo a que esta pintura, que hoje faz parte da colecção do Museu de Santa Cruz, em Toledo, identificada como um El Greco no século XIX, se encontrava à data no pequeno Hospital de Santa Ana. Outros defendem que só pode ser Santa Isabel porque a outra criança presente é São João Baptista, seu filho e primo de Jesus. É ele, aliás, que parece interpelar o visitante pedindo-lhe silêncio, como se quem olha esta pintura estivesse a assistir àquele momento em directo, correndo o risco de acordar o Menino, ou, simplesmente, porque a cena solene, característica da pintura de devoção, exige recolhimento.
As dúvidas são muitas, mas o que é evidente, acredita o historiador, é que o São José desta Sagrada Família é claramente um retrato e que há no seu tratamento uma cor e um brilho muito venezianos. Não estão lá ainda as figuras esguias, de braços impossivelmente longos, que se reconhecem em muitas obras do pintor de Toledo que sempre se disse cretense (quando nasceu, a ilha hoje grega pertencia à República de Veneza), mas está, por exemplo, a assimetria no rosto da Virgem, uma das suas marcas distintivas, e uma luz muito peculiar.
Ainda não há aqui aqueles fantasmas de outras pinturas, não há aquele perfume vanguardista, metafísico, mas já há a vivacidade de um colorido entre o estridente e o melancólico, já há aquela luz. O Grego saiu de Creta já pintor, passou por Veneza, onde se deixou influenciar sobretudo por Tintoretto, e Roma, onde trabalhou durante seis anos e só não passou despercebido porque resolveu dizer que Miguel Ângelo, que morrera seis anos antes da sua chegada e cujo prestígio continuava inabalável, não era lá grande pintor. Acabou por se fixar em Toledo, depois de, em 1576, tentar, sem sucesso, que o rei Filipe II se tornasse seu patrono. Quando chega a Toledo, El Greco não cai nas boas graças da Igreja, da catedral, por causa da sua má relação com a noção de decoro da contra-reforma. A perspectiva que apresentava de alguns episódios religiosos se afastava do que Roma procurava, tinha um pendor “muito humanista”. E isso vê-se em algumas obras centrais no seu percurso, como O Espólio (1579), pintura em que Cristo é presentado momentos antes da crucificação sendo despojado do que veste, ou no Martírio de São Maurício, que faz para Filipe II e o convento do Escorial, em Madrid, obra de que o monarca não gostou. No Espólio ele pinta as três Marias, que segundo os relatos da Igreja não estariam lá naquele momento; e no Martírio, dá o primeiro plano à conversa que o santo mártir tem com aqueles que vão ser os seus carrascos, deixando o corpo decepado em fundo. A Igreja daquela altura queria que as pessoas se comovessem com o sofrimento de Cristo e do mártir, não queria estas versões alternativas.
A originalidade do pintor está, em boa parte, nesta maneira não muito canónica de mostrar os mesmos temas, algo que agradava à sua clientela de Toledo, composta sobretudo por mercadores, um ou outro clérigo culto, e um aristocrata, e ao seu círculo próximo, em que se destacavam os poetas.
El Greco não é um pintor fora da caixa, o que parece que se quis fazer crer durante muito tempo. Nem podia sê-lo no contexto em que viveu. Mas é um artista culto, com uma boa biblioteca, que vai buscar a Tintoretto a capacidade expressiva das curvas dos corpos, que traz de Veneza o que sabe sobre luz e cor. Não é um pintor rasteiramente devoto, ao contrário da esmagadora maioria dos que havia em Toledo. É claro que o que fazia tinha de ser diferente.
Um “diferente” que não cativava a maioria. As suas figuras descarnadas, embora de grande elegância e requinte, só começam a ser apreciadas por uma camada mais alargada no século XIX, tornando-o referência obrigatória quando os artistas modernos, colocando-o no mesmo patamar de outros mestres mais consensuais, como Velázquez e Rembrandt, começam a dizer-se influenciados por El Greco, contribuindo decisivamente para um dos rótulos que desde então lhe vem sendo colado, o de pintor de pintores. Manet, Cézanne, Picasso e Pollock estão entre os admiradores mais confessos.
Desde aí, o artista do renascimento começa a ser tratado como um modernista antes do tempo, chegando mesmo a ver a sua obra A Visão de S. João ou O Quinto Selo (1608-1614), exemplo paradigmático das suas figuras alongadas, sem carne, ser relacionada com uma das pinturas mais revolucionárias de Picasso, Les demoiselles d'Avignon (1907), indissociável do cubismo. Trezentos anos as separam, mas há um “perfume” que as aproxima. Em El Greco o espaço não é tridimensional, as figuras são representadas de vários ângulos. Não é cubismo, é certo, mas há nele um certo fulgor que nos faz pensar nisso, reconhece o director-adjunto do MNAA, para quem a pintura deste artista de Creta é altamente artificiosa.
Um “artifício” que é muitas vezes sinónimo de “qualidade” e que nos mostra que a sua obra não deve ser vista fora do contexto da época. A mesma opinião tem Keith Christiansen, historiador de arte e curador de pintura europeia do Museu Metropolitan, em Nova Iorque, defendendo que há uma tendência, “fácil”, de olhar para a obra de El Greco como algo isolado, como se ele fosse um homem à espera do futuro. Nada mais errado – El Greco deve ser visto no contexto em que viveu, contemporâneo de pintores como Caravaggio (1571-1610) e Annibale Carracci (1560-1609), como um artista do maneirismo, mas de um maneirismo singular – o que presta mais atenção ao que se imagina do que ao que se pode reproduzir a partir do natural.

 Sagrada Família com Santa Ana, foi identificada como sendo uma pintura de El Greco no século XIX.
A pintura antes do restauro dos anos 1980, quando a figura de São José não estava ainda visível.
A radiografia que permitiu aos restauradores identificar o homem escondido sob camadas de tinta,
não se sabe quando nem porquê.

17/09/2015

Tesouros arqueológicos perdidos devido à guerra e ao fanatismo religioso - Museu de Arte Islâmica

O Museu de Arte Islâmica no Egipto tinha uma das maiores colecções mundiais, com mais de 100 mil peças que cobriam toda a história islâmica, num edifício cuja construção começou em 1881 e que há poucos anos tinha sofrido uma renovação de vários milhões de euros. Pouco tempo após reabrir, em Janeiro de 2014, um atentado com um carro bomba danificou o museu de tal forma que este teve de fechar novamente.
Egipto
Museu de Arte Islâmica