29/10/2014

Liber chronicarum, de 1493, também conhecido como Crónica de Nuremberga ou Crónica do Mundo, de Hartmann Schedel (1440-1514), no Museu Nacional de Arte Antiga

Foi descoberto na biblioteca do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, um valioso incunábulo – uma obra impressa até 1500 –, que estava até agora guardada nos fundos, sem se saber da sua existência. Um dos primeiros livros impressos da história, um dos maiores livros ilustrados da época. Liber chronicarum, de 1493, também conhecido como Crónica de Nuremberga ou Crónica do Mundo, de Hartmann Schedel (1440-1514), é a “nova” peça do museu e está disponível para consulta, mediante autorização. Foi descoberto há cerca de um mês mas só agora a novidade foi anunciada no Facebook do museu, numa publicação que somou mais de uma centena de partilhas. Impresso em Nuremberga em 1493 e com xilogravuras de Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff, Liber chronicarum chegou ao museu através do Legado Barros e Sá, o coleccionador de arte, que deixou ao MNAA em 1981 o seu espólio de mobiliário, ourivesaria, artes decorativas e livros antigos. Foi exactamente no fundo bibliográfico, que está a ser catalogado, que foi descoberto este incunábulo.  “Quando esta colecção aqui entrou, foi feito um pequeno inventário mas agora estamos a introduzir toda essa biblioteca na base de dados. O senhor tem uma colecção de livros antigos espantosa mas não estava à espera de encontrar esta pequena preciosidade”, diz Luís Montalvão, o bibliotecário responsável pela biblioteca do MNAA desde há três anos. “Os incunábulos são obras que vão desde o início da história da impressão até 1500, são os primórdios da impressão”, explica Montalvão, contando que o livro encontrado tem uma “encadernação moderna, feita nos finais do século XIX, início do século XX, e por isso até dava a impressão de que era uma edição fac-similada”. Foi quando começou a analisar a peça que percebeu o que ali estava, até porque, conta o bibliotecário, “o próprio coleccionador tinha alguns documentos sobre o livro, coleccionava com critério, sabia o que estava a comprar”. Desde que em 1981 o acervo de Barros e Sá chegou ao MNAA que várias peças foram integradas na exposição permanente, o estudo biblioteconómico, porém, que permitiria a compreensão integral do valor desta obra, só agora está a acontecer. Antes do incunábulo, já tinha sido descoberto neste arquivo a publicação Theatrum Sabaudae, que integrou recentemente a exposição Os Saboias. Reis e Mecenas (Turim 1730-1750).
Liber chronicarum, escrito em latim, conta a história do mundo em sete capítulos e apresenta mais de 1800 gravuras em madeira, que incluem mapas e panoramas de várias cidades. “Na altura foi um livro muito popular, era muitíssimo ilustrado. É uma espécie de história do mundo à seculo XV, começa com a história sagrada, Adão e Eva, o Dilúvio, etc., e depois tem muitas imagens acerca de várias cidades, personalidades, santos. É um livro lindíssimo”, diz Luís Montalvão, explicando que este é o único incunábulo do MNAA. “Existem manuscritos mais antigos, no Gabinete de Estampas e Desenhos, mas uma obra destas de 1493 não”, continua, explicando que esta obra está catalogada e digitalizado em várias bibliotecas do mundo. Na Universidade do Porto, por exemplo, existe um exemplar destes e em 2010, inclusive, a Christie’s leiloou um outro exemplar que acabou arrematado por 85,3 mil euros, um valor acima dos 44 mil euros estimados pela leiloeira.
Também a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa, que tem uma colecção de incunábulos com 1597 títulos, segundo a informação disponível no seu site, detém nos seus impressos reservados esta obra, que pode ser consultada, sob autorização, à semelhança do que acontece no MNAA. “Um incunábulo é sempre raro e neste caso é surpreendente a qualidade do livro que está num estado impecável, é preciso ver que estas eram obras feitas de uma forma muito artesanal”, diz o bibliotecário, acrescentando existirem "muitas especulações acerca das ligações entre as gravuras de Liber chronicarum e o trabalho posterior do célebre artista alemão Albrecht Dürer (1471-1528)". "Dürer terá trabalhado na oficina de Michael Wolgemut", conta.
Esta obra ficará agora  nos reservados da biblioteca do MNAA. “É um livro que obviamente vai ser usado e poderá até figurar numa das exposições que o museu faça. Está catalogado, identificado e é mais uma peça do nosso património.”
Crónica de Nuremberga
Liber chronicarum - Um incunábulo de 1493, de Hartmann Schedel (1440-1514).

Quatro pinturas sem autor nem data mostram Lisboa antes do terramoto de 1755

Uma pintura do Terreiro do Paço, uma do Rossio, outra do Mosteiro dos Jerónimos e uma quarta do Convento de Mafra. No início do ano, Álvaro Roquette e Pedro Aguiar-Branco, do Antiquário AR-PAB, compraram a um antiquário internacional – preferem não revelar nem o nome nem a nacionalidade – quatro óleos que mostram como eram estes lugares antes do terramoto de 1755. Álvaro Roquette e Pedro Aguiar-Branco não conseguiram descobrir o percurso destas obras – há quanto tempo estão longe de Portugal? São de autoria portuguesa? São perguntas que não conseguiram esclarecer no acto da compra, nem até agora. Além disso as pinturas não estão datadas nem assinadas.
Apesar de mostrarem vistas anteriores ao grande terramoto, podem ter sido pintadas posteriormente com base noutras fontes iconográficas, analisa Miguel Soromenho do Museu Nacional de Arte Antiga. O historiador de arte explica como é possível perceber que as obras têm a mesma autoria: há “afinidades no tratamentos dos céus e na definição da paleta cromática” e “semelhanças na forma de dispor as figuras na composição”. António Miranda, coordenador do Museu da Cidade, conheceu estas obras em Madrid, em Outubro de 2013. Para o responsável do museu lisboeta, as pinturas são importantes “não pela sua qualidade pictórica”, diz, mas como “documento iconográfico dos costumes e da relação das pessoas com a cidade”. Mais que novos pormenores sobre a Lisboa anterior ao terramoto de 1755, as pinturas do Antiquário AR-PAB são exemplo de como se reproduziam as vistas de uma cidade nos séculos XVIII e XIX: muitas vezes a partir de outras obras anteriores a que o artista tinha acesso – o que torna possível que representações da capital antes do sismo tenham sido pintadas quando essa cidade já não existia.
pinturas do Antiquário AR-PAB
Na análise deste óleo, Miguel Soromenho aponta a gravura do Terreiro do Paço atribuída a Zuzarte como uma muito provável fonte iconográfica. Apesar de diferirem no traço, muito mais seguro em Zuzarte, o ponto de vista sobre o Torreão do Palácio da Ribeira é o mesmo, tal como o tratamento de edifícios chave, como a Igreja de S. Francisco, na colina, e o Palácio dos Marqueses de Castelo Rodrigo, à beira-rio atrás do Torreão, ambos representados com pormenor — o que nem sempre acontece na iconografia da cidade. A principal diferença entre as duas obras é o erro de escala: o autor anónimo agiganta estes edifícios, tal como faz com o Torreão, central na pintura.

