20/12/2014

Descoberta de frescos do final do século XV na Igreja de Santa Maria do Castelo em Abrantes

Em novembro foram descobertos, na Igreja de Santa Maria do Castelo, frescos de finais do século XV, inícios do século XVI. Estavam escondidos debaixo dos azulejos que decoram a igreja. A câmara quer agora retirar todos os azulejos de uma das paredes para poder dar uma nova vida ao espaço. Quando se entra no Castelo de Abrantes, a Igreja de Santa Maria do Castelo, ao cimo, o que nos salta à primeira vista é o seu portal gótico e a vista privilegiada sobre a cidade. Está classificada como monumento nacional desde 1910. Nas paredes laterais da capela-mor da igreja, que abriga o Museu Regional D. Lopo de Almeida, o primeiro conde de Abrantes, estão os túmulos deste e do seu pai D. Diogo de Almeida. À volta dos túmulos apenas azulejos do século XVI e em cima uma pintura que evoca os símbolos heráldicos dos Almeida — uma espécie de barril a explodir. Ao perceber que havia uma pintura por baixo dos azulejos e que esta não estava picada, os técnicos pediram então autorização à tutela para remover umas fileiras de azulejos de forma a perceber realmente o que estava por baixo. Apareceram pinturas figurativas que parecem representar figuras de profetas com excertos de textos alusivos a temas de morte e ressurreição. Tema que se adequa plenamente a este espaço, transformado em capela-funerária, ou mesmo panteão, dos Almeidas. Esta descoberta não é uma inteira novidade, uma vez que há muito tempo que a igreja tem à vista pinturas a fresco no arco triunfal e na capela-mor, na parede do fundo e nas partes altas das paredes laterais. Adivinhava-se que algo mais existia, mas pensava-se que seria uma simples continuação do mesmo padrão heráldico que está visível na parte alta das paredes. Estas pinturas reforçam ainda as ligações a um conjunto que seguem os mesmos modelos, feitas na mesma época, visíveis no Paço de Sintra, na Igreja de S. Francisco de Leiria, na Igreja de S. Leonardo na Atouguia da Baleia e em mais alguns locais. Identificar o autor das pinturas é que pode ser mais difícil. “Na pintura mural muito pouca coisa ficava registada, podemos apenas comparar com outros exemplos da zona e da época”, diz Alice Cotovio. A intenção da câmara é que na igreja deixe de funcionar o Museu Regional D. Lopo de Almeida e transformar aquele espaço no Panteão dos Almeidas.
Igreja de Santa Maria do Castelo em Abrantes
Frescos datados do século XV na Igreja de Santa Maria do Castelo em Abrantes
Frescos datados do século XV na Igreja de Santa Maria do Castelo

14/12/2014

Resumo da intervenção do autor na sessão do lançamento do livro O Museu de Imagens na Imprensa do Romantismo. Património arquitetónico e artístico nas ilustrações e textos do Archivo Pittoresco (1857-1868)

