28/03/2014

Uma cosmologia medieval reformulada pela matemática moderna

"E assim, a luz (…), pela sua natureza mesmo, multiplicou-se infinitas vezes e espalhou-se uniformemente em todas as direcções. Foi desta forma que, no início do tempo, ela estendeu a matéria, que não podia deixar atrás, arrastando-a com ela e formando uma massa do tamanho do Universo material".
Esta descrição do início do cosmos, muito evocadora da moderna teoria do Big Bang, foi escrita… em latim, por um bispo e cientista medieval inglês, Robert Grosseteste (c.1175-1253). Agora, foi revisitada por uma equipa internacional de físicos, cosmólogos, historiadores, filósofos, latinistas, no âmbito de um projecto (The Ordered Universe Project) apoiado pelo Conselho britânico de Investigação nas Artes e Humanidades. O estudo revelou que os problemas teóricos com que se defrontam os cosmólogos modernos já existiam há 800 anos (apesar de ser muito improvável que Grosseteste tivesse consciência deles). Os resultados vão ser publicados em breve na revista Proceedings of the Royal Society A (mas já estão disponíveis no site arxiv.org).
Em 1225, no seu curto tratado Da luz ou o início das formas, Grosseteste expunha a primeira explicação científica de sempre da origem do Universo. Claro que, na altura, pensava-se que a Terra, imóvel, era o centro de tudo e que as estrelas e os planetas giravam em torno dela. Claro que Grosseteste não dispunha de ferramentas matemáticas para traduzir as suas palavras em fórmulas. E claro que não inventou a teoria do Big Bang, que deriva das equações da Teoria de Relatividade de Einstein e descreve uma realidade física totalmente diferente. Mas, mesmo assim, o texto (disponível desde 1942 numa tradução em inglês, a partir da qual traduzimos o excerto acima) não deixa de ser impressionante pela modernidade das ideias que expõe. Foi por isso que Gasper e Richard Bower, físico da mesma universidade, juntamente com outros colegas, quiseram reinterpretá-las à luz da linguagem matemática de hoje – e a seguir, simulá-las num computador para ver se produziriam um Universo tal como Grosseteste o concebia no século XIII.
“O trabalho que Grosseteste fez no seu De Luce é nada menos do que revolucionário”, disse-nos Bower. “A sua explicação do Universo vai para além de todas as anteriores. Aristóteles concluíra que o Universo não tinha início nem fim, mas Grosseteste diz exactamente o contrário, começando por propor uma nova teoria da matéria e desenvolvendo-a numa explicação da criação do Universo. Ou seja, trabalha como um cosmólogo moderno, propondo leis físicas e seguindo-as até ao fim. Acho isso espantoso.”
A cosmologia medieval estipulava, com base nas ideias de Aristóteles, que o Universo estava dividido em dez “esferas” concêntricas (a décima e mais exterior, o paraíso cristão, fora acrescentada mais tarde). De fora para dentro, seguiam-se mais oito, correspondentes ao firmamento (que continha as estrelas), Saturno, Júpiter, Marte, o Sol, Vénus, Mercúrio e a Lua. A primeira esfera, no centro, era a da Terra e era composta por quatro “sub-esferas” dos quatro elementos: fogo, ar, água e terra. Tal como fazem hoje os cosmólogos para explicar o que a ciência moderna revela acerca do Universo, Grosseteste concebeu a sua teoria de forma a explicar essa visão medieval. Diga-se que, ao longo do seu trabalho, os autores se preocuparam em não “contaminar” a forma de pensar de Grosseteste com ideias modernas: “É crucial evitar sobrepor uma visão moderna do mundo ao pensamento de Grosseteste”, escrevem no seu artigo.
O texto do cientista medieval explica como as interacções entre luz e matéria, que para ele são “inseparáveis”, vão dando origem consecutivamente as esferas celestiais. Isso acontece, explica, devido à rarefacção da matéria à medida que ela se afasta do ponto de origem (arrastada pela luz), e ao facto de, uma vez atingido o limite do seu percurso, a luz ser irradiada da periferia para o centro sob uma outra forma, desta vez comprimindo a matéria. “Tanto quanto sabemos, De Luce é o primeiro exemplo trabalhado a mostrar que um único conjunto de leis físicas poderia dar conta de estruturas tão diferentes como a Terra e o céu”, salienta a equipa num comentário na última edição da revista Nature. O que, acrescentam, “demonstra quão avançada era a filosofia natural no século XIII – que não foi de todo uma Idade das Trevas”.Quando os cientistas simularam as equações que tinham deduzido da leitura muito atenta do texto em latim de Grosseteste e correram simulações do modelo obtido num computador, aperceberam-se de que, embora elas pudessem efectivamente dar origem ao Universo medieval de Grosseteste, na maior parte dos casos geravam um número infinito de esferas. “Os universos estáveis com um número finito de esferas são claramente a excepção”, escrevem os autores. De facto, alterando ligeiramente os valores dos parâmetros que definem as condições que reinavam no início do Universo, obtêm-se mesmo “cosmos bizarros, onde as esferas não estão ordenadas e se misturam umas com as outras”. Ora, isso é muito parecido com a noção de “multiverso”, conceito “familiar na cosmologia moderna que considera que o Universo em que vivemos é apenas um dos muitos universos possíveis, cada um deles diferindo dos outros nos valores dos seus parâmetros fundamentais”, escrevem ainda. E, “aplicando a mesma lógica ao Universo de Grosseteste, rapidamente descobrimos que o organizado universo aristotélico (…) requer uma combinação muito especial de parâmetros fundamentais”. O que significa, concluem, que embora as ferramentas e o conhecimento científicos sejam hoje muito mais precisos, a maneira de trabalhar dos cosmólogos não mudou assim tanto ao longo dos séculos. “Trabalhamos da mesma maneira”, diz-nos Bower. “Construímos leis físicas com base em experiências e teorias que explicam o mundo que nos rodeia e depois extrapolamos essas teorias até ao início dos tempos, partindo do princípio que essas leis se aplicam em todo o espaço-tempo. (…) Mas hoje sabemos que isso tem limitações ­e a única certeza que temos é que as nossas teorias actuais acabarão um dia por ser insuficientes.”
Modelo geocêntrico
Modelo geocêntrico do Universo, numa ilustração de 1568 pelo cosmógrafo e cartógrafo português Bartolomeu Velho