pinturas do Antiquário AR-PAB
A pintura do Rossio tem também fortes semelhanças com uma outra gravura de Zuzarte: “O ponto de vista é exactamente o mesmo, deslocando a frontaria hospitalar [Hospital de Todos-os-Santos] para a direita do quadro de forma a poder incluir, também, a fachada da 1igreja de São Domingos, um dos mais importantes templos da cidade”, escreve Miguel Soromenho. Mais uma vez as questões de perspectiva: o Convento da Graça está, na pintura, encostado ao Castelo de S. Jorge, que tem o jogo das muralhas errado, diz António Miranda. Também as dimensões do portal manuelino do Hospital de Todos-os-Santos estão alteradas: em comparação com as figuras humanas que passeiam no Rossio, ou mesmo com o Chafariz de Neptuno em primeiro plano, o portal não parece muito grande. No entanto, António Miranda lembra que este exemplar único da arquitectura manuelina era admirado por toda a Europa, não só pelo seu trabalho de escultura, mas pela também pela sua imponência – a que não é feita justiça na pintura.
pinturas do Antiquário AR-PAB
Quanto às outras duas pinturas – Mosteiro dos Jerónimos e Convento de Mafra –, “é plausível admitir que a mesma fonte [Zuzarte] tenha fornecido os exemplos”, avança Miguel Soromenho, embora não nos tenham chegado estas obras. Entre a iconografia antiga dos Jerónimos, há uma gravura anónima, datada do século XVIII, e outra de Piete van Den Berge, da segunda metade do século XVIII. Ambas têm a mesma vista sobre o mosteiro que é, de resto, a mais comum em todas as suas representações. Na pintura do Antiquário AR-PAB, no entanto, o edifício aparece demasiado próximo da margem do rio e a casa de nobres da Quinta da Praia, onde hoje está o Centro Cultural de Belém, aparece demasiado pequena. Alterar a escala dos edifícios era “uma técnica frequente quando se queria acentuar a monumentalidade de um edifício”, diz António Miranda, o que pode explicar este erro de perspectiva. O edifício do mosteiro é também, nesta representação, mais alto e tem, se comparado com a restante iconografia, mais vãos.
pinturas do Antiquário AR-PAB
A mesma perspectiva oblíqua usada para a representação do Mosteiro dos Jerónimos é usada na pintura do Convento de Mafra. O domínio desta técnica é “inábil”, escreve Miguel Soromenho, –  os vãos aparecem mais estreitos e as torres desproporcionais. É uma tentativa de dar leveza a um edifício visualmente pesado, diz Miguel Soromenho, e evita a perspectiva ortogonal da fachada, mais usada no desenho técnico, como o de Michael le Bouteaux, de 1792. O ponto de vista oblíquo idêntico ao do óleo é usado numa litografia de 1853, atribuída a J. Macphail, e que apresenta uma imagem mais realista: por exemplo, o torreão em primeiro plano esconde parte da fachada, o que por causa do mau uso da perspectiva não acontece na pintura.