Alguém escreveu que para ser agradável «um discurso deve ter as três qualidades do vestido feminino: talhado para a ocasião, elegante e curto ... mas extenso o suficiente para cobrir o essencial.»
Tenho de apelar à vossa paciência, pois, para cobrir o essencial, é de inteira justiça que demonstre o meu reconhecimento pela organização desta atividade do lançamento do livro O Museu de Imagens na Imprensa do Romantismo. Património arquitetónico e artístico nas ilustrações e textos do Archivo Pittoresco (1857-1868).
Agradeço ao Senhor Diretor do Agrupamento de Escolas Artur Gonçalves, Professor Acácio Neto, que foi o autor da ideia de realizar este evento inserido nas atividades do Agrupamento.
Agradeço às colegas da Biblioteca Escolar, nomeadamente à Coordenadora Felisbela e à minha colega Ana Paula Ferreira, que sugeriram que a atividade se realizasse no âmbito da feira do livro do Agrupamento e, de diversas formas, contribuíram para a sua organização.
Agradeço à Coordenadora da Escola Dr. António Chora Barroso, a minha colega Dina, pela organização da logística inerente a esta sessão.
O meu sincero agradecimento aos alunos do Curso Profissional de Multimédia (entre os quais reconheço ex-alunos) pelo trabalho que produziram e no qual foram superiormente orientados pela Professora Sílvia Filipe, que foi inexcedível no apoio a este projeto.
Expresso a minha gratidão ao Professor Carlos Rodarte Veloso por ter aceitado o convite para a apresentação do livro e pela excelente lição que nos proporcionou.
Em nome da Senhora Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Torres Novas, Dr.ª Elvira Sequeira, estendo o meu agradecimento a todas as entidades presentes nesta sessão.
Confesso que estou muito sensibilizado pela presença de muitos colegas, alunos, ex-alunos e quiçá futuros alunos, pais e encarregados de educação. Também quero manifestar o meu agrado pela presença de muitos amigos e a todos que se quiseram associar a esta iniciativa.
Peço que me autorizem uma breve digressão autobiográfica
Todos os livros têm o seu contexto e a sua própria história. A investigação que deu origem a este livro foi iniciada quando exercia a docência na Escola Secundária Artur Gonçalves em Torres Novas e a finalização da escrita aconteceu quando lecionava na Escola Básica Dr. António Chora Barroso de Riachos. Como é compreensível o livro foi escrito paralelamente a uma intensa atividade docente com 7 a 9 turmas, que correspondem a um número de alunos que ultrapassa largamente a centena e sempre associada ao desempenho de outros cargos. Não faço esta alusão ao contexto da investigação e da escrita do livro para me lamuriar. Porque estranhamente ou não, o ato de investigar na área da história é pessoalmente um ato que me satisfaz intelectualmente. Julgo ter compreendido uma situação que me intrigava quando frequentava a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tinha um colega que habitualmente dizia: “hoje estou a sentir-me fatigado vou para casa fazer uma tradução de latim”. Eu só tive uma breve introdução ao latim, mas realizar traduções de latim para português era para mim torturante. Mas se eu vos dizer que hoje estou cansado e vou para casa ler jornais do século XIX, estarei a falar honestamente, porque é uma atividade de pesquisa que verdadeiramente me agrada.
Um historiador francês afirmou que quando estamos a investigar não sentimos o peso dos dias. Porque, na realidade, a investigação na área historiográfica tem algo de detetivesco. No fundo, é como escrever um romance policial do fim para o início. Já sabemos o que aconteceu, mas vamos procurar compreender por que motivo ou motivos é que sucedeu assim e não de outra forma.
E esta característica da descoberta, da busca da compreensão das causas que estão na origem de um determinado acontecimento, despertou em mim o gosto pela investigação na área da ciência histórica. Ocasionalmente vivem-se pequenas alegrias no silêncio de um arquivo, de uma biblioteca ou na solidão do nosso escritório. Quando se descobre a resposta para uma questão que ainda não tínhamos compreendido e que, naquele momento, compreendemos ou vivemos a ilusão de ter compreendido. Porque a verdade na ciência da História é sempre muito relativa e estamos verdadeiramente perante o mito de Penélope que durante o dia tece o sudário e que durante a noite o desfaz.