21/03/2014

Os rapazes dos tanques

Este livro oferece-nos imagens e testemunhos exclusivos dos homens (oficiais, sargentos e praças) que estiveram frente a frente no Terreiro do Paço e no Carmo, no dia 25 de Abril de 1974. As fotografias de Alfredo Cunha e as entrevistas conduzidas por Adelino Gomes levam-nos a (re)viver aquelas horas e a percebermos as dúvidas, os receios, a ansiedade, a tensão, a esperança, as alegrias vividas por cidadãos que, depois desse dia, regressaram, na maior parte dos casos, ao anonimato. E a conhecer, também, o olhar que esses homens têm sobre o país, quarenta anos depois. Pela primeira vez, é dada voz a furriéis e cabos que não obedeceram às ordens de fogo do brigadeiro comandante das forças fiéis ao regime – um ato de justiça aos que estando, numa primeira fase, na defesa do regime arriscaram a vida e souberam estar à altura do desafio. Entre eles está o cabo apontador cuja ação Salgueiro Maia considerou decisiva para a vitória das forças revoltosas. Os Rapazes dos Tanques simboliza em Salgueiro Maia e em todos eles a homenagem que Portugal presta, quarenta anos depois, aos militares que derrubaram a ditadura.
Revolução dos cravos
Capa do livro Os rapazes dos tanques

20/03/2014

Santo franciscano de Nuno Gonçalves no Prado

Uma tábua atribuída a Nuno Gonçalves, pintor do Rei Afonso V, que faz parte de uma série de quatro santos atribuída ao "primitivo português", também do MNAA, será igualmente emprestada para uma exposição em torno de Roger van der Weyden e da Península Ibérica que Museu do Prado irá realizar após o restauro de um grande "Calvário" de Weyden que pertence á colecção do Escorial. Terá lugar em meados de 2015 e juntará grandes "estrelas" da pintura flamenga (e ibérica) do XV. Até ao Prado viajará por isso o santo franciscano de Nuno Gonçalves, que fará parte de uma exposição dedicada ao flamengo Rogier van der Weyden, pintor de Filipe, o Bom, Duque da Borgonha.
Santo Franciscano
Santo Franciscano de Nuno Gonçalves


