28/04/2015

Cerca de 400 peças devolvidas ao Egipto

A operação conhecida como A Maldição da Múmia, lançada pelas autoridades norte-americanas em 2010, apreendeu ao longo dos últimos anos e repatriou na semana passada 135 peças roubadas do Egipto. Segundo o site da embaixada egípcia em Washington, as peças estariam a entrar na América pela mão de uma rede internacional suspeita do contrabando de cerca de sete mil itens de património móvel de todo o mundo e que era a principal visada pela operação. Segundo o jornal El País, ainda que algumas das peças agora devolvidas ao Cairo tenham deixado o Egipto antes da revolução de 2011, a maioria saiu do país depois desse ano. Em geral, terão sido roubadas por máfias especializadas no contrabando de antiguidades e que aproveitaram a instabilidade do país no período que se seguiu à queda do presidente Hosni Mubarak, dizem os serviços de fronteiras e imigração norte-americanos.
Entre as obras resgatadas estão várias estatuetas, relevos, máscaras, restos humanos, moedas e um valioso sarcófago com cerca de 2300 anos e que terá sido passado primeiro para o Dubai, antes de ser apreendido em 2009 numa garagem do bairro nova-iorquino de Brooklyn. Apresentará marcas feitas pelos ladrões, que o cortaram em pedaços para poder fazê-lo transportar por um serviço de entrega postal urgente.
O sarcófago, que tem uma inscrição hieroglífica a dizer ‘A dona da casa’, data do período greco-romano e será exposto no novo Grande Museu Egípcio, a abrir em 2018. Além desta peça, entre os objectos recuperados – a maioria pertencentes ao último período do antigo Egipto, cerca de 600 a.C. – destacam-se ainda duas barcas funerárias em madeira feitas entre 2000 e 1.700 a.C., vários relevos esculpidos num templo de pedra datados de cerca de 1070 a.C. a 664 a.C., a máscara de uma múmia, restos humanos mumificados e 65 moedas.
Entretanto, às 135 peças apreendidas nos Estados Unidos juntaram-se outras 240 chegadas de França, segundo informou o Ministério de Antiguidades egípcio. Os objectos foram interceptados pelo serviço de fronteiras do aeroporto internacional Charles de Gaulle de Paris ao longo dos últimos anos e são relativos a vários períodos do antigo Egipto. Entre eles está uma colecção de 50 amuletos em forma de coração, feitos em ónix e mármore, estelas em pedra, estatuetas e anéis. O repatriamento destas obras, recorda o El País, surge na sequência de anos de esforços das autoridades egípcias, que assinaram acordos de colaboração com a maioria dos países ocidentais com o objectivo de impor um maior controle ao comércio ilegal de antiguidades. Em Novembro passado, recorda o diário espanhol, foi assinado um memorando que obriga as instituições americanas, universidades incluídas, a impor novas restrições ao comércio de antiguidades egípcias.
Desde 2011, apesar da instabilidade nacional e de se saber que muitos grupos estão a operar no terreno, é habitual apenas um agente estar encarregue da segurança nocturna de vários hectares de sitios arqueológicos em zonas remotas do Egipto. Uma tarefa impossível.  Segundo o Governo deste país do Médio Oriente, desde a queda de Mubarak, mais de quatro mil peças foram tiradas clandestinamente para o estrangeiro. Só uma quarta parte deste espólio terá, até hoje, sido recuperada. Sabendo que, apesar de tudo, as peças roubadas de museus como o Museu de Mallawy, saqueado no verão de 2013, ou o Museu Egípcio do Cairo, assaltado durante a revolução de 2011, são mais fáceis de recuperar: a partir do momento em que são interceptadas o Estado pode facilmente provar a sua propriedade. Já as que estão ainda por identificar e catalogar e dão entrada em colecções privadas são quase impossíveis de recuperar.
civilização egípcia
Sarcófago com cerca de 2300 anos.
civilização egípcia
Barca funerária em madeira datada entre 2000 e 1700 a.C.

