30/09/2015

"El Greco, nova contribuição biográfica, crítica e médica ao estudo do pintor Doménico Theotocópuli", artigo de Ricardo Jorge de 1913

E o que se imagina no caso do pintor de Creta e Toledo, defendia Ricardo Jorge num ensaio publicado em 1913 numa separata da Revista da Universidade de Coimbra ("El Greco, nova contribuição biográfica, crítica e médica ao estudo do pintor Doménico Theotocópuli"), podia muito bem ser produto de paranóia. O médico português que muito escreveu sobre arte, literatura e história lembra neste ensaio que o regresso à primitividade e o grotesco, características que encontra nas “figuras deformadas contra natura e contra razão” de El Greco, são próprias da arte feita nos manicómios por “alienados”. No texto, carregado de informação retirada de fontes da época e de historiadores contemporâneos de Ricardo Jorge, reconhece-se mérito na sua pintura, mas faz-se um retrato pouco abonatório do homem. Escreve o médico português que vivia num “pardieiro”, entre o “fausto” e a “penúria”, carregado de dívidas, trabalhando para “igrejas de pouca renda e fidalgos de meia tijela”. Pintor, levava até à megalomania o conceito das suas faculdades artísticas; a sua craveira excedia a dos mais grados, o seu pincel não tinha preço. Um génio deveras complexivo e rico de dotes, afectado de uma hiperestesia de personalidade, levada até ao delírio”, continua Ricardo Jorge, sublinhando que, na época em que escreve, o mundo da arte vivia já uma verdadeira “grecofilia”, transformado que estava o “o solitário de Toledo” em “glória mundial”. Ricardo Jorge vai buscar uma das mais aclamadas pinturas do artista para ilustrar esta coincidência de “génio” e “delírio”, descrevendo a cena inferior de O Enterro do Conde de Orgaz como um “soberbo trecho de pintura” e a superior, a do “reino da glória” – o conde recebido no paraíso –, como “a coisa mais desengraçada e clownesca que pode ver-se; ou antes que confrange ver, como borrão que é numa obra-prima”. Loucura; quem pode subtrair-se à ideia de que em telas assim se espelha o espírito de um doido?
A crítica, e desde logo a do romantismo, reconhece o médico, teve dificuldade em lidar com a obra de El Greco, atribuindo a sua originalidade a uma “enfermidade cerebral”. “Os desabrimentos e desequilíbrios da sua pintura que haviam de ser senão da mão dum doido?”, interrogavam-se os especialistas do século XIX.
O Grego, precisa neste ensaio de 50 páginas, “alonga o corpo e apequena a cabeça”, “amachuca os panejamentos”, “ilumina e modela as figuras de um modo singular” e exagera a assimetria dos rostos “até à carantonha”. “Nos últimos tempos”, diz ainda o médico-historiador, “não há cara que não esteja torta; nem o menino Jesus escapa”. Depois de uma análise atenta de todos os erros e exageros do pintor na representação do corpo humano, Ricardo Jorge, que não espera da pintura uma “simples execução da anatomia” e dá até como exemplo “o efeito delicioso” que as três vértebras a mais dão à Odalisca de Ingres, passa à análise das semelhanças que existem entre a arte do pintor de Toledo e a que é feita por doentes mentais.
Ricardo Jorge vai buscar as obras A Visão de S. João e A Ceia em Casa de Simeão para falar das suas “almas penadas”, de um “mostruário de horrores e de grotescos”, de “gente desfeita por todas as misérias físicas e morais”, perguntando em seguida: “Loucura; quem pode subtrair-se à ideia de que em telas assim se espelha o espírito de um doido?”
Doido ou não, o médico reconhece, apesar de tudo, que a sua obra é singular: “[…] a luminosidade é um dos predicados do artista; inimigo do escuro, a sua pintura nada em luz. Traço algum de macabro ou pavoroso, nem martírios, nem torturas, nem negruras; abertas radiantes de glória, figuras celestiais e angélicas, animado tudo de um misticismo ingénuo e fervente, que seria o de São João da Cruz e de Santa Teresa de Jesus, se não fora o dele mesmo.”
A sua pintura, lembra Fernando Marías, um dos mais influentes historiadores de arte da actualidade, comissário da mais importante das exposições que em 2014 assinalaram os 400 anos da morte de El Greco e autor de uma importante monografia sobre o artista (Biografia de um Pintor Extravagante, 1997), convoca emoções. Marías, que escolheu a Sagrada Família com Santa Ana que se pode ver no Museu de Arte Antiga até 10 de Janeiro (é o "comissário" desta exposição de um quadro só), explica que essa emoção se deve, em parte, ao magnífico jogo de mãos que a composição guarda. Desse jogo que atrai faz parte uma Virgem que abraça e um São João Baptista que, de início, El Greco quis ver a apontar para Jesus e que, por fim, pintou a pedir-nos silêncio.
A Visão de S. João ou O Quinto Selo, 1608-1614.