22/10/2014

Os campos nazis: nunca vimos nada assim

Nunca os meus olhos viram nada assim. E já estive em muitos campos de concentração pela Europa fora; vi demasiados filmes sobre as atrocidades nazis, tantos milhares de fotografias. Nada se compara a este filme.
German Concentrations Camps Factual Survey é um documentário feito a partir do material filmado pelos exércitos britânicos, americanos e soviéticos quando libertavam os campos de extermínio. Resultando de uma encomenda feita em Abril de 1945 pelo Comando Supremo das Forças Aliadas, foi concebido primordialmente como uma vindicta pedagógica. No âmbito de um vasto programa de desnazificação da Alemanha, este seria o "filme oficial" que os vencedores iriam mostrar aos que haviam apoiado Hitler. Os seus primeiros minutos, aliás, assemelham-se a uma obra de propaganda feita por Leni Riefenstahl, exibindo a águia esmagadora e multidões na aclamação do seu Führer. German Concentrations Camps é um exercício de represália ou castigo e, sobretudo, um libelo acusatório – não por acaso, as imagens que contém seriam usadas como meio de prova em alguns julgamentos do pós-guerra. A acusação, no entanto, dirige-se não apenas à elite do III Reich mas a um povo inteiro e até, num certo sentido, à Weltanschauung (visão do mundo) germânica. É sintomático que, antes de se revelar o horror dos campos de extermínio, se mostrem paisagens idílicas dos lugares situados nas suas imediações. Montanhas, castelos e lagos, trajes campestres tradicionais. Depois, surge o cheiro. Era impossível, diz-se, que aquelas raparigas louras, que em Bergen-Belsen brincavam em prados verdejantes, ou que aqueles casais que namoriscavam nas margens de Ebensee não sentissem o odor que vinha das chaminés dos fornos crematórios. Não se pode abdicar do olfacto. Mesmo os que não quisessem ou não pudessem ver o sofrimento próximo seriam incapazes de evitar a presença do cheiro emanado a poucos quilómetros dali. No filme, procura-se ajustar contas com uma nação derrotada e o seu povo, opção compreensível atendendo ao contexto em que a obra foi realizada. Em poucos meses, porém, o cenário mudaria, entendendo-se agora que a culpabilização de todos os alemães não seria a forma mais adequada de reconstruir o país num quadro geopolítico que entretanto também se alterara, com a Guerra Fria no horizonte e a Realpolitik a impor a reabilitação silenciosa de altos funcionários do regime nazi. A par disso, e como sublinha Night Will Fall, um documentário de André Singer que acompanha de perto a feitura deste filme, o facto de milhares de refugiados não quererem sair dos campos de morte para a Alemanha, preferindo o êxodo para a Palestina, colocava sérias dificuldades às autoridades britânicas, que deixaram de ter interesse em exibir uma obra que retrava, com inultrapassável dramatismo, os tormentos por que passaram os sobreviventes. Impacientes com os atrasos dos ingleses, os americanos decidiram produzir em 1945 o seu próprio documentário com base em parte do material filmado: Death Mills, de Billy Wilder. Ao mesmo tempo, uma nota do Foreign Office informaria o produtor, Sidney Bernstein, que nos altos círculos militares não se via com bons olhos o aparecimento de um atrocity film. O projecto não foi concluído. As bobinas acabariam por ser arquivadas em 1952 nas prateleiras do Imperial War Museum, em Londres, onde estiveram esquecidas durante longos anos.
Na preparação do filme German Concentrations Camps, a pedido de Sidney Bernstein, que produzia o filme para o Ministério da Informação britânico, Alfred Hitchcock tinha-se deslocado à América para supervisionar a montagem ou, nas palavras de Bernstein, ditas anos depois, para "juntar todas as peças". Os militares que filmaram a libertação de Bergen-Belsen diziam que Hitchcock ficara tão impressionado com as primeiras imagens que lhe mostraram que esteve uma semana sem aparecer nos estúdios de Pinewood. Sendo ou não verdadeira esta história, o papel de Hitchcock situa-se a meio caminho entre o de um realizador clássico (na verdade, não dirigiu a tomada das imagens nem sequer esteve nos campos) e o de responsável pela montagem. Terá sido, como refere a ficha técnica do filme, um "treatment adviser". Em todo o caso, há o inegável risco de, a partir de agora, esta obra passar a ser conhecida como "o documentário de Hitchcock sobre o Holocausto" e, pior ainda, em pretender ver na sua filmografia subsequente vestígios desta experiência, que decerto terá sido marcante, talvez traumática, mas ainda assim episódica e efémera. Num depoimento de 1962, Hitchcock qualificou o papel que teve como o seu "esforço de guerra", dado que a sua idade e o seu peso jamais lhe permitiriam entrar em combate. Sendo impossível determinar a dimensão do contributo de Hitchcock – em comparação, por exemplo, com o do editor Stewart McAllister ou de Richard Crossman, o autor do script –, reconhece-se que a ele se devem muitos dos elementos que conferem a esta obra uma subtileza e uma densidade que o filme de Billy Wilder não possui. A ele pertence uma das ideias centrais deste filme, segundo a qual a generalidade dos alemães sabia o que se passava nos campos. Daí a apresentação, numa linguagem visual extremamente simples, de mapas que assinalavam a localização geográfica dos campos, na vizinhança de cidades como Munique ou Weimar. Se todo o filme está construído de uma forma "manipulatória", algumas passagens evidenciam mais flagrantemente os traços de uma intervenção que visava obter o máximo efeito junto do auditório. Por exemplo, quando o folhear de um álbum de fotografias familiares é entrecortado por grandes planos de cadáveres horrivelmente esfacelados; ou quando à apresentação de corpos subnutridos se sucedem imagens de mulheres nuas que tomavam o seu primeiro duche quente em muitos meses ou anos. Uma "orgia de limpeza" diz-nos o narrador, Richard Crossman, propagandista antinazi e futuro político trabalhista. Neste passo, há alguma voluptuosidade na exposição demorada dos corpos femininos inteiramente despidos, o que para os padrões morais da época seria impensável noutros contextos ou lugares. Os campos eram, até no registo da sua memória, um território de excepção, ponto salientado por um dos operadores de câmara: "jamais poderíamos associar aquilo que víamos às nossas próprias vidas (…). Era outro mundo. Se nos envolvêssemos naquilo, teríamos enlouquecido". Todas as oportunidades são aproveitadas para menosprezar o inimigo derrotado, geralmente com uma ironia onde é impossível não adivinhar a influência de Hitchcock. Quando se mostra detidamente o banho das mulheres, diz-se que aqueles eram os seres humanos que, segundo os nazis, tinham poucos ou nenhuns hábitos de higiene. Ao apresentar-se os guardas das SS a proceder à tarefa horrível de inumar os corpos, afirma-se que, se aquele era o escol de uma "raça superior", se tinham sido treinados para matar a sangue-frio, certamente não lhes seria difícil realizar o trabalho de enterrar os mortos. Esse sarcasmo, porventura fruto de uma incontida raiva mais do que do propósito de fazer humor, leva o narrador a dizer, perante as imagens de dezenas de idosas acamadas, que aquelas senhoras "eram consideradas uma ameaça para o Estado". Mostram-se ossadas humanas, dizendo-se que eram usadas como fertilizantes; logo de seguida, o plano de um campo de couves, acrescentando-se que provavelmente muitos alemães se alimentavam com legumes que cresciam graças aos restos mortais das suas vítimas. Não há qualquer momento de complacência nem espaço para tolerâncias.
Dentro da mesma lógica que os levara a produzir este filme, os Aliados traziam aos campos as autoridades locais mas também os cidadãos vulgares, que contemplam o cenário macabro com os olhos postos no chão; diz-se a dada altura que, numa medida ou noutra, todos eles eram culpados pela tragédia. A caminho de Buchenwald, muitos habitantes de Weimar iam felizes, sorrindo para a câmara. Até ao momento em que lhes é mostrada uma mesa onde se apresentavam pedaços de pele tatuada que os nazis retiravam às vítimas e as cabeças reduzidas de dois polacos capturados quando tentavam fugir. O filme percorre diversos campos, obedecendo a uma estrutura narrativa que, também do ponto de vista da impressão causada no espectador, se afigura extremamente eficaz e dilacerante. A sequência é dada pela sucessão dos vários campos de morte, cada qual funcionando como capítulo ou separador do relato. Após a indicação do nome do campo, assinala-se num mapa o local. As primeiras imagens mostram os mais saudáveis, que acorriam em festa à chegada das tropas. Em Dachau, a câmara acompanha o avanço dos jipes entre os sobreviventes que se afastam para abrir caminho aos seus salvadores. Só depois aparecem os corpos. Espalhados pelo chão ao acaso, tantos e tão desfigurados que a sua presença já nem impressiona os que ali se encontravam. Ou empilhados ao acaso, num aglomerado disforme. Surpreendem pela sua extrema alvura, que contrasta com as tonalidades escuras do meio envolvente, dos uniformes dos soldados e, sobretudo, dos sobreviventes. Nas valas, de uma extensão imensa, os corpos tombam sobre terra deslizante, enquanto no fundo alguém os vai arrumando, para facilitar a chegada de mais e mais cadáveres. Aos milhares. Noutro campo, corpos carbonizados, deitados no chão. Alguns têm as cabeças levantadas, como se aguardassem algo enquanto rastejavam queimados, nos derradeiros instantes. No filme, o sangue esvaiu-se, não se vê. O narrador fala de mulheres que parecem "estátuas de mármore". Em alguns locais, os corpos empilhados encontram-se hirtos, denotando uma total rigidez, como se fossem manequins; noutras paragens, são transportados e atirados às valas como bonecos desarticulados. Não há uma exploração do horrível pela simples razão de que seria desnecessária. Mas existe um propósito claro de evitar eufemismos ou elipses e, pelo contrário, de expor o mal na sua radical crueza. Nenhum detalhe é poupado. Vezes sem conta, a câmara perscruta o interior dos fornos crematórios, buscando restos mortais, ossos fumegantes que as chamas não devoraram. O objectivo, insiste-se, não é voyeurista ou sequer propagandístico; tratava-se, acima de tudo, de recolher provas – e essa demanda exigia um levantamento completo, mas especialmente focado naquilo que mais se prestava a ser posto em dúvida: sacos com cabelos, ossadas em crematórios, experiências com gémeos. Na montagem do filme, Hitchcock aconselhou a equipa a escolher planos-sequência, sem cortes, para que dessa forma a apresentação das cenas ganhasse mais credibilidade. Com efeito, a alternância rápida de vários planos induziria a desconfiança do auditório e levá-lo-ia a pensar que tudo o que via não passava de um artifício encenado: fragmentos de pele humana, cabeças trepanadas de olhar vazio, seres que vagueavam amparados pelos seus semelhantes.
À distância de tantas décadas, o filme é ainda tão impressionante que nos impede de sobre ele formularmos qualquer juízo. Dificilmente alguém ousará dizer se é "bom" ou "mau". Temos também consciência de que German Concentrations Camps procurava algo mais do que servir a culpabilização colectiva dos alemães, objectivo demasiado patente no filme de Billy Wilder. Além do projecto de tradução em várias línguas e de exibição em diversos pontos do mundo, é a esta luz que se compreende que, a dado passo, a voz de Crossman enumere sincopadamente todos os povos vitimados pelo nazismo. Num depoimento de 1984, Bernstein afirmou que, entre o mais, o filme visava ser "uma lição para a Humanidade". De facto, por muito perturbadoras que sejam as imagens dos cadáveres, o filme é também um testemunho da reconstrução e, sobretudo, da recuperação dos sobreviventes, com as mulheres a tomarem banho e a escolherem vestidos, os doentes de tifo a serem tratados, uma criança a ingerir a sopa de uma enorme tijela, serenamente e até à última gota, sem sofreguidão alguma. Reagimos às imagens com dispositivos defensivos, procurando refúgio em explicações do conteúdo ou enquadramentos contextuais. Fixamo-nos no objecto fílmico, contamos a história da sua redescoberta e outros pormenores acessórios para evitarmos o confronto com o objecto filmado, com a realidade que nos é trazida pela visão de um crânio aberto, de onde escorre uma massa encefálica que outrora alojou pensamentos e emoções. Apercebemo-nos de que o filme não atribui lugar central aos judeus. Estes são tratados como vítimas, a par de católicos e protestantes, num registo "ecuménico" que por certo desagradará aos que, nos meios judaicos, defendem a absoluta singularidade do Holocausto. Esta omissão de uma referência mais explícita aos judeus poderá dever-se, novamente, ao contexto em que o filme foi produzido. Todas as análises deste género, porém, recuam perante as imagens dos cadáveres e dos sobreviventes. Procurar analisar o filme e discorrer sobre o seu "contexto" são exercícios de autodefesa, formas elusivas de lidar com uma realidade que é insusceptível de ser representada. Ou, talvez, que se afigura como absolutamente representativa, no sentido em que convoca e torna presente o ausente, aquele que se ausentou por ter sido morto numa acção de assassínio em massa. Se os que presenciaram e registaram os acontecimentos ficcionavam que estavam num universo paralelo e num mundo-outro, nos nossos dias somos obrigados a ver este filme remetendo os seus protagonistas para esse lugar de ausência, onde nos surgem não já como pessoas mas como imagens, fantasmagorias. Terríveis imagens, sem dúvida, mas, parafraseando o ensaísta Didi-Hüberman, imagens apesar de tudo. Imagens apesar do tempo e do propósito com que foram feitas, imagens apesar de sermos incapazes de saber como olhar para elas hoje. Só dessa forma, como imagens apesar de tudo, seremos capazes de as encarar sem mergulharmos na vertigem da loucura.
Uma versão parcial deste filme já era conhecida em 1984, numa montagem com o título Memory of the Camps. Mas só agora, com a descoberta da "sexta bobina" e o seu tratamento digital, German Concentrations Camps Factual Survey alcançará o estatuto que merece. Poder-se-ia dizer que, volvidas tantas décadas, o filme acusa as marcas do tempo e a erosão dos excessos da "indústria do Holocausto". Puro engano. A força expressiva de German Concentration Camps Factual Survey permanece intocada, mesmo que já tenhamos estado em campos de concentração ou visto milhares de imagens dos crimes do nazismo. Comparadas com estas imagens – imagens apesar de tudo – muitos dos filmes sobre a Solução Final tornam-se grotescos, quase caricatos.
Nunca os nossos olhos viram nada assim.
Mike Lewis
O cameraman sargento Mike Lewis, da Unidade de Cinema e Fotografia do Exército Britânico, filmando em Bergen-Belsen