24/04/2015

História Contemporânea de Portugal 1808-2010

DIOGO RAMADA CURTO, Público, 24/04/2015
Primeiro ponto a destacar: a evidente passagem de testemunho por parte de uma geração de historiadores em torno dos 60 anos, todos com provas dadas em obras individuais e colectivas, relativamente a investigadores mais novos, rondando os 40 anos, com uma enorme capacidade de inovação. A este nível, uma das sequências temáticas mais arrojadas do conjunto dos volumes em causa (e outras existem!) diz respeito ao tratamento das questões culturais, entregue a uma nova geração com obra já firmada: Paulo Silveira e Sousa, Luís Trindade, Daniel Melo e João Pedro George. Porém, a mobilização de um grupo de historiadores neste projecto colectivo passou de geração, mas não passou de género. Por descuido, com certeza, nem uma única mulher foi convidada a participar. Ora, um descuido deste tipo seria considerado discriminatório e impossível de justificar, em campos universitários bem conhecidos por quem dirige o projecto.
Segundo ponto, em cada um dos cinco volumes — bem escritos e revistos, suportados por dados quantitativos seleccionados de forma clara no que respeita às questões económicas cuja história progride a passos largos — existe um tratamento sério da imagem como documento e não como ilustração. Este aspecto merece ser destacado, porque, ao ter sido desenvolvido de um modo sistemático, se afigura inédito entre nós em obras do género. Tão-pouco o cuidado posto no tratamento da imagem pode ser visto como um dado isolado, pois insere-se numa preocupação geral que percorre toda a obra e que consiste em cruzar fontes, de forma rigorosa e crítica. Porém, faltam mapas, uma base cartográfica que represente, por exemplo, as assimetrias e que dê conta das questões territoriais, permitindo — no futuro próximo — pensar melhor a História não tanto nas suas determinações geográficas, mas num quadro capaz de colocar questões de ecologia e sustentatibilidade, num mundo em mutação climática.
Terceiro, talvez pela primeira vez em Portugal, um grupo de cerca de 20 investigadores universitários — que trabalham, sobretudo, na Universidade Nova de Lisboa (Faculdade de Economia e Faculdade de Ciências Sociais e Humanas) e no ICS-Universidade de Lisboa — uniu esforços para escrever uma História de Portugal, bem ancorada noutras ciências sociais — economia, sociologia, ciência política, relações internacionais, etc. Esta abertura da História às ciências sociais, suscitada por quem dirige e coordena os diferentes volumes, inspira-se nos grandes projectos de inovação interdisciplinar que marcaram tanto a História como as outras ciências sociais e políticas ao longo do século XX, sobretudo na Alemanha, em França e nos Estados Unidos. Este mesmo diálogo sustenta sucessivas abordagens, organizadas por temas e problemas, orientadas para a procura de causas e consequências; no fundo, uma perspectiva analítica de fôlego, que se afasta das abordagens descritivas e narrativas em que muitas sínteses históricas derrapam por miopia ou convicção simplista.
Contudo, o diálogo entre a História e as ciências sociais — ao mesmo tempo que revela a presença de um discurso académico, frio e objectivo, em que as análises são correctamente submetidas a construções tipológicas e procuram a demonstração de argumentos — parece anular qualquer tipo de envolvimento dos historiadores com os seus projectos. A crítica é delicada e os melindres são inevitáveis. Entre nós, Rui Ramos é o historiador do período contemporâneo que representa cada vez mais e melhor esse outro lado, constituído por projectos historiográficos comprometidos politicamente e desligados de um diálogo com as ciências sociais (o que não impediu que o seu volume sobre a República, na História de Portugal dita de Mattoso, ofereça estimulantes perspectivas), donde as suas interpretações revisionistas da República e do Estado Novo terem suscitado debate e polémica. Mas não é tanto esse tipo de envolvimento político que está em causa quando se escreve História em contacto com as ciências sociais.
Lucien Febvre, nas suas lições do Collège de France proferidas durante a ocupação nazi, escreveu belas páginas acerca de Michelet, criador da história de França (Michelet, créateur de l’histoire de France — Cours au Collège de France, 1943-1944, Vuibert, 2014). O contexto era de luta. Michelet era mais um pretexto para fazer da História um instrumento de combate relativamente aos usos do passado no presente. Que pelo menos se libertasse a História da nação e da ideia de raça e que não se considerasse passível de justificação pelo passado o nacionalismo equiparado ao racismo. A construção da nação nada tinha que ver com a existência de uma raça pura, de eleitos. Assim argumentava, ou quase vociferava contra os nazis, um dos maiores inventores da historiografia moderna, que dirigiu essa utopia intitulada Encyclopédie Française, provavelmente uma das últimas a procurar sustentar uma ideia francesa de civilização.