Um El Greco ainda sem fantasmas, mas já com “aquela luz”

Até ao fim assinou como Domenikos Theotokopoulos, como se nunca tivesse pertencido a outro lugar se não à ilha onde nasceu, Creta; como se os anos que passou em Toledo, a que deve a fama tardia, não tivessem chegado para que espanholizasse o seu nome. É como El Greco, no entanto, que o mundo o conhece.
O retrato que dele traçam os seus contemporâneos apresenta-o como irascível, conflituoso, arrogante, inadaptado e megalómano. Sentia-se só em Toledo, julgando, do alto da formação humanista que fazia dele um homem culto, que ninguém o compreendia e, muito menos, o aceitava. Talvez fosse assim. Certo é que a sua obra ficou, redescoberta pelos românticos, quase divinizada pelos modernos. Pelo meio “diagnósticos” vários, como o do médico português Ricardo Jorge, tantas vezes transformado em historiador de arte e de literatura, que atribuía as suas figuras descarnadas de rostos assimétricos à doença mental, fazendo dele um génio paranóico. Seria?
A Sagrada Família que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) tem em exposição no seu programa Obra Convidada, que nesta “edição” integra a Mostra Espanha 2015, é uma das versões deste tema que El Greco (1540/1541-1614) – o Grego – pintou, mas encerra um mistério que não é comum às restantes e que diz respeito à identidade do homem que nela está representado como São José e que só um restauro feito no Museu do Prado na década de 1980 tornou visível. Quem era este retratado cuja fisionomia foge à das outras figuras da composição? Seria o doador? Por que razão terá sido apagado e quando? Terá caído em desgraça? E por que motivo?
Estas perguntas, diz José Alberto Seabra Carvalho, historiador de arte e director adjunto do MNAA, juntam-se a outro debate, o que envolve o nome da mulher à direita da Virgem. Será Santa Ana, mãe de Maria, ou Santa Isabel, sua prima? E o que está a fazer? Procura confirmar o sexo do bebé que acaba de nascer – o que está muito longe de ser um detalhe, sobretudo dado o contexto - ou o seu gesto destina-se a evocar a morte de Cristo?
Muitos, explica Seabra Carvalho, apostam na mãe da Virgem, atendendo a que esta pintura, que hoje faz parte da colecção do Museu de Santa Cruz, em Toledo, identificada como um El Greco no século XIX, se encontrava à data no pequeno Hospital de Santa Ana. Outros defendem que só pode ser Santa Isabel porque a outra criança presente é São João Baptista, seu filho e primo de Jesus. É ele, aliás, que parece interpelar o visitante pedindo-lhe silêncio, como se quem olha esta pintura estivesse a assistir àquele momento em directo, correndo o risco de acordar o Menino, ou, simplesmente, porque a cena solene, característica da pintura de devoção, exige recolhimento.
As dúvidas são muitas, mas o que é evidente, acredita o historiador, é que o São José desta Sagrada Família é claramente um retrato e que há no seu tratamento uma cor e um brilho muito venezianos. Não estão lá ainda as figuras esguias, de braços impossivelmente longos, que se reconhecem em muitas obras do pintor de Toledo que sempre se disse cretense (quando nasceu, a ilha hoje grega pertencia à República de Veneza), mas está, por exemplo, a assimetria no rosto da Virgem, uma das suas marcas distintivas, e uma luz muito peculiar.
Ainda não há aqui aqueles fantasmas de outras pinturas, não há aquele perfume vanguardista, metafísico, mas já há a vivacidade de um colorido entre o estridente e o melancólico, já há aquela luz. O Grego saiu de Creta já pintor, passou por Veneza, onde se deixou influenciar sobretudo por Tintoretto, e Roma, onde trabalhou durante seis anos e só não passou despercebido porque resolveu dizer que Miguel Ângelo, que morrera seis anos antes da sua chegada e cujo prestígio continuava inabalável, não era lá grande pintor. Acabou por se fixar em Toledo, depois de, em 1576, tentar, sem sucesso, que o rei Filipe II se tornasse seu patrono. Quando chega a Toledo, El Greco não cai nas boas graças da Igreja, da catedral, por causa da sua má relação com a noção de decoro da contra-reforma. A perspectiva que apresentava de alguns episódios religiosos se afastava do que Roma procurava, tinha um pendor “muito humanista”. E isso vê-se em algumas obras centrais no seu percurso, como O Espólio (1579), pintura em que Cristo é presentado momentos antes da crucificação sendo despojado do que veste, ou no Martírio de São Maurício, que faz para Filipe II e o convento do Escorial, em Madrid, obra de que o monarca não gostou. No Espólio ele pinta as três Marias, que segundo os relatos da Igreja não estariam lá naquele momento; e no Martírio, dá o primeiro plano à conversa que o santo mártir tem com aqueles que vão ser os seus carrascos, deixando o corpo decepado em fundo. A Igreja daquela altura queria que as pessoas se comovessem com o sofrimento de Cristo e do mártir, não queria estas versões alternativas.
A originalidade do pintor está, em boa parte, nesta maneira não muito canónica de mostrar os mesmos temas, algo que agradava à sua clientela de Toledo, composta sobretudo por mercadores, um ou outro clérigo culto, e um aristocrata, e ao seu círculo próximo, em que se destacavam os poetas.
El Greco não é um pintor fora da caixa, o que parece que se quis fazer crer durante muito tempo. Nem podia sê-lo no contexto em que viveu. Mas é um artista culto, com uma boa biblioteca, que vai buscar a Tintoretto a capacidade expressiva das curvas dos corpos, que traz de Veneza o que sabe sobre luz e cor. Não é um pintor rasteiramente devoto, ao contrário da esmagadora maioria dos que havia em Toledo. É claro que o que fazia tinha de ser diferente.
Um “diferente” que não cativava a maioria. As suas figuras descarnadas, embora de grande elegância e requinte, só começam a ser apreciadas por uma camada mais alargada no século XIX, tornando-o referência obrigatória quando os artistas modernos, colocando-o no mesmo patamar de outros mestres mais consensuais, como Velázquez e Rembrandt, começam a dizer-se influenciados por El Greco, contribuindo decisivamente para um dos rótulos que desde então lhe vem sendo colado, o de pintor de pintores. Manet, Cézanne, Picasso e Pollock estão entre os admiradores mais confessos.
Desde aí, o artista do renascimento começa a ser tratado como um modernista antes do tempo, chegando mesmo a ver a sua obra A Visão de S. João ou O Quinto Selo (1608-1614), exemplo paradigmático das suas figuras alongadas, sem carne, ser relacionada com uma das pinturas mais revolucionárias de Picasso, Les demoiselles d'Avignon (1907), indissociável do cubismo. Trezentos anos as separam, mas há um “perfume” que as aproxima. Em El Greco o espaço não é tridimensional, as figuras são representadas de vários ângulos. Não é cubismo, é certo, mas há nele um certo fulgor que nos faz pensar nisso, reconhece o director-adjunto do MNAA, para quem a pintura deste artista de Creta é altamente artificiosa.
Um “artifício” que é muitas vezes sinónimo de “qualidade” e que nos mostra que a sua obra não deve ser vista fora do contexto da época. A mesma opinião tem Keith Christiansen, historiador de arte e curador de pintura europeia do Museu Metropolitan, em Nova Iorque, defendendo que há uma tendência, “fácil”, de olhar para a obra de El Greco como algo isolado, como se ele fosse um homem à espera do futuro. Nada mais errado – El Greco deve ser visto no contexto em que viveu, contemporâneo de pintores como Caravaggio (1571-1610) e Annibale Carracci (1560-1609), como um artista do maneirismo, mas de um maneirismo singular – o que presta mais atenção ao que se imagina do que ao que se pode reproduzir a partir do natural.

