24/04/2015

História Contemporânea de Portugal 1808-2010

DIOGO RAMADA CURTO, Público, 24/04/2015
Primeiro ponto a destacar: a evidente passagem de testemunho por parte de uma geração de historiadores em torno dos 60 anos, todos com provas dadas em obras individuais e colectivas, relativamente a investigadores mais novos, rondando os 40 anos, com uma enorme capacidade de inovação. A este nível, uma das sequências temáticas mais arrojadas do conjunto dos volumes em causa (e outras existem!) diz respeito ao tratamento das questões culturais, entregue a uma nova geração com obra já firmada: Paulo Silveira e Sousa, Luís Trindade, Daniel Melo e João Pedro George. Porém, a mobilização de um grupo de historiadores neste projecto colectivo passou de geração, mas não passou de género. Por descuido, com certeza, nem uma única mulher foi convidada a participar. Ora, um descuido deste tipo seria considerado discriminatório e impossível de justificar, em campos universitários bem conhecidos por quem dirige o projecto.
Segundo ponto, em cada um dos cinco volumes — bem escritos e revistos, suportados por dados quantitativos seleccionados de forma clara no que respeita às questões económicas cuja história progride a passos largos — existe um tratamento sério da imagem como documento e não como ilustração. Este aspecto merece ser destacado, porque, ao ter sido desenvolvido de um modo sistemático, se afigura inédito entre nós em obras do género. Tão-pouco o cuidado posto no tratamento da imagem pode ser visto como um dado isolado, pois insere-se numa preocupação geral que percorre toda a obra e que consiste em cruzar fontes, de forma rigorosa e crítica. Porém, faltam mapas, uma base cartográfica que represente, por exemplo, as assimetrias e que dê conta das questões territoriais, permitindo — no futuro próximo — pensar melhor a História não tanto nas suas determinações geográficas, mas num quadro capaz de colocar questões de ecologia e sustentatibilidade, num mundo em mutação climática.
Terceiro, talvez pela primeira vez em Portugal, um grupo de cerca de 20 investigadores universitários — que trabalham, sobretudo, na Universidade Nova de Lisboa (Faculdade de Economia e Faculdade de Ciências Sociais e Humanas) e no ICS-Universidade de Lisboa — uniu esforços para escrever uma História de Portugal, bem ancorada noutras ciências sociais — economia, sociologia, ciência política, relações internacionais, etc. Esta abertura da História às ciências sociais, suscitada por quem dirige e coordena os diferentes volumes, inspira-se nos grandes projectos de inovação interdisciplinar que marcaram tanto a História como as outras ciências sociais e políticas ao longo do século XX, sobretudo na Alemanha, em França e nos Estados Unidos. Este mesmo diálogo sustenta sucessivas abordagens, organizadas por temas e problemas, orientadas para a procura de causas e consequências; no fundo, uma perspectiva analítica de fôlego, que se afasta das abordagens descritivas e narrativas em que muitas sínteses históricas derrapam por miopia ou convicção simplista.
Contudo, o diálogo entre a História e as ciências sociais — ao mesmo tempo que revela a presença de um discurso académico, frio e objectivo, em que as análises são correctamente submetidas a construções tipológicas e procuram a demonstração de argumentos — parece anular qualquer tipo de envolvimento dos historiadores com os seus projectos. A crítica é delicada e os melindres são inevitáveis. Entre nós, Rui Ramos é o historiador do período contemporâneo que representa cada vez mais e melhor esse outro lado, constituído por projectos historiográficos comprometidos politicamente e desligados de um diálogo com as ciências sociais (o que não impediu que o seu volume sobre a República, na História de Portugal dita de Mattoso, ofereça estimulantes perspectivas), donde as suas interpretações revisionistas da República e do Estado Novo terem suscitado debate e polémica. Mas não é tanto esse tipo de envolvimento político que está em causa quando se escreve História em contacto com as ciências sociais.
Lucien Febvre, nas suas lições do Collège de France proferidas durante a ocupação nazi, escreveu belas páginas acerca de Michelet, criador da história de França (Michelet, créateur de l’histoire de France — Cours au Collège de France, 1943-1944, Vuibert, 2014). O contexto era de luta. Michelet era mais um pretexto para fazer da História um instrumento de combate relativamente aos usos do passado no presente. Que pelo menos se libertasse a História da nação e da ideia de raça e que não se considerasse passível de justificação pelo passado o nacionalismo equiparado ao racismo. A construção da nação nada tinha que ver com a existência de uma raça pura, de eleitos. Assim argumentava, ou quase vociferava contra os nazis, um dos maiores inventores da historiografia moderna, que dirigiu essa utopia intitulada Encyclopédie Française, provavelmente uma das últimas a procurar sustentar uma ideia francesa de civilização.