Claro que os tempos e o contexto em que se trabalha, hoje, em Portugal são diversos. A História e as outras disciplinas interessadas na compreensão da sociedade foram monopolizadas pelas universidades, que ditam as suas regras de rigor e neutralidade, não sendo possível escapar às rotinas quase burocráticas impostas pelo funcionamento das instituições. Paralelamente, é inegável que Portugal, tal como a Europa, sofre, segundo o historiador Mark Mazower, “de exaustão ideólogica” e que “a política se tenha tornado numa actividade desprovida de qualquer visão”. Por todas as razões aduzidas, fará sentido exigir que uma obra colectiva de História se comprometa num qualquer combate? De facto, talvez não se possa esperar que o mesmo tipo de envolvimento manifestado por Febvre seja, agora, partilhado pelos que dirigem e colaboram nesta História Contemporânea de Portugal.
E, no entanto, quem dirige chega mesmo a declarar que a novidade da orientação, a marca de distinção deste projecto colectivo, estaria na sua orientação ibérica, atlântica e global. Um programa que, depois de anunciado, parece ter sido posto de lado, pois não serviu realmente de guião para a escrita dos cinco volumes. Porventura mais consequente ao longo da obra é a recusa em pensar qualquer tipo de nacionalismo; mas não será que com esta recusa os directores se interditam de analisar um dos objectos sem dúvida mais difíceis mas absolutamente necessários, sobretudo num quadro comparativo dos usos contemporâneos do nacionalismo posterior aos trabalhos de Benedict Anderson, Ernest Gellner e Eric Hobsbawm?
O mesmo se diga da estrutura temática reproduzida geometricamente nos cinco volumes, todos divididos em “chaves do período”, política, “Portugal no mundo”, economia, “população e sociedade”, e “cultura”. Nada a opor a essa tipologia que poderá facilitar comparações de período para período, mas não será que ela supõe uma concepção do tempo a régua e esquadro que deixa escapar a percepção de uma multiplicidade de texturas temporais, em que os ritmos são diferentes segundo os vários sistemas? Ou seja, será que a economia muda ao mesmo ritmo que a política, a sociedade ou a cultura? É que bem pode Álvaro Ferreira da Silva, num dos mais brilhantes capítulos desta colecção sobre a economia, declarar que o “seu” período 1890-1930 não tem unidade, o certo é que foi nele que a sua análise teve de encaixar-se. A bem de quê? Presumo que, no seu caso, a bem de uma periodização espanhola que tem nos anos de 1890 um dos seus marcos. E o resultado é um Portugal à espanhola...
Também passível de discussão crítica é o espaço concedido ao império colonial, que surge apenas sob o tema “Portugal no mundo”, em que inadvertidamente se reproduz uma formulação do Estado Novo que Cavaco Silva recuperou quando primeiro ministro. Umas escassas páginas por volume, que parecem emagrecer à medida que se progride no tempo, são dedicadas ao império. A responsabilidade não poderá ser atribuída aos que abordaram o tema, nos diferentes períodos, tratando o império em função das relações internacionais de Portugal. O problema está numa concepção do Portugal contemporâneo esvaziada de uma das suas dimensões essenciais — o império colonial —, ao lado das persistências de uma sociedade rural e da emigração.
Quarto e último ponto, de natureza editorial, suscitador de uma série de questões: como interpretar o facto de as duas últimas histórias de Portugal lançadas no mercado terem sido promovidas por editoras ou instituições espanholas? Refiro-me à História de Portugal dirigida por Rui Ramos, em co-autoria com Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno G. Monteiro (Esfera dos Livros), e, agora, à História Contemporânea de Portugal. Será esta coincidência a expressão de um genuíno interesse ibérico em conhecer o nosso país? Ou será que se trata da ocupação de um espaço deixado livre depois de uma espécie de saturação do mercado português por parte de editoras e instituições portuguesas?
Em suma, as forças e fraquezas, as dúvidas e perplexidades aqui apontadas não beliscam sequer o carácter rigoroso e a capacidade de dar conta de inúmeros progressos de investigação que esta obra de síntese em si concentra. Mais: pelo seu carácter sistemático e equilibrado, fora dos luxos de campanhas publicitárias de promoção que foram possíveis algumas décadas atrás, a obra constituir-se-á num marco fundamental da historiografia portuguesa e de leitura obrigatória por parte de um público alargado.
António Costa Pinto e Nuno Gonçalo Monteiro (dir.)
António Costa Pinto e Nuno Gonçalo Monteiro (dir.), História Contemporânea de Portugal 1808-2010.
O colapso do império e a revolução liberal (1808-1834).