 Sagrada Família com Santa Ana, foi identificada como sendo uma pintura de El Greco no século XIX.
A pintura antes do restauro dos anos 1980, quando a figura de São José não estava ainda visível.
A radiografia que permitiu aos restauradores identificar o homem escondido sob camadas de tinta,
não se sabe quando nem porquê.

17/09/2015

Tesouros arqueológicos perdidos devido à guerra e ao fanatismo religioso - Museu de Arte Islâmica

O Museu de Arte Islâmica no Egipto tinha uma das maiores colecções mundiais, com mais de 100 mil peças que cobriam toda a história islâmica, num edifício cuja construção começou em 1881 e que há poucos anos tinha sofrido uma renovação de vários milhões de euros. Pouco tempo após reabrir, em Janeiro de 2014, um atentado com um carro bomba danificou o museu de tal forma que este teve de fechar novamente.
Egipto
Museu de Arte Islâmica

Tesouros arqueológicos perdidos devido à guerra e ao fanatismo religioso - Mesquita Al-Omari

Da Grande Mesquita da cidade de Jabaliya (Gaza) resta apenas o minarete, após ataques aéreos israelitas no norte da Faixa de Gaza, em 2014. Crê-se que o antigo monumento, da Era Mamluk, foi transformado em mesquita no século VII e possuía outras construções do século XIV.
Mesquita Al-Omari, Gaza

Tesouros arqueológicos perdidos devido à guerra e ao fanatismo religioso - Palmira

A cidade antiga, património da UNESCO, tem origem no neolítico e as primeiras referências são do segundo milénio antes de Cristo, com alguma da arquitectura mais avançada desse período. Cresceu e desenvolveu-se durante os períodos greco-romano e persa. Está actualmente sob controlo do Estado Islâmico, que já destruiu dois altares. Teme-se que a destruição continue.
Palmira, Síria
Palmira - Síria

16/09/2015

Universidade de Yale recebe juro de obrigação emitida em 1648

A Universidade de Yale vai receber 136,20 euros em juros de uma obrigação emitida há 367 anos. A obrigação perpétua foi emitida em 1648 por uma empresa de gestão de recursos hídricos holandesa, a de Stichtse Rijnlanden, que pretendia construir um dique no rio Lek, uma continuação do Reno. Para tal, contraiu então um empréstimo de mil florins (a antiga moeda holandesa) com maturidade perpétua. Pouco mais de três séculos e meio depois, em 2003, o documento em pele de cabra que regista a contracção da dívida foi comprado pela Universidade de Yale (fundada no século XVIII) por 24 mil euros devido ao seu interesse histórico. O documento, com o nome “Lekdijk Bovendams”, tem a particularidade de ser um dos cinco registos mais antigos do mundo que ainda rendem juro. O valor do juro chega a 136,20 euros porque, desde que a universidade adquiriu o registo, a instituição não recebeu qualquer quantia. Como a empresa ainda existe, a Universidade de Yale contactou a de Stichtse Rijnlanden para receber o montante. Uma porta-voz da empresa holandesa disse à Bloomberg que os 136,20 euros seriam liquidados na próxima segunda-feira.
“Lekdijk Bovendams”, 1648
“Lekdijk Bovendams”, obrigação emitida em 1648.