17/10/2014

Museu de Imagens na Imprensa do Romantismo.

As ilustrações e os textos relativos ao património arquitectónico e artístico difundidos na imprensa oitocentista permitiram a revelação dos objectos de arte a um número alargado de pessoas. O museu de imagens, que estava confinado aos gabinetes dos antiquários e intelectuais, ganha vida nas páginas dos jornais e, gradualmente, transforma-se num fenómeno de massas, sustentado por uma evolução técnica da indústria tipográfica que aumenta as tiragens e melhora a sua qualidade gráfica.
Concentrámos a nossa pesquisa no Archivo Pittoresco (1857–1868), um dos periódicos ilustrados de cariz científico, literário e artístico mais característico do Romantismo em Portugal. Este trabalho permitiu uma interpenetração de domínios de pesquisa, que interagem entre si, tendo como ponto de união a cultura portuguesa oitocentista: a história da imprensa ilustrada, a história da gravura em madeira e dos seus autores, a definição coeva do conceito de património e a análise dos primórdios da historiografia da arte.
António Manuel Ribeiro
Autor: António Manuel Ribeiro
ISBN: 978-989-26-0730-6
Língua: Portuguesa
Editora: Imprensa da Universidade de Coimbra
Edição: 1.ª
Data: Setembro 2014
Preço: 18,76 euros
Dimensões: 230 mm x 160 mm
N.º Páginas: 258

08/10/2014

Ossadas de militares envolvidos na 3.ª invasão francesa encontradas no antigo mercado do peixe em Torres Novas

As obras de reconversão da praça do peixe, em Torres Novas, estão temporariamente interrompidas devido a descobertas arqueológicas detectadas no decurso das primeiras escavações. Estas escavações destaparam ossadas que se julga pertencerem a militares portugueses do século XIX, do regimento 19, que estariam ao serviço da Artilharia n.º 2 pertencente às tropas gaulesas durante as terceiras invasões francesas, que decorreram entre 1810 e 1811. Estas suposições foram construídas com base nalgum espólio encontrado e que está associado a cada indivíduo, ”parecendo também haver alguma hierarquia a nível militar, devido ao tipo de botões”. Uns são metálicos e outros em osso. Aparentemente, as ossadas não revelaram a existência de ”marcas ou ferimentos”, por exemplo de balas ou cortes com espadas ou outros objectos, o que não quer dizer que em laboratório isso não seja identificável. Pode, nestes casos, tratar-se de soldados que tenham morrido devido a doença. O que tem estado a ser feito é o levantamento minucioso de cada indivíduo e, com recurso a uma antropóloga, tem sido efectuado um estudo dos indivíduos através da sua caracterização a nível da idade e de patologias físicas que os ossos apresentam. Muitas das suposições serão objecto de confirmação em laboratório mas, à partida, tudo indica tratar-se de indivíduos muito novos, com idades entre 16 e 23 anos. ”Os corpos dos militares parecem ter sido enterrados com algum cuidado numa vala comum alegadamente por não serem católicos. Se fossem, teriam sido enterrados num espaço religioso”, como se supõe existirem debaixo da igreja de Santiago e do edifício do Paço, que foi o solar dos Duques de Aveiro e, anteriormente, capela de Nossa Senhora da Nazaré. As pás das retroescavadoras colocaram a descoberto entre nove a dez indivíduos, julgando-se haver mais ainda enterrados no solo, mas a intervenção dos arqueólogos passa por identificar e preservar apenas as ossadas e outros objectos e instrumentos de interesse histórico que surjam no decurso da obra. Ana Rita, a coordenadora dos trabalhos arqueológicos levados a cabo pela empresa Crivarque, afirma que o trabalho dos arqueólogos não irá incidir sobre outras ossadas que possam estar a maior profundidade, ”a não ser que seja muito perceptível” a descoberta de vestígios que possam surgir debaixo dos que estão a descoberto. ”O nosso intuito não é escavar”, assegura Ana Rita, que lembra que a equipa de arqueólogos foi ainda responsável pelo acompanhamento dos trabalhos de picagem das paredes (já efectuado). Na verdade, a componente de escavações da obra ainda não está feita na totalidade, podendo por isso aparecer mais ossadas ou outros elementos de interesse histórico. ”Só actuamos no que é colocado a descoberto, não vamos nós abrir, a não que seja muito evidente e aí actuamos previamente”, reforça. A responsável diz-se surpresa pelas descobertas verificadas. ”Ninguém diria que existiriam neste edifício quaisquer estruturas de interesse histórico quanto mais enterramentos”.
Mercado do peixe Torres Novas
Escavações no antigo mercado do peixe em Torres Novas. As ossadas descobertas podem pertencer  a soldados envolvidos na 3.ª invasão francesa (1810-1811)