A investigação em que se baseia este livro incidiu sobre a imprensa ilustrada oitocentista. É uma fonte para a história de uma época à qual já dedico alguma atenção desde 1991/1992. Quando me preparava para escrever a dissertação de licenciatura no seminário de História Contemporânea estava predisposto a estudar as relações que se estabelecem entre a Literatura e a História. Mais precisamente, procurava compreender a ficção histórica e as imagens do passado que se constroem nessas narrativas. Um dos primeiros problemas com o que o aluno de ciências humanas se debate é o de limitar o tema, para que seja possível apresentar um texto coerente e obedecendo a exigentes critérios académicos, em poucos meses. E, nesse momento, tracei o plano de estudar os textos de ficção histórica publicados no jornal O Panorama (1837-1868). Existia uma coleção deste periódico na Sala Joaquim de Carvalho na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e a orientadora da tese, a Professora Maria Manuela Tavares Ribeiro, a quem devo o convite para a publicação do presente estudo, que também radica no seu magistério e orientação inicial, requisitou esses volumes para eu os poder ter em casa durante alguns meses. Dessa forma não estava sujeito às limitações dos horários das bibliotecas. Foi durante esse estudo que me apercebi das potencialidades destas publicações para nos ajudarem a compreender uma época da História de Portugal, o complexo movimento cultural designado de “romantismo”.
Posteriormente realizei vários estudos nesta área até que no mestrado de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, dirigido pela Professora Lurdes Craveiro e com a orientação da tese de mestrado pelo Professora Pato de Macedo, considerei interessante explorar o conceito de património arquitetónico e artístico na imprensa ilustrada. Surgiu a oportunidade de estudar o semanário Archivo Pittoresco, que José-Augusto França considera a revista mais característica do período romântico-liberal português.
Já foi com o decorrer da investigação que me fui apercebendo que na escolha deste assunto se entrelaçavam várias linhas temáticas que tinham como ponto de encontro a cultura portuguesa do século XIX. A história da imprensa, da gravura em madeira, da noção de património e dos primeiros estudos científicos na área da historiografia da arte com a definição de uma terminologia específica e de conceitos estilísticos.
O interessante deste projeto de publicação de jornais ilustrados radica no seu objetivo iluminista de democratizar a instrução no período histórico do triunfo da monarquia constitucional e em que se pretende construir o cidadão que vem substituir o súbdito do período absolutista. No fundo, estas publicações funcionavam como um mecanismo compensatório relativamente a um Estado que ainda estava incipiente na área da instrução. A intelectualidade romântica assume esta tarefa de derramar a civilização num país em que a taxa de analfabetismo era superior a 80%.
A divulgação do património arquitetónico e artístico, sustentada pela multiplicação visual dos monumentos e objetos artísticos nas suas páginas, pretendia ilustrar textos que apresentam diferentes níveis de profundidade científica e apoiam o leitor no conhecimento desse património, apesar de também condicionarem a sua leitura de acordo com uma perspetiva ideológica e cultural definida no contexto do romantismo português. É possível comprovar a valorização da arte gótica e manuelina, sempre associada pela sensibilidade romântica à idiossincrasia nacional municipalista e, de uma forma geral, a crítica aos estilos renascentista e pós-renascença, identificados com a influência estrangeira e o triunfo das monarquias absolutas. Os monumentos e outros objetos artísticos são perspetivados como padrões comemorativos de uma história nacional gloriosa, testemunhos de feitos populares que preservam a identidade nacional. É este o discurso predominante nos textos sobre esta temática publicados no Archivo Pittoresco, onde se observa o comprometimento do intelectual com uma missão patriótica, na esteira da teorização herculaniana, de divulgação e proteção do património.
Penso que a escassa investigação da história da gravura está relacionada com o facto de lhe ter sido atribuído um carácter obreiro, enquadrado no âmbito da indústria tipográfica, a este tipo de produção artística. A maioria dos exemplares são obras coletivas com a intervenção conjunta de um delineador e de um gravador. Frequentemente o delineador limita-se à reprodução de uma imagem que já existe, depreciando a vertente criativa do ato artístico. No caso do gravador é lhe atribuída a função mecânica de traduzir um trabalho de outrem. Esta perspetiva, que considero redutora, esteve na origem de alguma marginalização destas produções artísticas pela historiografia da arte. Na realidade, ultrapassando a qualidade técnica, subsiste em muitas gravuras um aspecto inventivo e original paralelo a uma produção imagética meramente reprodutora. A gravura situa-se assim num relativo limbo por figurar na charneira entre a simples técnica de reprodução e a obra de arte.
Não quero abusar da vossa paciência, mas o tema parece-me tão interessante que por vezes dou por mim a falar deste assunto com um desconhecido que está sentado ao meu lado no autocarro.
Dediquei este livro às minhas filhas, Madalena e Constança e à minha mulher, Lia, com quem partilho uma viagem que se prolonga por vinte e cinco anos. O livro deve muito ao seu encorajamento diário e à sua cumplicidade. Mas não é necessário agradecer-lhe com palavras, primeiro porque nunca serão suficientes e depois porque basta um encontro do olhar para sabermos o que sentimos mutuamente.
Termino agradecendo novamente a presença de todos.
António Manuel Ribeiro