11/09/2015

Homo naledi vem complicar ainda mais a nossa árvore genealógica evolutiva

Uma equipa internacional de cientistas anunciou esta quinta-feira a descoberta de uma nova espécie de humanos antigos numa gruta na África do Sul. Os seus resultados foram publicados em dois artigos separados na revista online de acesso livre eLife.
A nova espécie foi baptizada Homo naledi do nome da gruta, Dinaledi – que em sotho, uma das 11 línguas oficiais da África do Sul, significa “as estrelas”. Situada a uns 40 quilómetros de Joanesburgo, a gruta faz parte do local arqueológico conhecido como "Berço da Humanidade", que a UNESCO classificou como património mundial devido à riqueza de depósitos com fósseis que alberga nas suas inúmeras grutas.
Os 1550 fósseis agora analisados, que são sobretudo ossos mas também dentes, foram recolhidos durante duas expedições à gruta, respectivamente em Novembro de 2013 e Março de 2014. Quatro dezenas de cientistas, liderados por Lee Berger, paleoantropólogo da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, participaram no empreendimento.
Desde 2008 que Berger começou a realizar uma prospecção minuciosa do Berço da Humanidade. E em 2010, já descobrira aliás uma nova espécie de australopiteco, o Australopithecus sediba. Os ossos provêm de pelo menos 15 indivíduos e representam a maior colecção de restos de hominíneos jamais descoberta no continente africano.
O novo “homem das estrelas” merece duplamente a sua alcunha. É que, para aceder à câmara da gruta onde se encontravam a ossadas fósseis – a “câmara das estrelas” – foi precisa a ajuda de seis autênticas “astronautas subterrâneas”. Seis jovens mulheres que desceram pela única via de acesso existente: uma fissura vertical, longa de 12 metros, cuja largura é por vezes da ordem dos 20 centímetros! A câmara que contém os fósseis está a uns 30 metros de profundidade e a cerca de 80 metros de distância, em linha recta, da entrada actual mais próxima da câmara. Na gruta, encontraram adultos e crianças que pertencem ao género Homo, mas que são muito diferentes dos humanos modernos.
Eram muito pequenos e tinham o cérebro do tamanho do dos chimpanzés. Tinham o cérebro do tamanho de uma laranja e um corpo muito esbelto. Na idade adulta, mediam em média um metro e meio de altura e pesavam 45 quilos.
O minúsculo cérebro e a forma do corpo de Homo naledi são mais próximos do grupo pré-humano dos australopitecos do que de nós. Mas as mãos, os pulsos e os pés são muito semelhantes aos do homem moderno. A mão tem características de tipo humano que lhe permitiam manipular objectos, mas ao mesmo tempo tem os dedos curvos, bem adaptados para trepar às árvores. As mãos de Homo naledi levam a crer que tinha a capacidade de usar ferramentas, os seus dedos eram muito curvos e, ao mesmo tempo, é praticamente impossível distinguir os seus pés dos do homem moderno. Os seus pés e as suas pernas compridas permitem pensar que era capaz de caminhar durante muito tempo.
Contudo, a posição exacta da nova espécie na árvore genealógica da evolução humana permanece desconhecida, bem como a idade dos fósseis. Se estes fósseis datam do fim do Plioceno [há 5,3 a 2,58 milhões de anos] ou do início do Pleistoceno [há entre 2,58 milhões e 700.000 anos], é possível que esta nova espécie de Homo, primitivo e com um cérebro pequeno, represente uma fase intermédia entre os autralopitecos e o Homo erectus. Mas se forem mais recentes talvez este pequeno humano tenha vivido, no Sul de África, na mesma altura em que ali evoluíram espécies humanas com cérebros maiores.
Quantas espécies de humanos havia? Havia linhagens que surgiam e depois desapareciam? Coexistiram com os humanos modernos? Procriaram com eles?
Uma das constatações mais surpreendentes dos cientistas foi que os corpos pareciam ter sido depositados intencionalmente na gruta. É possível imaginar vários cenários, incluindo o ataque de um carnívoro desconhecido, uma morte acidental ou até uma armadilha. O cenário mais plausível é que esses corpos tenham sido deliberadamente colocados naquele sítio. Se assim for, isso, só por si, fala da humanidade daqueles homens primitivos e põe em causa a ideia geralmente aceite de que só os humanos mais recentes desenvolveram comportamentos ritualizados. A prática indicaria um comportamento surpreendentemente complexo para uma espécie humana ‘primitiva. A datação dos fósseis poderá fornecer respostas a este enigma.
A mistura de características do Homo naledia mostra mais uma vez a complexidade da árvore genealógica humana e a necessidade de realizar pesquisas mais aprofundadas para perceber a história e as derradeiras origens da nossa espécie.
Seja como for, a câmara das estrelas ainda não revelou todos os seus segredos. Há potencialmente centenas, se não milhares, de restos fósseis de Homo naledi que ainda estão lá em baixo.
Homo naledi, conjunto de ossadas
Ossos do Homo naledi.
Homo naledi, mão
Mão do Homo naledi.
Homo naledi, maxilar
Maxilar do Homo naledi.
Homo naledi - reconstituição
Reconstituição da face do Homo naledi .