17/04/2015

O Continente das Trevas: O Século XX na Europa

Diogo Ramada Curto. PÚBLICO, 17/04/2015.
Na década de 1990, algumas obras de fôlego procuraram dar sentido ao século que acabava. Francis Fukuyama, em O Fim da História e o Último Homem (1992, tradução portuguesa na Gradiva) argumentou que, com a queda do Muro de Berlim e o triunfo da democracia liberal, se assistia à homogeneização do mundo global, no qual os Estados deixariam de encontrar razões para a guerra. Poucos anos depois, Samuel P. Huntington, em O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial (1996, tradução na Gradiva), viu na globalização uma força geradora de conflitos e não de consensos. A homogeneização, de que falava Fukuyama, dizia apenas respeito ao comportamento das elites minoritárias. Por isso, a difusão dos valores ocidentais, associados à democracia liberal, só poderia promover resistências e choques. Enfim, segundo Huntington, melhor seria que os EUA seguissem uma política mais isolacionista, que pudesse evitar o choque das civilizações.
Ao lado de tais debates, promovidos no interior de uma ciência política em ascensão, alguns livros de história tentaram outros caminhos. O mais importante, no desencadear de uma série de debates de larga repercussão, foi A Era dos Extremos: História Breve do Século XX (1918-1991) (1994, tradução na Presença), da autoria do historiador marxista britânico Eric Hobsbawm. Nele, os acontecimentos-chave correspondem à seguinte sequência e transformaram-se num padrão utilizados por outros historiadores: final da Grande Guerra, Revolução Russa de 1917, recessão ou depressão, ascensão nazi na Alemanha e impacto da Segunda Guerra, a rivalidade nuclear entre os dois grandes blocos e as décadas da Guerra Fria. Hobsbawm viu o fim do comunismo como uma tragédia, pois considerava que com ele deixavam de existir alternativas válidas, no sentido da criação de uma sociedade mais justa e igualitária. Não escondeu, também, que o comunismo tinha sido uma das principais trincheiras de combate aos totalitarismos fascistas e ao capitalismo em geral.
Em 1998, Marc Mazower entrou pela porta grande dos referidos debates, quando publicou The Dark Continent, traduzido agora como O Continente das Trevas: O Século XX na Europa. Nele, equipara o comunismo a um tipo de totalitarismo, embora insista mais nas crueldades perpetradas pelo fascismo e pelo nazismo, com o seu modelo de Estado autoritário. Talvez o faça por considerar que “o impacto do comunismo na democracia — por muito importante que tenha sido — foi em geral mais indirecto e menos ameaçador do que o desafio representado por Hitler”. Mas não é só no diálogo crítico que mantém com Hobsbawm que Mazower desenvolve os seus argumentos. É também através de uma crítica acerca das perspectivas da democracia liberal, mobilizadas de forma optimista e pessimista, respectivamente, por Fukuyama e Huntington, que Mazower desenvolve, analítica e historicamente, as suas interpretações da Europa no século XX.
Assim, o livro em causa pode ser lido como uma ampla discussão do mito historiográfico do liberalismo aplicado ao seu continente de origem: a Europa. Conforme Mazower explica, com o fim da Grande Guerra e das monarquias absolutas dos Hohenzollern, Habsburgo e Romanov, a Europa viu-se frente a três alternativas: democracia liberal, fascismo e comunismo marxista. O primeiro modelo, de uma democracia parlamentar à inglesa, não passou de uma experiência, isolada e fugaz. Os povos europeus, sobretudo do Leste, necessitavam de pão, segurança, terra e autodeterminação, tudo objectivos que não poderiam ser satisfeitos pela democracia. Sobretudo na Europa do Leste, “o fraco enraizamento da democracia na tradição política europeia permitia explicar por que razão os regimes antiliberais se estabeleceram com tanta facilidade e sem grandes protestos”.