António Manuel Ribeiro

António Manuel Ribeiro

António Manuel Ribeiro

13/12/2014

Lançamento do livro: O Museu de Imagens na Imprensa do Romantismo

No dia 5 de dezembro foi realizada, no auditório da Escola Básica Dr. António Chora Barroso, a sessão de lançamento do livro O Museu de Imagens na Imprensa do Romantismo, da autoria do professor de História desta escola, António Manuel Ribeiro, inserida na semana da Feira do Livro do Agrupamento de Escolas Artur Gonçalves.
Presidiram a esta iniciativa a Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Torres Novas, Dr.ª Elvira Sequeira e o Diretor do Agrupamento, professor Acácio Neto.
Os alunos da turma F do 10.º ano do Curso Profissional de Multimédia, da Escola Secundária Artur Gonçalves, orientados pela professora Sílvia Filipe, apresentaram uma animação multimédia com base nos textos e imagens do livro.
Carlos Rodarte Veloso, docente da unidade departamental de Arqueologia, Conservação e Restauro e Património do Instituto Politécnico de Tomar apresentou o livro. Salientou que esta obra, O Museu de Imagens na Imprensa do Romantismo, ilustra o momento em que a imprensa de cariz científico, literário e artístico de meados do século XIX procura sensibilizar a população para o nosso património artístico, através da publicação de imagens e textos sobre monumentos e outras obras de arte nacionais. Esse é o momento em que as ideias liberais procuram educar o povo no amor pela arte, ao mesmo tempo em que se estabelecem critérios estilísticos para a sua classificação e se defendem princípios de conservação e restauro até aí inexistentes.
O autor do livro, na intervenção que encerrou esta sessão, agradeceu o empenhamento de um conjunto de alunos e colegas que tornaram possível esta atividade. Referiu que na investigação que deu origem a este livro se cruzaram várias linhas temáticas relacionadas com a cultura portuguesa do século XIX: a história da imprensa, da gravura em madeira, da noção de património e dos primeiros estudos científicos na área da historiografia da arte com a definição de uma terminologia específica e de conceitos estilísticos. O interessante no projeto destes jornais ilustrados radica no objetivo iluminista de democratizar a instrução no período do triunfo da monarquia constitucional e em que se pretende construir o cidadão que vem substituir o súbdito do período absolutista. A multiplicação visual dos monumentos e objetos artísticos nas páginas destes jornais pretendia ilustrar textos que apresentam diferentes níveis de profundidade científica e apoiam o leitor no conhecimento desse património, apesar de também condicionarem a sua leitura de acordo com uma perspetiva ideológica e cultural definida no contexto do romantismo português.

António Manuel Ribeiro
Estão presentes na imagem (da esquerda para a direita): o autor do livro, António Manuel Ribeiro; o Professor do Instituto Politécnico de Tomar, Carlos Rodarte Veloso, o Diretor do Agrupamento de Escolas Artur Gonçalves, Acácio Neto e a Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Torres Novas, Elvira Sequeira.

António Manuel Ribeiro

António Manuel Ribeiro

António Manuel Ribeiro

19/11/2014

Atlas de Gazioso Benincasa (1468)

O raro atlas de Gazioso Benincasa (1400-1482) com ligação aos Descobrimentos portugueses foi leiloado nesta quarta-feira na Christie’s de Londres mas não houve nenhum comprador interessado. A base de licitação do atlas era de 1,8 milhões de euros.
É um dos 58 atlas que existem no mundo datados do século XV, um dos três em mãos privadas. Uma peça extremamente rara. É um dos poucos atlas da época em que vemos os Descobrimentos portugueses em África. Desenhado à mão pelo italiano Gazioso Benincasa, um dos mais notáveis cartógrafos do século XV, há vários detalhes que fazem deste atlas da Europa e de África, de 1468, uma peça histórica e um dos escassos relatos da exploração portuguesa que chegaram até hoje, além de conter o mapa individual mais antigo da Irlanda, dando-lhe um destaque que até então não tinha.
Cartografia dos Descobrimentos
Atlas de Gazioso Benincasa (1468)