10/09/2015

Visão História - Imagens de Portugal no século XIX

Este número da VISÃO História deveria começar a ser lido pelo último texto, já que é a fotografia o motivo da sua realização. Foi a partir de Tesouros da Fotografia Portuguesa do Século XIX, um projeto do Museu Nacional de Arte Contemporânea Museu do Chiado, que surgiu a ideia de dedicar uma edição à segunda metade do século XIX, mais precisamente a partir de 1839, ano em que foi noticiada a descoberta do processo de fixar as imagens e em que a rainha portuguesa D. Maria II recebeu um fotógrafo francês, que lhe mostrou a nova invenção. O projeto do Museu Nacional de Arte Contemporânea, dividido em duas exposições patentes no Museu do Chiado entre 30 de abril e 28 de junho de 2015, em Lisboa, e na Galeria Municipal Almeida Garrett, no Porto, até 16 de agosto e completado pela publicação de um catálogo, lança um novo olhar sobre a forma como é habitualmente entendida a fotografia e a sua história, reunindo imagens de diferentes acervos, muitas delas expostas pela primeira vez.
Foi a partir desse conjunto de imagens que se construiu este número, agrupando as fotografias por grandes temas a política, os caminhos-de-ferro, as cidades, a cultura, etc. e contextualizando-as historicamente. Especialistas e investigadores foram convidados para escrever sobre cada um dos assuntos e os principais acontecimentos são lembrados numa cronologia dividida em quatro períodos históricos, espalhadas ao longo do número.
Imagens de Portugal no século XIX
Capa da revista Visão História, "Imagens de Portugal no século XIX"

A Sagrada Família com Santa Ana de El Greco no MNAA

Obra Convidada - A Sagrada Família com Santa Ana, de Domenikos Theotokopoulos, El Greco (1541-1614)
Inaugura no dia 14 de setembro, às 18h00, no Museu Nacional de Arte Antiga a última Obra Convidada do ano: A Sagrada Família com Santa Ana, de Domenikos Theotokopoulos, El Greco (1541-1614), vinda do Museo de Santa Cruz, Toledo.
Exposição inaugural da Mostra Espanha 2015, esta Obra estará patente no MNAA até 10 de janeiro de 2016.
El Greco
Obra Convidada - A Sagrada Família com Santa Ana de El Greco (1541-1614)