Autorretrato de Dürer no MNAA

O Museu de Lisboa irá receber em maio de 2016 um dos três autorretratos de Albrecht Dürer, mais precisamente aquele que foi pintado em 1498 e que hoje pertence à coleção do Museu do Prado de Madrid. Pintado depois da viagem de Dürer a Itália, este é um dos seus primeiros autorretratos, e mostra o pintor alemão em pose altiva, garbosa, enquanto "gentil homem" e convicto das suas capacidades enquanto jovem pintor - à época, Dürer teria 17 ou 18 anos. Esta obra do mais famoso pintor nórdico do Renascimento terá sido oferecida pela cidade de Nuremberga, onde Dürer nasceu e veio a falecer em 1528, a Carlos I de Inglaterra durante o século XVII. O quadro viria a ser adquirido, mais tarde, por Filipe IV de Espanha (Filipe III de Portugal). A vinda até Portugal de um dos mais célebres quadros de Dürer sucede por troca com as "Tentaçãoes de Santo Antão", de Bosh, pertencente ao acervo do Museu Nacional de Arte Antiga, que nesse período, de maio a setembro de 2016, irá até ao Prado, fazendo parte da grande exposição dos 500 anos daquele pintor.
Dürer
Autorretrato de Dürer

Operação Fim-Regime (VISÃO História)

Já está nas bancas um novo número da VISÃO História, em que os protagonistas das acções militares do dia 25 de Abril recordam o que se passou no dia em que Portugal se tornou um país livre.
Quando chegou ao quartel do Regimento de Engenharia da Pontinha, às dez da noite de dia 24 de abril de 1974, Otelo Saraiva de Carvalho ia vestido à civil. Poderia mesmo 'ser' o engenheiro Óscar Pinto, nome de código que usara desde o golpe das Caldas, a 16 de março, altura em que os principais operacionais do Movimento das Forças Armadas se passaram a tratar por nomes falsos para não serem identificados pela polícia política. O plano 'Operação Fim-Regime' que Otelo elaborara tinha sido distribuído, nos dois dias anteriores, por militares em todo o país, graças à colaboração de oito oficiais-estafetas. Tudo a postos, portanto, para a noite em que o futuro ia começar. O leitor do número da VISÃO História posto à venda esta semana seguirá o fio dos acontecimentos exatamente a partir do momento em que Otelo entra no quartel da Pontinha.
Cerca de 30 militares foram entrevistados numa tentativa de reconstituir, com pormenor, o que se passou nas 36 horas seguintes, até à tomada da sede da PIDE/DGS, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, às 9 da manhã de 26 de abril. É a Revolução contada, tanto quanto possível, pelos seus protagonistas. Da tomada do Quartel-General da Região Militar de Lisboa, que Otelo havia definido como um alvo fundamental, até ao cerco do quartel da GNR no Largo do Carmo, que leva à rendição de Marcelo Caetano, passando pelo que aconteceu no Porto, no Algarve e na Zona Centro, a VISÃO História tenta reconstituir, em discurso direto, como foi feita a Revolução. Algumas das reportagens são ilustradas com fotografias a cores pouco conhecidas. Numa entrevista, Vasco Lourenço explica os antecedentes da Revolução, recordando o movimento dos capitães e as movimentações que levam ao 25 de Abril, que o leitor ficará também a conhecer através de uma cronologia dos onze meses anteriores.
Visão História
Visão História - "Operação Fim-Regime"