14/11/2014

As jóias que vinham na carreira da Índia

As jóias podem ser como as pessoas. Algumas, falam imediatamente connosco, apresentam-se sem rodeios - sou chinesa ou indiana ou portuguesa, tenho tantos anos, andei por aqui e por ali. Outras, requerem empenho, uma abordagem mais insistente, e nas respostas que dão, tanto parecem dizer uma coisa como outra, até que poderão acabar por admitir: nasci na Índia mas cresci na China e acabei por vir para Portugal. O comissário da exposição Jóias da Carreira da Índia, Hugo Miguel Crespo, teve de dedicar muito do seu tempo a este diálogo. Algumas das 200 peças que a partir de hoje estão expostas no Museu do Oriente não lhe facilitaram a tarefa. A principal dificuldade provém do próprio ponto de partida: “Dar a conhecer um património artístico único, de fusão, entre a Europa e o Oriente”. “É muito difícil explicar porque são peças que não são óbvias do ponto de vista estilístico... É preciso fazer muitas perguntas.”
A Carreira da Índia começou logo a seguir à descoberta do caminho marítimo para a Índia, em 1498, e durou até ao século XIX. Uma vez por ano, fazia a ligação entre Lisboa e os portos do Oriente (Goa, Cochim e por vezes Malaca). “Apenas quatro anos após o feito de Vasco da Gama, Lisboa via com os seus olhos até que ponto eram verdadeiras as descrições de Marco Polo, com as naus trazendo até à Europa, não só as cobiçadas especiarias, mas todo um mundo de mercadorias e objectos raros, muitos nunca antes vistos”, escreve no catálogo Nuno Vassallo e Silva, coordenador científico da exposição e director-geral do Património Cultural. “Nenhuma terá contudo marcado mais o imaginário colectivo, mesmo que raríssimos as tivessem conhecido de perto, do que as pérolas, as gemas e outras mercadorias valiosas.”
O universo das jóias é aqui ampliado para a ourivesaria. Se temos colares, pendentes, pulseiras, também há adagas, taças, caixas.... A exposição começa com o núcleo “Os portugueses e as jóias da Ásia”, onde, entre outros objectos, se podem ver retratos (sobretudo reproduções) de pessoas ligadas à corte portuguesa, porque, “muitas vezes, o único testemunho que fica das peças é o testemunho visual”, explica Hugo Miguel Crespo. “A joalharia é das coisas mais difíceis de estudar do ponto de vista histórico, porque com o passar das modas as jóias são alteradas e as gemas relapidadas.” Mas através das imagens, fica-se com “uma ideia do tipo de produtos, de gemas, que pela mão dos portugueses começaram a chegar à Europa numa quantidade antes impensável.” Por exemplo, o quadro de Catarina de Bragança (1638-1705), rainha de Inglaterra, da autoria de John Riley. Podemos ver uma fiada de pérolas brancas, grandes e calibradas, no seu pescoço, brincos de pérolas pêra, pérolas a adornar o cabelo. Não é por acaso: o dote pago por Portugal pelo seu casamento foi a cidade de Bombaim, que era, lembra o comissário, o principal centro de irradiação das pérolas. “As pérolas eram as pedras mais valiosas do planeta no século XVI, XVII... Esta fiada valia tanto ou mais que uma rua inteira ou mesmo um bairro de Lisboa.”
Percorrendo a exposição é possível ver de que forma os modelos circularam em ambas as direcções. O comissário aponta para um pequeno cofre francês do século XVI em couro e ferro. “Os portugueses levavam este tipo de cofres para o Oriente e depois eram copiados com os materiais autóctones”. É assim que mesmo ao seu lado está um outro produzido em Guzarate, no Norte da Índia, em tartaruga e com montagens em prata, muito provavelmente feitas em Goa, também no século XVI. E seguem-se várias variações. Muitas destas peças têm funções civis, outras religiosas. “Sempre que se erigia uma capela tinha de se levar uma parafernália de objectos, que serviam como modelos para outros objectos que depois são feitos por artistas locais.” A réplica é mais um factor que por vezes contribui para complicar a geografia da peça. E aqui, como ainda agora acontece, os chineses eram exímios. “Copiam com uma perfeição absolutamente extraordinária”, afirma Hugo Miguel Crespo. “Têm uma cultura de produção para exportação desde o período medieval, até antes, com a Rota da Seda. Têm que responder aos mercados, ao cliente.” Já os indianos denunciavam mais a sua origem.
Algumas peças obrigaram o comissário a usar o microscópio electrónico de varrimento, que “permite ampliações muito grandes e portanto dá para ver o tipo de riscos e que mão é que os produziu”. “Se a peça não nos diz imediatamente que é goesa, ou chinesa ou filipina temos de fazer o interrogatório científico, técnico, e isso nunca foi feito para estas peças de cariz luso-oriental e muito raramente foi feito para peças de ourivesaria europeia, portuguesa.” Crespo aponta para uma santa mártire em prata. “O tipo de cinzelado visto microscopicmante é igual, ou muito semelhante, ao de outras peças indianas...”. Esta peça “absolutamente única” tem outras formas de comunicar a sua origem. “Se observarmos bem, o tipo de construção facial, o tipo de orelhas, remete para os ícones hindus. Encontro esculturas em metal em Goa com o mesmo tipo de figuração, com o mesmo tipo de articulação dos braços. Esta peça só pode ter sido produzida em Goa.” Goa tornou-se “um verdadeiro empório de comércio e produção de bens de luxo a uma escala mundial”, escreve Vassallo e Silva. Esta “globalização” vai fazer com que algumas peças passem por várias mãos até assumirem a forma final – e vai também baralhar os historiadores sobre as origens de muitas das peças que chegaram até nós. Em muitos casos, é preciso continuar a perguntar: de onde vens?
Cofre de Goa
Cofre, provavelmente Goa, Índia, séc. XVI (segunda metade); filigrana de prata dourada