Mas o sucesso dos regimes autoritários no período entre as duas guerras não se deveu apenas à falta de enraizamento das democracias a Leste. Apesar de pontual, uma das explicações mais subtis está no facto de um jurista de excelência como Hans Kelsen, um judeu que acabou por partir para o exílio e com uma indiscutível orientação democrática, ter igualmente reconhecido a “crise do sistema parlamentar” e proposto o reforço do executivo. Uma tal crise parlamentar era também visível, após 1918, quando os governos duravam oito meses na Alemanha e na Áustria, cinco em Itália e, depois de 1931, em Espanha, menos de quatro meses; por sua vez, em França, o tempo médio dos governos era de dez meses, entre 1870 e 1914, de oito entre 1914 e 1932, e baixou para os quatro meses entre 1932 e 1940. Enfim, “o impasse parlamentar levou a que se apelasse ao reforço do poder executivo”.
Por sua vez, a democracia era odiada pelos conservadores, por dar poder ao povo, pelos fascistas, por centrar o jogo político na intervenção das elites parlamentares, e pelos comunistas, por se apoiar na burguesia. Quanto à capacidade atractiva do fascismo, se este estava virado para o passado, também incluía aspectos bem modernos, sobretudo no que dizia respeito a uma política de massas, ao intervencionismo estatal e a alguns aspectos de um Estado-providência. Como bem define Mazower, este último modelo estatal, articulado com o racismo nazi, excluía grupos inteiros dos benefícios usufruídos pela “comunidade nacional”. Por sua vez, a “sacralização da política” de que falava Emílio Gentile — que envolveu o culto do líder e gastos sumptuosos em edifícios, comícios, exposições de propaganda e publicações — recorreu a instrumentos bem modernos que iam da disseminação de propaganda pela rádio ao alargamento da literacia ou ao aumento da escolaridade, sem esquecer a militarização da vida colectiva em geral.
Até que ponto é que o fascismo foi preparado pelos mesmos que se lhe vieram a opor? Assim parece ter acontecido, não só do ponto de vista dos grandes festivais de política de massas, como nas suas formas mais concretas de políticas imperiais e coloniais, em África e na Ásia, inspiradoras das políticas racistas dos nazis. Conforme argumenta Mazower, “numa época de colonialismo e darwinismo social, o conceito de hierarquia social era ubíquo, e poucos europeus de esquerda ou de direita não acreditavam em algum tipo de superioridade racial ou rejeitavam a sua importância para a política colonial”. Como já tinha sido sugerido por Hannah Arendt, Hitler apropriou-se do legado do imperialismo europeu, para desenvolver os seus próprios projectos de um império pan-europeu, virado sobretudo para Leste. Podendo dizer-se o mesmo do comunismo: não será este, como Mazower sugere com um irónico trocadilho, o último estádio do imperialismo? Enfim, o legado sangrento do fascismo e do comunismo acabou por consistir em guerras mundiais, genocídios e limpezas étnicas.
A Segunda Guerra, com os seus 40 milhões de mortos, foi o ponto culminante da violência do século XX. Tal número ultrapassou, em muito, os milhares de vítimas das guerras franco-prusssiana de 1870-1871 (184 mil mortos), Boer ou dos Balcãs, bem como os oito milhões da Primeira Guerra Mundial. A violência também foi muito maior entre os civis, talvez metade daquele número, o que era um facto inédito. A destruição aconteceu sobretudo a Leste, podendo dizer-se que as baixas britânicas e francesas representaram apenas um décimo das alemãs. A União Soviética contabilizou as perdas maiores: dez milhões de civis, três milhões de prisioneiros de guerra pela fome e 6,5 milhões nos combates da Frente Leste. As politicas genocidas de grupos étnicos e nacionais foram a forma mais extrema de violência, provocando “rombos enormes no tecido social e material”.