13/03/2014

Chuvadas provocam derrocadas nas ruínas de Pompeia

Fortes chuvadas em Itália provocaram, neste inverno de 2014, pelo menos três derrocadas nas ruínas de Pompeia, revelando os problemas de conservação que afectam este património mundial. Depois do terceiro incidente que provocou a queda de um muro de dois metros, o presidente da Comissão Nacional Italiana para a Unesco, Giovanni Puglisi, declarou que “não há tempo a perder do ponto de vista burocrático”, e que é necessário “um plano de intervenção extraordinário, que garanta a segurança de toda a área de Pompeia”. Puglisi, citado pelo diário italiano La Repubblica, sublinhou a importância de se criar um sistema de drenagem das águas da chuva na zona, caso contrário, disse, “é claro que toda a Pompeia está destinada a desabar”.
Pompeia, situada aos pés do vulcão Vesúvio, ficou preservada sob a lava quando o vulcão entrou em erupção, em 79 d.C., foi redescoberta no século XVIII, e é um testemunho único do que era a vida quotidiana no Império Romano. A chuva provocou primeiro a derrocada de uma parte do muro do Templo de Vénus, afectando depois uma loja e o túmulo de Lucius Publicius Syneros. Novas chuvadas derrubaram o arco do Templo de Vénus (numa zona que já estava fechada aos visitantes) e um muro em redor da necrópole de Porta Nocera (numa área que foi agora também interdita). O jornal Il Sole 24 Ore recorda que em Novembro de 2013 as condições meteorológicas também já tinham provocado uma série de estragos importantes em Pompeia.
Ruínas de Pompeia
Ruínas de Pompeia

Mercado de Escravos em Lagos classificado como monumento de interesse público

O edifício construído no local onde funcionou o que se presume tenha sido o primeiro Mercado de Escravos da Europa quatrocentista, em Lagos, foi classificado como monumento de interesse público, segundo uma portaria publicada na terça-feira em Diário da República.
Datado de 1691, o mercado foi o último dos edifícios de apoio à praça-forte de Lagos a ser construído, sobre o que restava de um antigo edifício quatrocentista que servira para venda de escravos, na Praça Infante D. Henrique. O imóvel serviu no século XVII para acomodar o Corpo da Guarda, integrando-se no contexto de racionalização dos recursos e de especialização dos espaços que deu origem à Oficina do Espingardeiro (ex-Quartel da Coroa) e ao vizinho Armazém Regimental.
"Trata-se de um monumento de grande impacto urbanístico e um dos mais emblemáticos da cidade, constituindo-se em vértice da principal praça de Lagos", segundo a portaria. O texto refere, ainda, que o local testemunha a "umbilical" ligação da cidade "à empresa dos Descobrimentos e cristaliza, até à actualidade, a memória do local onde se instalou o provável primeiro mercado de escravos da Europa quatrocentista". "Para além do seu inegável valor histórico, o edifício detém elevada qualidade arquitectónica, concretizada no traçado racional, erudito e simétrico, e na harmoniosa composição de volumes da sua estrutura maneirista", conclui.
A partir de 1444, Lagos passou a receber todos os anos carregamentos regulares de escravos, que eram normalmente capturados em razias ou adquiridos por troca na costa ocidental de África. Utilizados em trabalhos pesados e em tarefas domésticas, os escravos africanos, a partir de então, passaram a fazer parte da paisagem humana portuguesa, que marcarão de forma profunda.
Lagos
Edifício do mercado de escravos em Lagos (1691)

07/03/2014

Le Moulin de la Galette de Van Gogh vai ser leiloado

Le Moulin de la Galette, uma das várias pinturas de Van Gogh que retratam o célebre moinho do bairro parisiense de Montmarte, deverá ser leiloada na TEFAF, a feira de arte de Maastricht, na Holanda, que abre no próximo dia 14 de março. A notícia foi avançada pelo jornal inglês The Guardian, que adianta que o quadro pertenceu a Charles Engelhard, o milionário no qual Ian Fleming se inspirou para compor Auric Goldfinger, um dos mais carismáticos vilões da série 007, protagonizada pelo agente secreto James Bond. Datado de Abril de 1887, num período em que o pintor vivia em Paris com o seu irmão Theo, é um dos dois últimos quadros da série dos moinhos de Montmarte que ainda se encontrava em mãos de privados. Considerada uma peça importante de uma fase de viragem na obra de Van Gogh, a tela tem ainda a particularidade invulgar de ostentar uma assinatura muito visível. Incluída nas obras herdadas pela viúva de Theo, Johanna van Gogh-Bonger, foi uma das pinturas que esta escolheu para integrar a célebre exposição de 1905 no museu Stedelijk, de Amsterdão, como se comprova por um rótulo colado na parte de trás do quadro. A cunhada de Van Gogh ofereceu depois a tela ao pintor Isaac Israels, com quem viveu após a morte de Theo. Israels morreu em 1934 e, durante mais de vinte anos, Le Moulin de la Galette passou por várias colecções até chegar, em 1958, às mãos de Charles Engelhard, proprietário de empresas mineiras e químicas, dono de uma frota de jactos privados e conhecido pelo seu modo de vida extravagante. Engelhard morreu em 1971, mas a tela só agora voltou ao mercado. O capitalista conheceu Ian Fleming no banco londrino fundado pelo avô do escritor, de que era cliente, e parece ter apreciado sem reservas que o amigo o transformasse num vilão para efeitos literários. Consta que passou mesmo a tratar uma das hospedeiras dos seus jactos como Pussy Galore, em homenagem à personagem homónima que colaborava com Goldfinger no livro de Fleming.
Van Gogh
Van Gogh, Le Moulin de la Galette, 1887