Museu Nacional Machado de Castro - Coleção de escultura séculos XVII e XVIII

A proposta da madeira toma novamente forma no séc. XVII, tornando-se este material o suporte quase exclusivo quer das esculturas, que se enriquecem de decorações a ouro, surgidas por via flamenga, e que agora se generalizam, quer dos retábulos e revestimentos de talha em que elas se integram com frequência.
Progressivamente, assiste-se ao abandono da pintura nos retábulos, passando os nichos a albergar composições escultóricas. A produção seiscentista fundamenta-se em pressupostos de natureza religiosa e não estética, procurando exprimir os sentimentos extremos da alma: a visão e o êxtase, o martírio e as angústias da morte. Em oposição ao milagre da Idade Média, que relacionava o santo com o homem, na arte da Contra-Reforma é a visão que o liga a Deus, e o êxtase a marca da sua santidade.
Orientadas para a decoração de igrejas e conventos, as imagens são quase todas esculpidas em madeira policromada e dourada, integrando-se frequentemente em retábulos de talha dourada. Bom exemplo dessa tendência é o Retábulo de Nossa Senhora da Conceição, obra do escultor portuense Manuel da Rocha. Este escultor veio para Coimbra, já artista formado, procurar trabalho nas obras dos colégios universitários. Aqui exerceu a sua atividade no segundo e terceiro quartel do séc. XVII. Formado possivelmente em Valladolid, como denuncia a iconografia e a tipologia da sua obra, apresenta um estilo solidário com a tradição portuguesa , menos dramatizante do que a espanhola.
Este núcleo, exclusivamente nacional, vinca a componente religiosa e até conventual da escultura produzida na época, assistindo-se ao desenvolvimento de oficinas no interior dos conventos, e à rivalidade entre beneditinos e cistercienses.
O mais ilustre dos monges escultores é o beneditino Frei Cipriano da Cruz.Conhecido como escultor de Tibães, o seu percurso sinaliza um período em Coimbra (1685 – 1690) durante o qual se dedica à decoração do colégio da sua Ordem. Está representado no Museu por algumas das suas maiores realizações artísticas, provenientes da igreja do referido colégio, destruída em 1932.
Na escultura do séc. XVIII continua a dominar a madeira, salvo para a escultura de mestres estrangeiros. Exemplo é o francês Claude Laprade que realizou para a Universidade, além de outras obras de vulto, as figuras alegóricas das salas dos Gerais e dos Capelos, hoje no Museu. Considerado o mais notável escultor estrangeiro que trabalhou em Coimbra, após a Renascença, realizou diversas obras para a Universidade, colaborando na reforma empreendida pelo reitor Nuno da Silva Teles. Erradamente considerado italiano, compreende-se no entanto o caráter italianizante da obra de C. Laprade, pela sua origem – Avinhão – cidade trespassada de italianismo por força da própria origem e formação da maioria dos Papas, local onde o escultor desabrochou para a arte.
Resultado das grandes riquezas económicas geradas pela descoberta de minas de ouro e diamantes do Brasil, e graças ao gosto de D. João V pelas artes, esta centúria é conhecida como o século das importações e das influências estrangeiras. A escultura caracteriza-se sobretudo pela influência de modelos italianos, através de importações diretas de Itália ou de artistas procedentes desse país, acolhidos em Mafra. O sentido decorativo das obras aumenta, assistindo-se à união da religião com a estética – contemplação não só do Bem, mas também do Belo – visando uma certa teatralidade afetiva e emocional. A iconografia da Virgem é bastante numerosa neste período, popularizando-se entre outras as Virgens com ou sem o Menino, a Senhora do Rosário e a Senhora da Conceição, adotando elementos profanos, como é o caso dos tecidos, resultantes em parte das experiências desenvolvidas pelos barristas.
O amor ao Menino foi uma das tradições da ordem franciscana cuja difusão se deve a uma nova iconografia, surgida no âmbito da Contra-Reforma. A partir de 1600, tornam-se numerosas as representações da infância de Jesus – Menino Jesus Salvador do Mundo, Sagrada Família, Fuga para o Egito, Adoração dos Magos, Natividade – temática por vezes antiga, mas revestida de novas formas.
Como figura dominante da estatuária setecentista, destaca-se J. Machado de Castro, cuja obra, sintetiza a situação escultórica portuguesa da época. Santeiro por tradição familiar, numa época em que a produção de imagens se rege por pressupostos religiosos, é abalado pelas coordenadas estéticas que recebe de Itália, nomeadamente de Alessandro Giusti. Escultor régio a partir de 1782 assume papel fundamental na evolução da escultura, a formar discípulos e instituir uma teoria escultórica, lutando pela dignificação das artes e dos artistas em Portugal. Da sua vasta produção destacam-se diversos estudos, desenhos e modelos preparatórios, e ainda alguns escritos e teorizações sobre escultura. Numa segunda fase, recetivo à gramática rococó, abre caminho para o neoclássico oitocentista, afastando-se da grandiosidade de obras de grande porte em pedra, e executando figuras de menores dimensões, que se destacam pela riqueza da policromia e dos trajes. São, sobretudo, figuras para os presépios, inicialmente destinados à família real, a casas religiosas de prestígio, membros da corte e nobres. O seu culto e consequente popularização, conduzem ao aumento da produção e ao aparecimento de oficinas secundárias que copiam e reproduzem os modelos dos escultores. Conhecido como escultor de Lisboa, Machado de Castro é todavia natural de Coimbra, à qual deveu, além do berço, a formação humanista que recebeu dos Jesuítas.
Escultura barroca
S. Francisco
Testemunho de um período áureo da escultura nacional, a imagem de S. Francisco, cujo autor se desconhece, de grande qualidade escultórica evidencia encomenda a uma oficina afamada – possivelmente de Lisboa. Esta imagem integra-se nas experiências de fervor religioso, decorrentes da contrarreforma e características da iconografia devocional barroca.
Museu Nacional Machado de Castro
Senhora da Apresentação, século XVII
Contrastando com a imagem de Nossa Senhora da Conceição, muito próxima da arte flamenga, esta escultura de Nossa Senhora com o Menino, devida a Manuel da Rocha, apresenta um tratamento formal marcadamente mais natural. A religiosidade que emana de ambas, a sobriedade, a doçura e serenidade conducentes à devoção, são características comuns nas figuras femininas deste escultor e espelham a arte nacional deste período. Comum é ainda a presença de meninos acompanhando a Virgem, aqui apresentado nu e em posição frontal e vertical, cuja delicadeza de rosto reforça aquele sentimento. 
Museu Nacional Machado de Castro
Nossa Senhora do Rosário, século XVIII
A iconografia da Virgem é bastante numerosa neste período, popularizando-se as Virgens com ou sem o Menino, a Senhora do Rosário entre outras, adotando elementos profanos, como é o caso dos tecidos, resultantes em parte das experiências que os barristas iam desenvolvendo. Esta imagem devocional está atribuída à oficina de Machado de Castro, e aproxima-se, pela riqueza de policromia e de trajes que apresenta, do grande tema da segunda metade do século – o presépio.