Contador Karimnagar
Contador, Karimnagar, Índia, séc. XVII (finais); prata, prata dourada e filigrana de prata

Taça de Decão
Taça, provavelmente Decão, Índia, séc. XVII ou posterior; Ornamento de turbante (sarpech), Índia, séc. XIX; Caixa, provavelmente Decão, séc. XVII ou posterior; Caixa, provavelmente Decão, séc. XVII ou posterior

13/11/2014

Apresentação do livro "O Museu de Imagens na Imprensa do Romantismo"

Convite
O Diretor do Agrupamento de Escolas Artur Gonçalves
tem o prazer de convidar V. Ex.ª
para o lançamento da obra 
O Museu de Imagens na Imprensa do Romantismo
da autoria de António Manuel Ribeiro.
A sessão terá lugar no dia 5 de dezembro, às 18 horas,
no auditório da Escola Básica Dr. António Chora Barroso (Riachos),
estando a apresentação a cargo do
Professor Carlos José de Almeida Veloso
Autor: António Manuel Ribeiro
ISBN: 978-989-26-0730-6
Língua: Portuguesa
Editora: Imprensa da Universidade de Coimbra
Edição: 1.ª
Data: Setembro 2014
Preço: 13,50 euros
Dimensões: 230 mm x 160 mm
N.º Páginas: 258

10/11/2014

Portugal deve pagar indemnizações pela escravatura?