06/03/2014

"Os Czares e o Oriente" no museu Gulbenkian em Lisboa

No Museu Gulbenkian, em Lisboa, está patente a exposição Os Czares e o Oriente. Ao todo, são 66 os objectos que é possível ver na Galeria de Exposições Temporárias, até 18 de Maio. São quase todas peças de aparato, ou seja que foram criadas para serem usadas em cerimónias oficiais em que a regra era a ostentação. São opulentas, vêem-se à distância e, no entanto, obrigam quem as visita a olhar para o pormenor. São os detalhes que, em primeiro lugar, denunciam a História da Rússia entre os séculos XIV e XVII, o espaço temporal representado nesta selecção de peças. Foi o tempo do Oriente — e por isso o subtítulo da exposição é Ofertas da Turquia e do Irão no Kremlin de Moscovo. Um tempo que, nestes objectos, começa na Horda de Ouro, um dos quatro canatos que sobreviveram à fragmentação do Império Mongol (e o que mais tempo durou). No seu apogeu, a Horda de Ouro integrava a zona europeia da Rússia, o Cazaquistão, a Ucrânia, parte da Bielorrúsia, o Uzbequistão, parte da Sibéria e a Roménia. Era um império extenso em território e intenso nas relações comerciais, e um dos seus vestígios abre esta exposição da Gulbenkian — o oklad (revestimento) do belíssimo ícone da Nossa Senhora do Leite, talvez a peça mais discreta do conjunto que o Kremlin trouxe a Lisboa. O ícone é uma cópia do século XVI de outro anterior, mas o revestimento é o original do século XIV e reflecte a “singular simbiose das culturas da Rússia, do Ocidente e do Oriente” — o ornamento principal do fundo é uma flor em forma de lótus, característica da ornamentação e objectos do Oriente Próximo e Médio e da Ásia Central.
A exposição pode ser dividida em três núcleos: objectos religiosos, militares e têxteis. São os têxteis que fazem a ligação desta exposição temporária à colecção permanente da Gulbenkian. Como explicou o director do Museu, João Castel-Branco, na programação das exposições de curta duração procura-se completar o espólio, dando aos visitantes uma visão mais completa de um período ou de um conjunto artístico. E esta iniciativa com o Kremlin segue essa intenção — a colecção permanente tem objectos deste período e destas regiões — e tem um têxtil muito semelhante a um que veio do Moscovo, o cortinado turco, do século XVII, em veludo lavrado a ouro. Mas o Museu Gulbenkian não tem armas e metais, que estão fortemente representados nesta exposição temporária.
Em expositores amplos, sem fundo, acompanhados de espelhos que jogam com a luz e com os reflexos e tornam a sala de exposições num cofre mágico, podemos ver armas cerimoniais, arreios de cavalos, tecidos luxuosos e peças ricamente ornamentadas com pedras preciosas.
A maior parte do acervo, explica o catálogo, é constituída por objectos oferecidos aos czares pelos xás do Irão e pelos sultões turcos. O intercâmbio regular entre a Rússia e o Irão começa em 1480 — 29 embaixadas iranianas vão à Rússia entre o fim do século XVI e o século XVII. Relações comerciais e interesses territoriais aproximam as duas cortes. Mas como esta é uma exposição de arte, sublinhe-se a raridade de alguns objectos, como os da dinastia timúrida, que no seu apogeu dominava os territórios do Irão, da Arménia, da Ásia Central, da Geórgia, do Iraque.