09/09/2015

Ossos de vítimas da Inquisição na antiga prisão de Évora

O castigo era das almas, mas os corpos foram abandonados sem direito a cerimónias fúnebres ou compaixão de últimos instantes. Nos 20 metros quadrados do “quintal da limpeza dos cárceres”, a lixeira da prisão do Tribunal da Inquisição de Évora, 12 esqueletos e 980 ossos desarticulados são hoje a memória última que sobejou da vida de homens e mulheres perseguidos pelo Santo Ofício. Uma equipa de investigadores foi analisar essas ossadas, que datam dos séculos XVI e XVII, e recuperar os respectivos processos acusatórios e determinou que as vítimas terão sido acusadas de “judaísmo”, “heresia” e “apostasia”.
Os restos mortais foram encontrados por acaso, entre 2007 e 2008, durante as intervenções arqueológicas desenvolvidas para a recuperação do antigo Tribunal da Inquisição, edifício que hoje pertence à Fundação Eugénio de Almeida. Ao lado, o templo romano do século I d.C. ergue-se como símbolo da liberdade que teima em persistir. A empresa Crivarque Arqueologia e a Universidade de Évora foram responsáveis pelas escavações no “quintal da limpeza dos cárceres”, onde se encontravam dispersos, entre lixo doméstico, ossos que pertenceram a pelo menos 16 pessoas. Entre 2012 e 2013, o material osteológico foi estudado pela equipa de cientistas do Centro de Investigação em Antropologia e Saúde da Universidade de Coimbra e do Departamento de Biologia da Universidade de Évora, que publicou os resultados em Julho deste ano na revista Journal of Anthropological Archaeology.
Foram encontrados ossos de pelo menos 16 indivíduos [distinguidos pelo osso do fémur esquerdo]. Pelos relatórios arqueológicos de campo. Mais alguns esqueletos ficaram no local, porque a área onde se encontravam não iria ser afectada pelas obras. A área escavada constitui apenas 11,5% do total do quintal, motivo que leva os investigadores a pensar ser possível encontrar mais restos mortais na área não explorada.
O que fez os investigadores concluírem que os corpos teriam sido para ali atirados foi a posição em que se encontravam. A disposição dos esqueletos era variável, o que revelou a ausência de cerimónia fúnebre. Uns estavam de barriga para baixo, outros de lado e outros virados para cima; nenhum apresentava qualquer orientação da cabeça relativamente aos pontos cardeais. Além disso, a sua posição face à camada de terra indicava que os corpos não teriam sido sepultados.
Depois de analisarem fotografias do local tiradas durante as escavações os cientistas foram traçar o perfil biológico de cada um dos indivíduos encontrados. Os esqueletos pertenciam a 12 adultos, três homens e nove mulheres.
E o que contam os ossos sobre os indivíduos e a vida na prisão? Aqueles indivíduos morreram no cárcere, mas nem todas as doenças deixam provas nos ossos. E também não se encontraram provas de torturas, como, por exemplo, membros superiores ou inferiores partidos.
Mas neste caso a literatura veio preencher as lacunas no que a biologia não pôde contar. Nas Notícias Recônditas do Modo de Proceder a Inquisição de Portugal com os Seus Presos (1821), o padre António Vieira ilustra as condições em que eram mantidos os presos no cárcere de Évora, enquanto aguardavam julgamento.
“Nestes cárceres estão de ordinário quatro, e cinco homens; e às vezes mais, conforme o número de presos que há; e a cada um se lhe dá seu cântaro de água para oito dias (e se acaba antes, tem paciência) e outro mais para a urina, com um serviço para as necessidades, que também aos oito dias se despejam: e, sendo tantos os em que conservam aquela imundícia, é incrível o que nele padecem estes miseráveis, e no Verão são tantos os bichos, que andam os cárceres cheios, e os fedores tão excessivos, que é benefício de Deus sair dali homem vivo. E bem mostram os rostos de todos, quando saem nos Actos, o tratamento que lá tiveram, pois vêm em estado que ninguém os conhece”.