03/10/2014

Museu Nacional Machado de Castro - Coleção de escultura século XVI

Por influência norte-europeia, a madeira assume um papel relevante na produção escultórica, destacando-se Coimbra novamente na difusão de uma nova estética, que abarcaria todo o país. Aqui trabalham alguns dos maiores escultores flamengos destacando-se a presença do escultor e entalhador Olivier de Gand que, ao serviço do Bispo-Conde D. Jorge de Almeida, executa a maioria das peças que o Museu possui, realizadas para a Sé, o Paço Episcopal e conventos da cidade e região.
O séc. XVI em Portugal é uma época complexa, de abertura e conservadorismo, de inovação e tradição. Por um lado, o Gótico tradicional das oficinas da região de Coimbra, por outro a arte flamenga veiculada por artistas vindos do norte da Europa e, por outro lado ainda, o aparecimento das novas formas e fórmulas da Renascença. Assim, a escultura manuelina pode caracterizar-se formalmente como sendo de transição entre o Gótico final e a Renascença.
Coimbra continua na primeira linha, no que respeita ao número de obras executadas, mas surge agora com outra dinâmica e influências, graças à presença de artistas espanhóis, franceses, flamengos e alemães na cidade. Aliás, nesta época é elevado o número de estrangeiros a trabalhar em Portugal.
Marcando a escultura do início deste século, destaca-se Diogo Pires-o-Moço com um conjunto de obras em que perdura o gosto tardo-gótico. Trata-se de um artista local, que se constitui como elo de ligação entre a tradição gótica em fase de renovação e a linguagem renascentista, revelando uma influência profunda dos imaginários flamengos, tão ao gosto dos comitentes portugueses.
Embora a influência norte-europeia se revele em algumas das obras talhadas em pedra, a corrente que vinga é todavia a dos franceses que, na primeira metade de Quinhentos se vêm estabelecer em Coimbra – Nicolau Chanterenne, João de Ruão e Hodart os quais têm, em comum, a formação em centros onde as expressões artísticas do Renascimento italiano são conhecidas.
O Museu possui um vasto número de obras deste período, que testemunham uma característica bem evidente – a alteração das dimensões e dos volumes. São grandes retábulos e altares, povoados por diversas cenas em relevo e imagens de vulto perfeito, a eles dimensionadas, em que a temática religiosa é quase exclusiva, com destaque para os temas ligados Virgem e a Cristo, em especial ao ciclo natalício.
O primeiro francês a fixar-se em Coimbra, e o mais ligado à nova estética renascentista é Nicolau Chanterenne. Escultor preferido pela corte e pela nobreza culta da época granjeia grande reputação com as estátuas jacentes por ele realizadas para os túmulos reais do Mosteiro de Santa Cruz. Desconhecendo-se o nome do(s) artista (s) a quem se deve a realização desses túmulos, persiste alguma confusão entre a obra de Chanterenne e a do hipotético “Mestre dos Túmulos Reais”.
A atividade de J. de Ruão decorre, em Coimbra, durante cerca de 50 anos. Dotado de uma notável capacidade de adaptação ao meio, é o mais sensível à cultura portuguesa. Pela sua oficina passam várias gerações de escultores e decoradores que vêm a estabelecer-se por todo o país.Na sua obra-prima – a Capela do Sacramento na Sé Velha – ou na Capela do Tesoureiro, hoje integrada no Museu, Ruão deixa bem patente a sua dupla qualidade de escultor e arquiteto. Os seus enquadramentos arquitetónicos, sobriamente ornamentados, estão presentes nas grandes obras da coleção do museu – retábulos, painéis relevados, conjuntos escultóricos. Figuras serenas e majestosas, de brandos movimentos, arredadas de qualquer exteriorização de sentimentos, coexistem na sua obra, ao lado de personagens dramáticas, cheias de força interior e movimento, apresentando por vezes ligeiras deformações anatómicas intencionais, para impressionar. As primeiras correspondem à natureza do artista; as segundas surgem por influência de Chanterenne e mesmo de Hodart.
Hodart é um artista isolado, de caráter agitado, revelando uma forte personalidade patente na sua obra. Considerado quase um génio, não é de estranhar que tenha antecipado em décadas o surto barroco em Portugal. É essencialmente um escultor barrista, cuja obra mais notável é hoje pertença deste Museu. Trata-se da Última Ceia executada em tamanho natural, para o Refeitório do Mosteiro de Santa Cruz.
Museu Nacional Machado de Castro
Anjo Heráldico
O Mosteiro de Santa Cruz representa, na época manuelina, um dos lugares míticos e sagrados da nacionalidade. Foi então protagonista de profunda remodelação, patrocinada diretamente pelo Rei, tendo sido a fachada coroada por dois grandes anjos heráldicos tutelares do monarca e do reino, simbolizados respetivamente pela esfera armilar e pelo seu escudo. Muito frequentes nas obras de Diogo Pires-o-Moço, especialmente sustentando brasões de armas, estes anjos mostram grande elevação e serenidade. O gosto pelo pitoresco, pelos pormenores, como o arranjo dos cabelos e o diadema que os cinge, o anelado, o firmal e os sebastos das vestes, são bem característicos deste artista.
Museu Nacional Machado de Castro
Virgem da Anunciação
Imagem ímpar no panorama da escultura renascentista, representa a Virgem anunciada, ajoelhada sobre uma almofada, num genuflexório, em consonância com o modelo de representação comum no séc. XVI – a Virgem, surpresa, soergue o olhar e eleva a mão ao coração. De certo modo, esta peça, atribuída ao Mestre dos Túmulos Reais, constitui um enigma, objeto de estudos e teses, relativamente à sua iconografia e à identificação do artista que a produziu. Há autores que consideram que a peça faria conjunto com um anjo anunciador, entretanto desaparecido. Outros entendem que essa figura complementar não era necessária, pois está representada no medalhão do genuflexório.
Museu Nacional Machado de Castro
Santa Inês
Santa Inês, trajada à época, com tratamento individualizado do rosto, dir-se-ia o retrato de uma jovem das famílias burguesas da cidade, grupo social que formava parte da clientela de João de Ruão. Respeitando os cânones iconográficos de Santa Inês de Roma, esta peça constitui uma das mais belas obras deste escultor, com características que a ligam às grandes obras dos imaginários florentinos do séc. XV.
Museu Nacional Machado de Castro
A Última Ceia (1530-1534)
Este conjunto escultórico representa a Última Ceia, uma das mais impressionantes obras de escultura do renascimento europeu, devidas ao génio de Filipe Hodart. Modeladas em barro cozido, as figuras de Cristo e os seus Apóstolos, que constituem este conjunto, usam traje à época, possuindo elementos comuns que contrastam com uma forte individualização de cada uma das personagens. Hodart retratou figuras populares, identificadas na época com personagens conhecidas no quotidiano do Mosteiro de Sta Cruz, para o qual a obra foi executada. Eram mendigos ou trabalhadores das obras que aí decorriam. As figuras estão dotadas de um realismo e uma violência de expressões surpreendentes: barbas encrespadas, boca entreaberta, dentes à mostra, troncos delgados, pés grandes e um pouco desproporcionados, roupagens agitadas, com um sopro de paixão e dramatismo. Todo o conjunto explode de vivacidade, revelando uma das personalidades mais impetuosas do renascimento português. As figuras apresentam-se sentadas, quase completas, embora mutiladas, apresentando algumas delas só já o tronco e a cabeça ou mesmo só a cabeça. A originalidade e a importância do conjunto residem particularmente no tratamento formal concedido às figuras, um trabalho claramente precoce no tempo, uma vez que anuncia elementos maneiristas e participa de alguns princípios do Barroco, nomeadamente em relação à expressividade e dinamismo que apresentam.