Artisticamente, este período distinguia-se pela combinação das tradições artísticas da China, do Irão, e da Ásia Central, explicaram os especialistas — olhe-se com atenção para a parte de cima (a que cobre os ombros) do felónio de cetim lavrado originário do Império Otomano e na influência da arte chinesa no bordado.
Já a Rússia e o Império Otomano estabeleceram relações diplomáticas e comerciais praticamente a seguir à formação do Estado turco, no final do século XV. A arte turca está representada através de têxteis, peças militares (sempre de ostentação) — como o elmo de gala embutido a ouro e com inscrições do Corão —, correias de peitorais para enfeitar ricamente os cavalos e armas brancas ornamentadas com pedras preciosas de grandes dimensões.
A conservadora do Museu Gulbenkian Maria Fernanda Passos Leite explicou, na apresentação da exposição, que muitas destas prendas aos czares (que também compravam matéria-prima a estes países) não chegaram todos à corte na forma como as vemos agora. As oficinas reais intervinham nas peças, modificando-as ou fabricando-as. A sela russa do século XVII foi feita nas oficinas do Kremlin usando veludo iraniano. “Os artigos dos mestres turcos não só se tornaram um elemento essencial da vida oficial e quotidiana da corte moscovita, como também tiveram um impacto significativo na actividade das oficinas do Kremlin. Nos inventários do arsenal real são mencionados artigos de armamento fabricados conforme o ‘forjamento turco’ ou decorados segundo a ‘arte turca’”, explica no texto de arranque do catálogo Inna Vishneskaia. “Tinha tudo a ver com a representação do poder do czar. Trata-se de usar a linguagem da ostentação ao serviço do poder”, explicou Olga Mironova, conservadora chefe do Museu do Kremlin. dizendo que a influência oriental na arte e nos objectos do luxo se manteve até tarde na Rússia. O gosto mudou com Pedro o Grande, o czar que impôs o gosto ocidental aos russos e virou a política externa para o campo europeu (também transferiu a capital para São Petersburgo, mais próxima do Ocidente e onde quis criar uma corte mais semelhante ao que vira na Suécia ou na Inglaterra) .
Depois de Pedro o Grande, a ostentação tornou-se mais civil e mais privada — são famosas as jóias da família imperial russa, criadas pelos grandes joalheiros de Londres e Paris com as pedras preciosas compradas pela aristocracia ou oferecidas ao czar. Muitos dos tesouros dessa nova fase desapareceram na sequência da revolução soviética — muitas jóias foram desmontadas e as gemas vendidas para financiar a revolução. A filha do primeiro homem no espaço explicou que, já nessa altura, se percebeu a importância dos tesouros que agora se mostram na Gulbenkian. Nesses ninguém ousou mexer. “Foram sempre do Estado, e foram sempre preservados”.
Ícone de Nossa Senhora do Leite
Ícone de Nossa Senhora do Leite Pintura: Moscovo, séc. XVI Revestimento: Horda de Ouro, séc. XIV