O período posterior à Segunda Guerra é abordado por Mazower de forma mais narrativa e menos analítica. Não existe, por exemplo, nenhuma explicação acerca do processo de integração europeia. Mas há alguns temas fortes. Por exemplo, o intervencionismo do Estado passou a ser considerado a forma de moderar o capitalismo e os europeus entregaram-se a um estatismo em que os principais líderes incentivaram o recurso ao planeamento técnico e a formas de engenharia social. Os compromissos ideológicos pertenciam ao passado, a ponto de se poder dizer, como sugere Mazower, que os europeus aceitaram a democracia no momento em que deixaram de acreditar na política.
Ou seja, depois de 1945, a Europa não ficou reduzida à escolha entre o capitalismo de mercado dos Estados Unidos e o comunismo soviético. O intervencionismo do Estado, o planeamento económico, directa ou indirectamente inspirado em Lord Keynes, e as políticas de bem-estar social da França, Grã-Bretanha, Suécia e outros países foram tanto uma reacção ao falhanço do capitalismo de mercado de 1929 quanto ao modelo comunista do controlo sobre o Estado. Acreditava-se, com razão, que Estado-providência e crescimento económico andavam a par, tendo sido necessário chegar aos anos de 1980, com o Governo Thatcher, para se assistir à generalização da ideia contrária, segundo a qual a despesa pública travava o crescimento económico. Claro que houve diferenças no modo de levar à prática esse mesmo Estado-providência. Por exemplo, as ambiciosas políticas públicas de habitação da Alemanha e da Grã-Bretanha contrastavam com a especulação e a indiferença estatal do Sul da Europa, de Roma a Atenas. Não foi, também, por acaso que o anti-americanismo se difundiu, porventura à excepção dos estratos sociais mais baixos atraídos pela cultura popular; sobretudo entre intelectuais e defensores da alta cultura foram evidentes os medos da “americanização”.
Não se esqueça, ainda, que no período posterior à Segunda Guerra, com a Alemanha de Leste na liderança, algumas democracias do bloco soviético alcançaram um indiscutível crescimento industrial. Facto tanto mais importante quanto não beneficiaram de qualquer ajuda ou incentivo dos Estados Unidos. Quanto à Guerra Fria, os dois blocos alcançaram um acordo durante as conferências de Guerra: tanto Moscovo como Washington procuraram não se meter nas esferas de influência do opositor. Propaganda, espionagem e competição económica actuaram como mecanismos compensatórios e instrumentos de actuação, substituindo o recurso ao poder militar. Os conflitos fronteiriços não degeneraram em violência, como sucedeu em 1914, criando assim espaço para a recuperação económica.
Em síntese, para Marc Mazower, a Europa do século XX não se define pelo seu apego aos valores e às práticas das democracias liberais, mas por uma reacção à violência que atingiu o seu máximo durante a Segunda Guerra. É, aliás, olhando para trás, para esse passado em que o número de mortos representa a ambição dos projectos em causa, que se poderá constatar, hoje, que “a Europa sofra de exaustão ideólogica e que a política se tenha tornado numa actividade desprovida de qualquer visão”.
Marc Mazower- O Continente das Trevas: O Século XX na Europa. Lisboa, Edições 70, 2015.