Texto de JOANA GORJÃO HENRIQUES
Público 09/11/2014
É  um tema que tem vindo a debate regularmente, mas de que pouco se fala em Portugal. Devem os países que participaram na escravatura pagar indemnizações? Quem o deve fazer, quem deve ser indemnizado?
A organização Comunidade das Caraíbas (Caricom) reuniu-se na conferência da Comissão de Compensações/Reparações e incluiu Portugal na lista dos países europeus aos quais querem exigir indemnizações. Chegaram, na altura, a um programa de dez pontos que consideram essenciais para o processo de reparações: passa pelo pedido de desculpas formal, apoio ao repatriamento para África, criação de programas de desenvolvimento para indígenas, criação de instituições culturais, erradicação da iliteracia ou cancelamento das dívidas dos países africanos. A Caricom voltou a reunir-se em Antígua e Barbuda numa segunda edição da conferência e voltou a fazer as mesmas reivindicações. As negociações continuam e estão agora nas mãos do comité liderado pelo primeiro-ministro de Barbados, Hon Frendel Sturat, diz Verene Shepherd, presidente da Comissão Nacional para as Reparações da Jamaica e uma das três vice-presidentes da Comissão de Compensações. Apesar de estar incluído na lista, Portugal ainda não terá tido uma abordagem formal da parte da Caricom, pelo menos que Shepherd saiba. Os países da Caricom são Antígua e Barbuda, Baamas, Barbados, Belize, Dominica, Granada, Guiana, Haiti, Jamaica, Montserrat, Santa Lúcia, São Cristóvão e Neves, São Vicente e Granadinas, Suriname e Trindade e Tobago. Além de Portugal, são pedidas indemnizações a Espanha, Reino Unido, França, Holanda, Dinamarca ou Suécia. O próximo passo da Caricom será o envio de uma carta aos governos destes países europeus e uma terceira conferência com a Universidade de Essex em data a definir, mas que esperam ser em 2015, revela Shepherd. Assim, a revindicação não vai ficar por aqui. “A escravatura e o comércio de escravos foram um crime contra a humanidade”, diz a também professora de História Social. “Houve uma política de genocídio deliberado contra os indígenas das Caraíbas. Aqueles que cometeram crimes contra a humanidade ou que se envolveram em actos de genocídio devem primeiro pedir desculpas e depois integrar um programa de justiça reparatória. Não há limite estatutário para um crime contra a humanidade e portanto os países europeus colonizadores nas Caraíbas e na América Latina devem responder por isso. A reparação é uma questão de justiça.”
Nesta resposta, Shepherd aborda vários pontos polémicos que têm provocado acesos debates entre quem defende e quem é contra as reparações: é a escravatura um crime contra a humanidade? Pode ser considerada genocídio? Devem os governantes dos países comerciantes de escravos pagar hoje por um crime cometido até há dois séculos? O que há a reparar e como? “No mínimo, aquilo de que precisamos é de maior transparência sobre quem beneficiou da escravatura e quanto”, diz o economista francês Thomas Piketty. “Isto implica a abertura dos arquivos públicos e privados e a criação de museus”, acrescenta. Piketty, que em 2013 escreveu sobre a escravatura na sua coluna de opinião no Libération, defendendo “uma reparação pela transparência”, é a favor, “em alguns casos”, das “reparações directas e da transferência de bens”. Por exemplo, através da “reforma agrária em algumas antigas ilhas escravas como Reunião, Martinica ou Guadalupe, no caso francês”, ilhas que têm altos níveis de “desigualdade entre descendentes de escravos e descendentes de donos de escravos”. “A dimensão destes casos ainda está por saber”, conclui o perito em concentração e distribuição de riqueza.
Quanto renderam e valiam os 12 milhões de escravos que se calcula terem atravessado o Atlântico não se sabe. Mas há dados sobre as indemnizações “ao contrário”, como o valor pago pelo Estado britânico aos donos de escravos, quando a Inglaterra aboliu a escravatura em 1833: 20 milhões de libras (25,5 milhões de euros). Isto é um dado relevante para uma discussão sobre as compensações, sublinha o britânico Nick Draper, autor de livros como Slave Compensation Records, The Price of Emancipation: Slave-Ownership, Compensation, Capitalism and Slave Ownership, ou British Society at the End of Slavery. “Mostra que os donos de escravos foram indemnizados, enquanto os escravos não receberam nada — hoje podemos dizer que a indemnização foi para as pessoas erradas”. Nick Draper é um dos investigadores associados do projecto Legacies of British Slave-Ownership, da University City of London, que disponibiliza online uma base de dados dos britânicos envolvidos no comércio de escravos — mas não toma posição sobre o tema das compensações. “Esses 20 milhões representavam entre 40% e 45% do valor das pessoas escravizadas”, acrescenta. Quanto vale isso hoje? “Depende do que se mede na inflação, qual o preço do pão agora e qual o preço do pão na altura: os 20 milhões da altura equivalem a 1,6/1,7 mil milhões de libras hoje. Se pensarmos em termos de salários e da média, esse número é dez vezes mais — seria 16/17 mil milhões de libras. E se pensarmos em termos de PIB e dívida pública os números ainda aumentam mais".