Exemplar da 1.ª edição de Os Lusíadas em Austin - Texas

Ler e examinar um dos raros exemplares sobreviventes da primeira edição de Os Lusíadas – poema épico de Luís de Camões (1524?-1580) –, impresso em 1572, é uma experiência que pode ser realizada no Harry Ransom Center (HRC), Centro de Investigação de Humanidades no campus da Universidade do Texas em Austin (UT Austin), onde está o exemplar que dizem ter pertencido ao próprio Camões e é um dos mais importantes entre os 34 que existem espalhados por três continentes.
Quem quiser ver a primeira edição de Os Lusíadas tem de criar uma conta de investigação, na página Web do HRC, e assistir a um vídeo de dez minutos para aprender como se devem manusear livros raros e quais os procedimentos de segurança. Qualquer pessoa pode ver a obra, mas estes requisitos são obrigatórios para se ter acesso à sala de visualização. É também recomendável contactar a instituição com 24 horas de antecedência, porque o livro está guardado num cofre. Depois de feita a requisição da obra, uma das bibliotecárias aproxima-se, segurando com as duas mãos uma caixa vermelha de capa dura. Com muito cuidado desata os laços, abre a caixa, põe-na sobre a mesa, retira o livro e pousa-o sobre suportes revestidos de veludo. O visitante pode então folhear o livro, tentar ler as marginálias (comentários escritos à mão nas margens), com a ajuda de duas lupas, identificando as diferenças ortográficas em relação aos dias de hoje. Céu era ceo, muito era muy, e as palavras hoje terminadas em ão acabavam em am. Não era nam. A experiência de ver o exemplar de Os Lusíadas, considerado o mais importante dos que existem por conter manuscritos de uma testemunha ocular da morte de Luís de Camões, é entendida por alguns como um mapa literário para regressar ao passado. A jornalista brasileira Heloísa Aruth Sturm, quando era estudante de mestrado na Universidade do Texas, em 2010, analisou este exemplar durante um semestre para a disciplina de História do Livro. Todos os alunos tinham de escolher um livro raro, analisá-lo e escrever um artigo académico. Interessada em literatura colonial, Heloísa soube desta cópia de Os Lusíadas através do seu orientador, Ivan Teixeira, investigador brasileiro e na altura professor na UT Austin. A aluna ia pelo menos uma vez por semana ao HRC para analisar Os Lusíadas. Tinha medo de danificar o livro, por isso usava sempre luvas para o folhear. Sentia-se “num convento em pleno século XVI”. A paranóia era tão grande, diz ela, que “às vezes, até tomava cuidado para não ficar respirando em cima do livro”.
No entanto, não são muitos os que vivem esta experiência literária de Heloísa. Richard W. Oram, curador de livros raros do Harry Ransom Center, desde 1991, diz que este exemplar de Os Lusíadas raramente é requisitado. Porém, a sua aquisição pela Universidade do Texas tem sido de extrema utilidade para produção académica mundial sobre a obra de Camões. K. David Jackson, director dos estudos de Português, na Universidade de Yale, foi professor na Universidade do Texas em Austin, entre 1974 e 1993. Conta ao PÚBLICO, por email, que a universidade já tinha adquirido o livro quando ele foi contratado por esta instituição texana. E quando deu um seminário no Harry Ransom Center usou o livro como recurso. Na altura, mostrou-o à filóloga italiana e especialista em literatura medieval portuguesa Luciana Stegagno Picchio (1920-2008) e “ela ficou fascinada” com os comentários escritos à mão nas margens do livro, a marginália. Em 2003, o investigador publicou um CD-ROM, Luís de Camões e a Primeira Edição d’Os Lusíadas, 1572, com 29 exemplares da primeira edição, de várias bibliotecas internacionais. O trabalho foi apresentado na Fundação Luso-Americana, em Lisboa. Na introdução textual desse CD, K. David Jackson explica que este exemplar foi essencial e de extrema influência para a academia, por causa das suas qualidades raras, como o “comentário marginal assinado por frei Joseph Índio, padre do Sul da Índia, convertido ao cristianismo, que Camões deveria ter conhecido, que era pelo menos 30 anos mais velho do que ele, tendo chegado a Lisboa em 1501 com a frota de Cabral.” O que atesta a relação entre esse frei e Camões são os manuscritos nas margens nas primeiras páginas do volume. Todas estes dados levaram os investigadores a referir-se a este exemplar como "de Camões". Dizem que o poeta o teria consigo, quando frei Joseph o terá assistido no leito de morte.