Museu Nacional Machado de Castro - Coleção de escultura séculos XIV-XV

Distinguem-se em Coimbra dois períodos: o da maturidade da primeira escultura gótica de raiz nacional, dominada pelos capitéis historiados de Celas e o do resto do século, marcado pela chegada de um escultor aragonês, Mestre Pero, autor do túmulo da Rainha Santa.
A presença entre nós de mestres estrangeiros – reis, prelados e nobres chamaram os melhores artistas do seu tempo, para a realização de esculturas tumulares – atesta as influências que a arte nacional sofreu. O hieratismo inicial, presente nos túmulos deste século, rapidamente evolui, dando início a um novo ciclo na escultura gótica coimbrã, principalmente caracterizado por outra forma de arte – a imaginária.
A escultura devocional da Idade Média portuguesa atingiu o seu apogeu no séc. XIV. Percorrendo uma via naturalista o Gótico libertou as figuras das linhas geometrizantes, alterou gestos e atitudes, humanizou-as. Esta nova conceção generaliza-se e provoca uma intensa produção de imagens de diferentes invocações. A par do culto de Cristo e da Virgem, também alguns santos são alvo do fervor popular, em particular o dos Santos Apóstolos, amplamente representados neste período.
Apesar das mudanças de gosto ou mesmo das imposições da Igreja, o conjunto de escultura de vulto produzida em pedra, que chegou até nós, testemunha uma atividade artística considerável tanto do ponto de vista da quantidade como da qualidade plástica.
São no entanto, a grande maioria, obras anónimas, produzidas em oficina onde, além do mestre, trabalhavam oficiais e aprendizes. O artista melhor identificado é Mestre Pero, que trouxe à arte um avanço notável, tornando as imagens de vulto mais esguias e movimentadas, libertas dos esquemas estáticos que permaneciam na escultura gótica e ainda lhes conferiam um aspeto arcaizante.
A produção deste período concentra-se em imagens de altar e arcas tumulares, sem ousar grandes dimensões e, menos ainda, a conceção de figuras em grupo. Contudo, considera-se que ela corresponde ao auge da escultura medieval portuguesa, devido à sua riqueza iconográfica e ao apuramento estético.
À escultura em madeira devem-se, a par do calcário, algumas realizações notáveis, especialmente Cristos crucificados. Um dos exemplos mais impressionantes é aquele que, por tradição ficou conhecido pelo nome de Cristo Negro. A partir do final do séc. XIII, o corpo de Cristo deixara de cair direito e hirto ao longo do madeiro, para descrever uma curva sinuosa. O alongamento e a contorção do corpo da imagem exprimem um sentimento plástico gótico. Contudo, a expressão dramática da boca entreaberta e o gotejar do sangue ao longo dos braços refletem um sentimento realista peninsular, embora mais português que espanhol, pela expressão resignada que o caracteriza.
A centúria de Quatrocentos é marcada pelo vigor das oficinas da região de Coimbra. As necessidades de um mercado mais amplo e exigente, servidas pela abundância das pedreiras, e as vantagens da via fluvial do Mondego para transporte das obras, levam à reorganização deste centro escultórico, cuja vasta produção se espalhou por todo o país. Abundam as imagens que representam os santos mártires do Cristianismo – Sta Catarina, S. Sebastião, entre outros – bem como as trilogias da Santíssima Trindade e das Santas Mães. Conhecem-se alguns nomes de imaginários, quase todos com obra por identificar. No entanto, sabe-se que João Afonso, Diogo Pires-o-Velho e Diogo Pires-o-Moço, produziram a maioria da imaginária nacional.
O papel de grande centro escultórico transfere-se das obras batalhinas, por influência do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, que encomenda diversas imagens policromadas, para as terras de Montemor-o-Velho a um dos principais estatuários do Mosteiro da Batalha, de nome Gil Eanes. Com ele se havia formado João Afonso que, transferido para Coimbra, recupera a oficina mondeguina. Bem identificado, especialmente pelo facto de datar e assinar as suas obras, João Afonso e a sua oficina, asseguram a parte mais importante da produção escultórica até à década de 60. A ele sucede, no último quartel do século, Diogo Pires-o-Velho, cuja obra apresenta importantes avanços em relação à dos mestres que o precederam. Caracteriza-se por figuras de maiores dimensões, onde impera uma certa dureza de atitudes e de feições, embora com tratamento de panejamentos mais natural que o seu antecessor. A sua oficina virá a ser continuada pelo filho (ou sobrinho), Diogo Pires-o-Moço.
As últimas etapas do Gótico, a partir da segunda metade do séc. XV, trazem outras propostas, em grande parte por influência externa. Muitas destas características – realismo no tratamento do rosto e anatomias, dinamismo nos pregueados e gosto pelos pormenores – correspondem a tendências europeias, do Gótico final.
Museu Nacional Machado de Castro
Virgem do Ó (século XIV)
A devoção a Nossa Senhora é um dos fenómenos religiosos mais significativos do período gótico. A figuração mais original deste período é a Virgem em pé, expectante, popularmente designada como Virgem do Ó. Representa um tipo iconográfico de grande aceitação na Península Ibérica. Este exemplar, proveniente da Sé Velha, é uma das mais conseguidas realizações do seu grande divulgador: Mestre Pero. Das suas mãos saíram algumas das melhores imagens que se conhecem deste período. São esculturas devocionais, de vulto, quase sempre em calcário policromado, apresentando características constantes.
Museu Nacional Machado de Castro
Retábulo do Corpo de Deus
Proveniente da Capela do Corpo de Deus, situada em pleno bairro judeu, este retábulo é formado por uma única placa retangular que serve de fundo à cena representada a meio-relevo – dois anjos ajoelhados elevam o cálice eucarístico, sobreposto pela hóstia com Cristo crucificado. É curioso notar que o escultor João Afonso, datava as suas obras, incluindo também em algumas delas, como neste caso, uma inscrição alusiva ao seu comitente, Álvaro Fernandez de Carvalho: "Senetica : corpos : d[omi]ni : mº : ccccº : xxxx : iij : alu[ar]o f[e]r[nande]z : de : carvalho o mandou fazer".
Museu Nacional Machado de Castro
Cristo Negro
Presença poderosa, esta peça apresenta o corpo de Cristo crucificado, em dimensões superiores ao natural, longilíneo com caráter de arcaizante medievalismo. A cabeça pendente, já coroada de espinhos, rodeada de cabelos em volutas , atinge uma expressão dramática. O tronco negro, estriado pelo relevo das costelas, contrasta com o cendal branco, cruzado na cintura, donde emergem as pernas esqueléticas de pés cruzados, atravessados por um único cravo, característica deste tipo iconográfico . O alongamento do corpo exprime um sentimento plástico que é já gótico, a par do ritmo que contorciona toda a imagem. Mas a expressão dramática da boca entreaberta e o gotejar do sangue, ao longo dos braços, refletem um sentimento realista peninsular, embora mais português que espanhol, pela expressão resignada. Esta invulgar obra de arte provém do Oratório das Donas, do Mosteiro de Santa Cruz.

Museu Nacional Machado de Castro - coleção de escultura séculos XI-XIII

A escultura constitui no MNMC uma coleção de referência abrangendo do séc. XI ao séc. XVIII.
O núcleo português é o mais importante e vasto, integrando, além de escultura de pedra - em maior número - muitas obras de terracota e madeira. Abarca vários séculos e tendências artísticas, testemunhando a existência de uma tradição escultórica que converteu a região num dos maiores centros de produção do país. Esta tradição deveu-se sobretudo à existência de pedreiras de calcário brando, em Ançã, Outil, Portunhos e Pena, nos arredores de Coimbra.
Os melhores exemplos da escultura românica portuguesa concentram-se na ornamentação da arquitetura religiosa, no exterior e interior dos templos e dependências conventuais, bem como nos seus claustros. O núcleo coimbrão, que abrange o maior número de espécimes desta tipologia, apresenta algumas das suas melhores realizações – obras de grande riqueza iconográfica, requintado desenho e modelação. Além do que resta do claustro de S. João de Almedina, a coleção integra capitéis, provenientes, em maioria, daquela colegiada e da de S. Pedro, mas também de S. Cristovão , S. Tiago e Lorvão, entre outras igrejas da cidade e arredores. A coleção testemunha ainda várias correntes de influência trazidas, após a queda do Império Romano do Ocidente, pelos sucessivos invasores da Península. Existem no Museu fragmentos de colunas, pilastras e placas hispano-visigóticas ornamentadas e capitéis árabes da época califal de inspiração clássica e trepanados à maneira bizantina. Os temas decorativos, em especial dos capitéis, por vezes inspirados em motivos muçulmanos ou bizantinos, são um dos elementos de classificação dos grupos românicos. Destacam-se os exemplares em que figuram toda uma série de animais simbolizando as virtudes e os vícios, associando-se a determinadas personagens, episódios e dogmas consagrados nos textos bíblicos – ciclo a que pertencem os capitéis provenientes da Igreja de S. Pedro, templo da alta da cidade reformado em época moderna e destruído no séc. XX para dar lugar à cidade universitária. São símbolos esculpidos, presentes na vivência popular. A escultura românica figurativa é rara em Portugal, existindo apenas duas peças, de pedra e do séc. XII, no acervo deste museu: o Anjo de granito e o Apóstolo (S. João Evangelista); o primeiro é proveniente da Sé do Porto, o segundo de Coimbra, encontrado muito fragmentado em escavações no local da primitiva Igreja de S. João de Almedina. Produzindo sobretudo túmulos e imagens, a escultura liberta-se da arquitetura. Mantém no entanto o caráter religioso, quer pelos sujeitos representados, quer pelo facto de se destinar a espaços sagrados, evoluindo de duas formas: a escultura funerária a e a imaginária dos retábulos e altares. A história da escultura tumular, começa no decurso do séc. XIII, altura em que surgiu o hábito de enterrar no interior das igrejas. Várias sepulturas de prelados e cavaleiros surgem colocadas em arcossólios, uma vez que os sarcófagos de exterior não possuíam jacentes.