Claro que os tempos e o contexto em que se trabalha, hoje, em Portugal são diversos. A História e as outras disciplinas interessadas na compreensão da sociedade foram monopolizadas pelas universidades, que ditam as suas regras de rigor e neutralidade, não sendo possível escapar às rotinas quase burocráticas impostas pelo funcionamento das instituições. Paralelamente, é inegável que Portugal, tal como a Europa, sofre, segundo o historiador Mark Mazower, “de exaustão ideólogica” e que “a política se tenha tornado numa actividade desprovida de qualquer visão”. Por todas as razões aduzidas, fará sentido exigir que uma obra colectiva de História se comprometa num qualquer combate? De facto, talvez não se possa esperar que o mesmo tipo de envolvimento manifestado por Febvre seja, agora, partilhado pelos que dirigem e colaboram nesta História Contemporânea de Portugal.
E, no entanto, quem dirige chega mesmo a declarar que a novidade da orientação, a marca de distinção deste projecto colectivo, estaria na sua orientação ibérica, atlântica e global. Um programa que, depois de anunciado, parece ter sido posto de lado, pois não serviu realmente de guião para a escrita dos cinco volumes. Porventura mais consequente ao longo da obra é a recusa em pensar qualquer tipo de nacionalismo; mas não será que com esta recusa os directores se interditam de analisar um dos objectos sem dúvida mais difíceis mas absolutamente necessários, sobretudo num quadro comparativo dos usos contemporâneos do nacionalismo posterior aos trabalhos de Benedict Anderson, Ernest Gellner e Eric Hobsbawm?
O mesmo se diga da estrutura temática reproduzida geometricamente nos cinco volumes, todos divididos em “chaves do período”, política, “Portugal no mundo”, economia, “população e sociedade”, e “cultura”. Nada a opor a essa tipologia que poderá facilitar comparações de período para período, mas não será que ela supõe uma concepção do tempo a régua e esquadro que deixa escapar a percepção de uma multiplicidade de texturas temporais, em que os ritmos são diferentes segundo os vários sistemas? Ou seja, será que a economia muda ao mesmo ritmo que a política, a sociedade ou a cultura? É que bem pode Álvaro Ferreira da Silva, num dos mais brilhantes capítulos desta colecção sobre a economia, declarar que o “seu” período 1890-1930 não tem unidade, o certo é que foi nele que a sua análise teve de encaixar-se. A bem de quê? Presumo que, no seu caso, a bem de uma periodização espanhola que tem nos anos de 1890 um dos seus marcos. E o resultado é um Portugal à espanhola...
Também passível de discussão crítica é o espaço concedido ao império colonial, que surge apenas sob o tema “Portugal no mundo”, em que inadvertidamente se reproduz uma formulação do Estado Novo que Cavaco Silva recuperou quando primeiro ministro. Umas escassas páginas por volume, que parecem emagrecer à medida que se progride no tempo, são dedicadas ao império. A responsabilidade não poderá ser atribuída aos que abordaram o tema, nos diferentes períodos, tratando o império em função das relações internacionais de Portugal. O problema está numa concepção do Portugal contemporâneo esvaziada de uma das suas dimensões essenciais — o império colonial —, ao lado das persistências de uma sociedade rural e da emigração.
Quarto e último ponto, de natureza editorial, suscitador de uma série de questões: como interpretar o facto de as duas últimas histórias de Portugal lançadas no mercado terem sido promovidas por editoras ou instituições espanholas? Refiro-me à História de Portugal dirigida por Rui Ramos, em co-autoria com Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno G. Monteiro (Esfera dos Livros), e, agora, à História Contemporânea de Portugal. Será esta coincidência a expressão de um genuíno interesse ibérico em conhecer o nosso país? Ou será que se trata da ocupação de um espaço deixado livre depois de uma espécie de saturação do mercado português por parte de editoras e instituições portuguesas?
Em suma, as forças e fraquezas, as dúvidas e perplexidades aqui apontadas não beliscam sequer o carácter rigoroso e a capacidade de dar conta de inúmeros progressos de investigação que esta obra de síntese em si concentra. Mais: pelo seu carácter sistemático e equilibrado, fora dos luxos de campanhas publicitárias de promoção que foram possíveis algumas décadas atrás, a obra constituir-se-á num marco fundamental da historiografia portuguesa e de leitura obrigatória por parte de um público alargado.
António Costa Pinto e Nuno Gonçalo Monteiro (dir.)
António Costa Pinto e Nuno Gonçalo Monteiro (dir.), História Contemporânea de Portugal 1808-2010.
O colapso do império e a revolução liberal (1808-1834).

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