No cárcere de Évora, os presos estavam ainda sujeitos a tortura. Para confessarem os crimes de que eram acusados, os seus carrascos utilizavam a tortura da polé e do potro. A tortura da polé foi preferencialmente utilizada pela Inquisição de Évora e era aplicada por ordem crescente de gravidade das acusações. O réu era colocado no banco com as mãos atadas com correias atrás do corpo e ligadas ao calabre que o içava. Era depois erguido até onde a gravidade da sua acusação o levava e largado lenta ou bruscamente. Na tortura do potro, que apenas foi pedida pela Inquisição de Évora em 1593, o réu era deitado com uma coleira em ferro no seu pescoço e era atado em várias partes nos braços e nas pernas. As cordas eram depois apertadas e giradas como um torniquete, pressionando de forma progressiva os membros do condenado e podendo chegar ao ponto de esmagar a sua carne e ossos”.
Numa outra fase do estudo, os investigadores foram explorar as fontes documentais que poderiam ajudar a reconstituir a identidade dos ossos. Os manuscritos do Arquivo Distrital de Évora e os registos dos encarcerados conservados na Torre do Tombo, em Lisboa, contribuíram em grande escala para conhecer melhor a história. Um dos manuscritos constatava que o “quintal de limpeza da prisão” não estaria associado à Inquisição pelo menos até 1568. Por outro lado, os planos de construção do edifício, projectado em 1634 pelo arquitecto da Inquisição Matheus de Couto, indicavam que nesta altura o quintal já não era usado como um local de depósito de lixo doméstico. Estes dados levaram os investigadores a concluir que os corpos teriam sido ali depositados entre 1568 e 1634. Delimitado o período de tempo, a equipa pôde recuperar 87 registos de indivíduos que teriam morrido na cadeia entre essas datas. Desses 87 registos, 11 referiam-se a presos que, depois de mortos, teriam sido depositados no quintal da prisão. Acusados de “judaísmo”, “heresia” e “apostasia”, os 11 indivíduos tinham profissões como tendeiro, ferreiro, trapeiro, rendeiro, ourives ou maceiro. Se eram ou não judeus, isso é impossível de afirmar. Aquela era uma época de medo e vários historiadores referem que as pessoas acusavam familiares, amigos, vizinhos com medo de eles próprios serem acusados primeiro por essas pessoas. Isabel Vaz, Leonor Mendes, Gabriel Fernandes ou António Mendes são alguns dos nomes que não se perderam no tempo. Nem todos os processos dizem qual é o local onde a pessoa foi enterrada.
Em grande parte dos casos o julgamento nunca chegava. “Estes, que mal se sabem benzer, e que, se lho perguntarem, não hão-de saber explicar que cousa é ser cristão, nem o que é ser judeu, vão logo pelos caminhos persuadindo aos presos que confessem, e tornem para suas casas”, lemos ainda nas Notícias de Vieira. “Porque os Senhores Inquisidores são de muita misericórdia, que a usarão com eles: e que, se não confessarem, estarão lá muitos anos, e sairão a morrer.”
Os documentos analisados sugerem ainda que apenas pessoas acusadas de não seguir a religião católica eram depositadas no jardim, depois de mortas. Mas a lei da Inquisição portuguesa também o corrobora. O caso de Francisco Machado é exemplo que mostra as diferenças de tratamento consoante o “crime”. Acusado de poligamia, o réu recebeu em 1608 um funeral, tendo sido sepultado na Igreja de Santo Antão, junto ao Tribunal da Inquisição de Évora. O propósito deste tratamento inapropriado aos mortos era não só para punir os seus corpos, mas mais ainda para enfraquecer e destruir as suas almas.
A instituição do Tribunal do Santo Oficio em Portugal foi em 1532, no reinado de D. João III. O tribunal era simultaneamente régio e eclesiástico e a sua acção estendia-se a todo o país e territórios da Coroa portuguesa. Em 1821 a Inquisição portuguesa era finalmente extinta. Hoje, e desde Janeiro deste ano, é possível a descendentes de judeus sefarditas, expulsos de Portugal a partir do século XV, pedirem a nacionalidade portuguesa, por naturalização.
“Quatro palmos de casa cabe a cada um. Aos mortos são concedidos sete pés de sepultura, e nem tantos de casa cabem a cada um destes desgraçados vivos”, assim testemunhava o padre António Vieira, cristão destemido na luta contra a Inquisição.
Quintal da limpeza do Tribunal da Inquisição de Évora
Esqueleto encontrado no "quintal da limpeza dos cárceres" do Tribunal da Inquisição de Évora.
Quintal da limpeza do Tribunal da Inquisição de Évora
Ossos encontrados no "quintal da limpeza dos cárceres" do Tribunal da Inquisição de Évora.
Quintal da limpeza do Tribunal da Inquisição de Évora
O "quintal da limpeza dos cárceres" do Tribunal da Inquisição de Évora.