16/04/2015

Escavação acidental para resolver problema de canalização desvendou um mundo com séculos de história.

No número 56 da Via Ascanio Grandi, em Lecce, Itália, deveria ter nascido uma típica trattoria italiana. Cerca de 14 anos depois dos primeiros passos do projeto, ainda não há trattoria. Tudo porque um problema de canalização na casa de banho daquele que seria um pequeno restaurante revelou-se mais complexo do que seria esperado. Literalmente debaixo da sanita escondiam-se séculos de história.
Em 2001, Luciano Faggiano estava determinado em abrir uma trattoria no centro histórico de Lecce, cidade localizada no salto da bota que desenha geograficamente Itália. Tudo parecia bem, à excepção de um problema na casa de banho. A sanita devolvia o que devia desaparecer pela canalização do edifício. Com a ajuda de dois dos seus filhos decidiu resolver o problema. De um pequeno buraco para aceder à canalização, Faggiano e os filhos acederam a uma pequena divisão que se escondia debaixo da casa de banho. Incrédulos com o achado continuaram nos dias seguintes a investigar e deparam-se com várias outras divisões e corredores de um mundo cheio de história esquecido durante séculos. O que foi sendo descoberto data de vários séculos, alguns mesmo anteriores ao nascimento de Jesus, como foi o caso de um túmulo messápio, com data estimada do século V antes de Cristo. Durante as escavações foi ainda encontrado um celeiro romano destinado ao armazenamento de grão, bem como aquilo que terá sido a cave de um convento franciscano onde eram preparados os corpos dos mortos. O convento terá sido encerrado entre os séculos XVI e XVII. Foi também descoberto um poço com cerca de dez metros de profundidade, onde é possível ver água vinda do rio Idume.
As primeiras escavações foram feitas sob total secretismo mesmo da própria mulher, com a ajuda dos filhos, mesmo do mais novo, na altura com 12 anos, que amarrado com uma corda à cintura entrava nos espaços mais apertados para dar indicações ao pai e irmãos sobre o que estava por trás de mais uma parede ou buraco. O processo de escavação era ilegal e Faggiano sabia-o mas continuava a escavar e a retirar o entulho nas traseiras do seu carro às escondidas da mulher e dos vizinhos. Faggiano acabou por ser denunciado às autoridades por actividades suspeitas. As obras foram investigadas e canceladas pela polícia, a quem o italiano disse que apenas estava a investigar de onde vinha o problema na canalização. Após um ano de medição de forças com as autoridades, Faggiano acabou por ter autorização para continuar com os trabalhos de reparação dos canos mas sob vigilância. Com o avançar dos trabalhos começaram a emergir pequenos artefactos, divisões e corredores, frescos, pinturas medievais. Na última década, a família restaurou as divisões que foi encontrando sob a supervisão e apoio da Superintendência da Herança Cultural de Taranto e de uma equipa de arquitectos. Actualmente o espaço está aberto ao público como Museu Faggiano, onde estão expostos milhares de artefactos, alguns com mais de 2000 anos.
Lecce
Museu Faggiano

08/04/2015

Prémio Vasco Vilalva para o Museu de Arte Sacra de Santarém

O Museu de Arte Sacra de Santarém é o vencedor do Prémio Vasco Vilalva, atribuído pela Fundação Calouste Gulbenkian a projectos de intervenção na área do património e que tem o valor de 50 mil euros. A fundação especifica que o prémio anual homenageia o filantropo Vasco Vilalva (1913-1975) e que esta decisão do júri foi unânime. Dalila Rodrigues, António Lamas, José Pedro Martins Barata, José Sarmento de Matos e Rui Esgaio sublinham a “importância e abrangência do património recuperado” e a mais-valia deste projecto, que proporcionou o “resgate da perda iminente de um conjunto de peças de arte sacra” que integram o acervo do museu situado no complexo da catedral de Santarém e inserido na Rota das Catedrais. Em termos técnicos, o júri elogiou os “critérios e metodologias das intervenções” e frisou a importância do museu para a dinamização cultural da região e para a própria recuperação da catedral incluída no projecto. Três salas de exposição e uma sala de reservas albergam 220 pinturas, esculturas, talhas, azulejos, têxteis e outras obras do século XII até à actualidade, oriundas de um levantamento feito desde 2006 pela Comissão Diocesana para os Bens Culturais da Igreja. Há ainda livros e documentos em pergaminho e em papel provenientes do Fundo Antigo da Sé e Seminário de Santarém e de várias paróquias da diocese de Santarém que se encontravam dispersos. O Museu Diocesano de Santarém, dirigido pelo padre Joaquim Ganhão, foi inaugurado a 12 de Setembro de 2014 pelo Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, numa cerimónia em que o músico Rodrigo Leão estreou Cantata Mundi. Atribuído anualmente, o prémio já distinguiu a requalificação das salas de exposição do Museu do Caramulo (2013), o restauro da Igreja do Santíssimo Sacramento em Lisboa (2010), a recuperação e musealização do Móvel do Arcano Místico em Ribeira Grande (Açores, 2012) e a recuperação das ruínas romanas da Cidade de Ammaia, em Marvão (2009).
Museu de Arte Sacra de Santarém
Fachada da Catedral de Santarém.
Museu de Arte Sacra de Santarém
Pintura no Museu de Arte Sacra de Santarém.