Museu Nacional Machado de Castro
Capitel Califal
Proveniente de Montemor-o-Velho, é um capitel de mármore branco, de tipo coríntio, densamente decorado com folhas de acanto. As nervuras dos acantos resumem-se a um simples caule central, sendo toda a restante superfície tratada a trépano, incluindo a roseta central, totalmente diluída entre as folhagens, e as próprias volutas.
Museu Nacional Machado de Castro
Capitel Sereia-Peixe
Este capitel, de grande riqueza iconográfica, apresenta um motivo típico do românico – a sereia-peixe. Inspirado num bestiário popular, de origem oriental, simboliza o mar e tem um significado benfazejo e protetor. A peça apresenta decoração assimétrica em três faces, com repetição do tema: uma sereia segurando um peixe na mão direita e erguendo a cauda com a outra.

Museu Nacional Machado de Castro
Arca-Relicário dos Mártires de Marrocos
Exemplo de escultura tumular, esta arca abre o capítulo da escultura gótica, constituindo o mais antigo documento iconográfico que testemunha o culto aos cinco mártires franciscanos. Foi executada para o Mosteiro de Lorvão, para acolher uma relíquia daqueles santos, concedida pelo monarca à Infanta D. Sancha. Destinada a ser embutida em arcossólio, apresenta apenas trabalhado um lado, formando seis edículas para albergar os cinco mártires e o monarca de Marrocos.



02/10/2014

Museu Nacional Machado de Castro - Coleção de Arqueologia

Atualmente, não é muito vasta a coleção arqueológica deste Museu. Na sua maioria, provém da parte alta da cidade, de locais correspondentes a pontos importantes na época romana: muralha e necrópole, centro forense, quarteirão habitacional situado no topo da colina, hoje ocupado pelo pátio da Universidade, e outro, de descoberta recente, a oeste do forum, que poderá também corresponder a um edifício público.
Com origem no Instituto de Coimbra, a coleção foi constituída a partir de 1873, compreendendo «objetos de pedra, bronzes, ferro e barro». As peças pré-históricas – lâminas de silex, machados de pedra e três machados de bronze – devem-se às prospeções de superfície que António da Costa Simões e Augusto Filippe Simões fizeram nos distritos de Coimbra e Évora. Da época romana são as lápides sepulcrais encontradas em 1774, junto do castelo medieval, então demolido para se dar, nesse local, início à construção do observatório astronómico projetado no âmbito da Reforma Pombalina. A cabeça imperial coroada de louros, descoberta em 1844, na vila de Bobadela, deu entrada no Instituto em 1875, data em que lhe foi oferecida uma insólita escultura, representando um macaco, achada numa sepultura “ de mármore branco”, junto de Estremoz.  São, todavia, as escavações de Conimbriga, iniciadas em 1899, pelo próprio Instituto de Coimbra, que irão trazer a este núcleo maior e mais diversificado espólio, incluindo os mosaicos que descobriram e de imediato transferiram.
Dos períodos suevo-visigótico e árabe recolheram-se algumas peças importantes das quais, a mais notável, conservada no Museu Machado de Castro, é o belo capitel califal, proveniente de Montemor-o-Velho.
Posteriormente à criação deste Museu, outros achados arqueológicos, com proveniências diversas, vieram enriquecer as suas coleções. No entanto, a parte mais valiosa do acervo provém da própria cidade de Coimbra, sobretudo das demolições dos anos 40 e das fundações das novas Faculdades, e das escavações do criptopórtico. Iniciadas por Vergílio Correia em 1930, tiveram um forte impulso entre 1955 e 1962, quando a DGEMN assumiu o projeto de libertar todas as galerias do piso superior e consolidá-las. Nessa altura, a direção científica foi assegurada por João M. Bairrão Oleiro. Entre muitos milhares de fragmentos cerâmicos, situados entre o Alto Império Romano e os inícios do séc. XVII, recuperam-se alguns fragmentos arquitetónicos e quatro retratos imperiais do maior interesse, já pela sua qualidade artística já pela sua cronologia, importante para a história da cidade e também do próprio forum.
Novas campanhas de escavação arqueológica em 1989-1990 e 1992-1997 dirigidas, respetivamente, por Jorge Alarcão e Pedro Carvalho vieram ajudar a libertar e entender melhor o nível inferior do criptopórtico e a definir a correspondência do nível superior com os edifícios que a ele se sobrepunham, nomeadamente, a basílica. Os materiais recolhidos permitem fixar a data de construção do complexo forense nos meados do séc. I e confirmam que – após o abandono, por certo lento, na sequência da invasão suévica – o nível mais baixo do criptopórtico se manteve parcialmente em uso, com entrada direta pelo canto sudoeste, ainda no séc. XIX. O completo entulhamento deste pódio, para reforma do paço episcopal medievo e lançamento da galeria de Tércio, foi também esclarecido, confirmando-se a sua datação nos séculos XVI-XVII.
escultura romana
Agripina, a Antiga, sogra do imperador Cláudio e avó de Nero, surge aqui representada por um artista provincial, copiando um modelo itálico, do chamado ‘tipo Capitólio-Veneza.

01/10/2014

Museu Municipal Carlos Reis - peça do mês de outubro

Denominação: Bolsa Diplomática
Materiais: Seda tingida de vermelho bordeaux, inscrição a tinta negra
Datação: início do século XIX (1800-1820)
Tipo de bolsa que transportava a documentação que os juízes das capitanias da colónia do Brasil enviavam para a capital do Reino. Na documentação da época encontram-se, com frequência, referências a bolsas e/ou sacos que eram entregues aos capitães dos navios, quer para transporte de correspondência e documentação oficial, quer para transporte de dinheiro. Neste caso, trata-se da bolsa que o Juiz do Pará enviava a António Pina Manique, Superintendente Geral dos Contrabandos.
 Transcrição [atualizada]: “Ao ilustríssimo senhor António Joaquim de Pina Manique, Desembargador da Casa da Suplicação, Superintendente Geral dos Contrabandos e dos Descaminhos dos Reais Direitos, Lisboa. Do Juiz da Alfândega do Pará”.
Museu Municipal Carlos Reis
Bolsa diplomática (1800-1820)