04/09/2015

Estado Islâmico destrói torres funerárias em Palmira

Menos de uma semana depois de ter detonado o principal tempo de Palmira, o Estado Islâmico destruiu três torres funerárias no complexo arqueológico da cidade antiga, segundo o director-geral de Antiguidades e Museus da Síria.
As torres de arenito, erigidas entre 44 e 103 d.C., situam-se fora das muralhas da cidade, numa área conhecida como Vale dos Túmulos. Entre os monumentos atingidos contam-se a Torre de Elahbel, construída em 103 d.C., e a mais bem preservada de todo o conjunto. Com os seus quatro pisos, a Torre de Elahbel tinha capacidade para 300 sarcófagos.
Só nas últimas duas semanas, os militantes do Estado Islâmico apagaram do mapa os dois templos mais importantes de Palmira, os templos de Baal-Shamin e de Bel.
Classificada pela UNESCO como Património da Humanidade desde 1980, as ruínas monumentais de Palmira resultam do cruzamento entre a cultura greco-romana, influências persas e tradições locais, o que lhes confere um carácter rico e único. O Estado Islâmico começou a sua campanha de destruição em Palmira em Junho, anunciando que iria remover todas as “manifestações de politeísmo”.
Palmira
Vale dos Túmulos com as torres de arenito, erigidas entre 44 e 103 d.C .