Parte da marginália é em espanhol, incluindo traduções de palavras portuguesas. Este facto permitiu aos investigadores concluírem também que este exemplar pertenceu ao “Convento de Carmelitas Descalços de Guadalcázar”, em Espanha, da ordem a que pertencia frei Joseph Índio desde que chegou a Portugal. Tudo indica que o padre levou consigo o exemplar de Portugal para Espanha ainda no século XVI, logo após a morte de Camões, como explica K. David Jackson no CD-ROM. Diz ainda o investigador americano, no seu artigo de introdução ao CD-ROM, que no século XIX o livro chegou às mãos do diplomata britânico John Hookam Frere (1769-1846), em Sevilha, e, em 1812, foi doado para a Holland House, onde permaneceu durante mais de um século, com excepção de um empréstimo de curta duração a Sousa Botelho, morgado de Mateus, que o usou para preparar a sua própria edição de Os Lusíadas, publicada em Paris em 1817. Foi na década de 1960 que o livro foi levado para os Estados Unidos, tendo-se então iniciado negociações para a sua compra pela Universidade do Texas. K. David Jackson conta-nos que em 1966 o poeta e dramaturgo português Jorge de Sena (1919-1978), na época professor de Literatura de Língua Portuguesa na Universidade de Wisconsin, apanhou o autocarro em Madison, Wisconsin, onde morava, e viajou durante cerca de 20 horas para chegar a Austin, capital do Texas, para avaliar o exemplar e dar consultoria aos curadores do HRC. No entanto, de acordo com os arquivos do HRC, a compra só se efectuou no dia 4 de Março de 1970. As negociações foram realizadas pelo comerciante de livros Lew David Feldman, da House of El Dieff, em Nova Iorque, com quem Harry Ransom, então presidente da UT Austin e director do HRC, negociava constantemente. De acordo com o curador de livros raros do HRC, Richard W. Oram, não há muita informação sobre a compra deste exemplar. Parece também não haver muita documentação sobre o mesmo. O curador não sabe as razões pelas quais o livro foi adquirido pela Universidade do Texas. E lembra que não há ninguém actualmente no HRC que tenha estado relacionado com essa compra. Por isso especula que uma das razões para a aquisição deste exemplar possa ter sido o facto de a universidade ter muito dinheiro nessa altura. Além disso, lidavam com o tal comerciante de livros Lew David Feldman, conhecido de Harry Ransom. Os arquivos do HRC que correspondem à compra deste livro estão guardados em quatro caixas. Aí descobrimos que a obra de Camões custou à universidade um pouco mais de cem mil dólares, incluindo seguro e transporte, valor que corresponderia hoje a cerca de 600 mil dólares.
O exemplar adquirido pela Universidade do Texas tem sido de extrema relevância para os investigadores por ter ajudado a desmistificar as supostas duas edições de 1572. A pesquisa sobre os problemas associados à primeira edição tem-se estendido por mais de três séculos, escreve o investigador de língua e cultura portuguesa na Universidade de Yale K. David Jackson na introdução textual do CD-ROM. Tudo começou em 1685, quando um grande comentarista de Os Lusíadas observou pela primeira vez que a imagem do pelicano no frontispício estava virada em alguns exemplares para o lado esquerdo do leitor, e em outros para o lado direito. Observações posteriores identificaram outras diferenças que pareciam estar associadas à posição do pelicano, como a leitura do sétimo verso da primeira estrofe, que começa “E entre” no caso do pelicano “à esquerda,” e “Entre” no caso do pelicano “à direita”. As duas edições ficaram conhecidas como “Ee” e “E”. O exemplar guardado no Harry Ransom Center classificar-se-ia como “E”. Mas K. David Jackson refere-se a estas duas edições como um mito que se fixou no imaginário português.
Desde então, vários investigadores têm-se dedicado a responder à questão: se há duas edições diferentes, duas impressões do mesmo impressor, ou ainda uma edição autêntica e outra falsa. Foi este exemplar adquirido pelo Harry Ransom Center, com capa de pergaminho e em excelente estado, que em 1976 deu início ao estudo comparado de 34 exemplares da primeira edição, levada a cabo por K. David Jackson, e que desafiaria posteriormente a hipótese de que a primeira versão impressa teria sido recomposta numa nova edição. Conforme o artigo do investigador de Yale, “existem em cerca de um terço dos exemplares sobreviventes – em 12 dos 34 – variantes que representam a combinação, num único volume, de elementos normalmente associados a “E” ou “Ee”. K. David Jackson concluiu, no seu artigo “Luís de Camões e a Primeira Edição d’Os Lusíadas, 1572”, que os dois pelicanos, assim como “E” ou “Ee”, “não correspondem a edições na íntegra, mas sim a estados de impressão de Os Lusíadas em 1572”. Dos 34 exemplares comparados, 12 estão em Portugal (um deles é um fac-símile), sete nos Estados Unidos, cinco no Brasil, dois em Espanha, quatro na Inglaterra, dois em França, um em Itália, e um na Alemanha. De acordo com o investigador, devem ainda existir outros exemplares em Portugal “em mãos de particulares”. Conforme os escritos académicos de K. David Jackson, Os Lusíadas é o décimo sexto título publicado pela tipografia e o sexto em língua portuguesa. Foi impresso por António Gonçalves, que tinha oficina própria, em Lisboa, na Costa do Castelo.
Camões
Os Lusíadas, 1572, exemplar do Harry Ransom Center, Austin