Ser a favor ou não das reparações é uma questão que não tem uma resposta directa, nem simples. “O mundo hoje reflecte o que fizemos colectivamente como europeus há 200 anos, e uma das coisas que fizemos foi contribuir para o não desenvolvimento das Caraíbas”, reconhece Draper. “Sinto vontade de voltar atrás e tentar abordar algumas das heranças da escravatura? Claro. O programa da Caricom é sobre transferência de pagamentos da Europa para as Caraíbas. Não lida com a questão das diásporas no resto do mundo. A questão de como é extraordinariamente difícil, mas ainda nem estamos lá — estamos a debater o princípio. O resto é detalhe.” Independentemente de tudo, o primeiro passo deve ser o reconhecimento da história britânica, acrescenta. “A identidade britânica está muito ligada à abolição e isso é importante, mas tende a minimizar a escravatura e o comércio de escravos. Os primeiros passos no Reino Unido são reconhecer, colectivamente, que a nossa história é marcada pela abolição, mas também pela escravatura.”
Em 2009, um parque de estacionamento estava a ser construído em Lagos, junto à Cerca Nova, no Vale da Gafaria, quando foram encontrados 150 esqueletos. Tratava-se de um cemitério de escravos africanos do século XV, o mais antigo conhecido no mundo e o único na Europa, segundo peritos.
Com a descoberta, o Comité Português do projecto UNESCO A Rota do Escravo propôs a criação do Museu da Escravatura, já que este achado “impunha uma atenção e uma preservação adequada do sítio”. Foi desenhado um pré-projecto de museu, com três núcleos — o mercado do escravo, um memorial no local do cemitério e um centro de estudos sobre a escravatura —, aprovado pela autarquia em 2011. Hoje, no local está um minigolfe, uma obra que teve parecer favorável do Igespar (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico) em Dezembro de 2011, segundo a Câmara Municipal de Lagos. Diz a vereadora da câmara Fernanda Afonso que “o executivo continua determinado a projectar toda a temática que envolve a descoberta do cemitério, bem como o Museu da Escravatura”. Mas para Isabel Castro Henriques, historiadora especialista em escravatura, e presidente do comité, se a autarquia se tem preocupado com o museu, “já no caso do cemitério parece interessar -se mais por preservar o parking e o minigolfe”. Isabel Castro Henriques conta este episódio para ilustrar o desinteresse que existe em Portugal pelo tema da escravatura, algo que começa no poder público. Se um achado arqueológico desta importância não gera interesse, então falar de reparações é um tema ainda mais obscuro. “A escravatura não é considerada uma questão que interesse à sociedade. Continua a haver uma desvalorização dos africanos".
Porque é que não houve em Portugal um debate sério e aprofundado sobre o envolvimento do país no tráfico de escravos e na escravatura?, pergunta o historiador Miguel Bandeira Jerónimo, que nota uma “reserva colectiva em abordar inúmeros aspectos relativos ao nosso passado colonial”, aos quais chama “lutos inacabados”, que têm sido sujeitos a todo o tipo de mistificações. Dá como exemplo negligenciar-se o facto de não terem existido movimentos abolicionistas “com um mínimo de importância” no Portugal de 1800, e ignorar-se, sobretudo fora da academia, a existência da escravatura e de “condições análogas à escravatura” no “terceiro império colonial português” (1822-1975). O trabalho forçado só é legalmente abolido em 1962, diz. “Do mesmo modo, a história do envolvimento do Estado português no tráfico de escravos e na escravatura é um assunto relativamente ocultado.” Por outro lado, como lembra Isabel Castro Henriques, é comum referir-se que Portugal foi o primeiro país a abolir a escravatura, pois o Marquês de Pombal, em 1761, decreta-a, mas “fá-lo para evitar que os escravos venham para Portugal, sendo desviados do Brasil, onde são essenciais ao desenvolvimento económico”. Este não é um tema de debate, porque continua a predominar um olhar luso-tropicalista, um discurso oficial atenuante, analisa Rui Estrela, activista da Plataforma Gueto, uma associação contra o racismo e racismo institucional. Licenciado em Ciência Política, diz: “Portugal foi o primeiro país a levar a cabo esta engenharia financeira — porque as pessoas foram tratadas como activos financeiros — e é o único país onde não se debate esta questão.”
Se em Portugal o debate não existe fora da academia, nos países colonizados e emissores de escravos comercializados por Portugal o tema também não tem estado em cima da mesa. Miguel Bandeira Jerónimo lembra as palavras do representante angolano Georges Chikoti (hoje ministro das Relações Exteriores) na Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Relacionadas em Durban, em 2001, como um marco, ao dizer que era “necessário que a conferência identificasse a escravatura como crime contra a humanidade e que reparações têm de ser feitas às vítimas dessa tragédia”. O envolvimento dos portugueses, os “pioneiros do tráfico transatlântico de escravos”, devia ser notado, acrescentou.
Esta não é, porém, uma posição consensual. Em Luanda há o Museu Nacional da Escravatura desde os anos 1970, situado numa capela do século XVII onde se baptizavam os escravos antes de embarcarem. O historiador angolano Patrício Batsikama refere-o para dizer que serve de memória aos escravos que partiram de Angola. Porém, há muito por saber no estudo da escravatura, que “ainda não é exaustivo”, há apenas “algumas teses pouco sólidas para especificar a desumanização do angolano fora de Angola”.
Esse conhecimento é essencial antes de se “pensar no que se deve reparar”. “Se colocarmos na cabeça que alguém tem de reparar, estamos a sofrer um complexo de inferioridade.” O autor de O Reino do Kôngo e a Sua Origem Meridional defende que “talvez” as reparações devam começar pelos museus internacionais no Reino Unido, Portugal, Estados Unidos devolveram as peças “que foram roubadas” a países africanos como Angola. “Não é a minha geração nem a geração vindoura que vai saber o que de facto foi estragado com os escravos angolanos e que é preciso reparar.”
A partir da instituição que dirige, a Escola Portuguesa em São Tomé, a historiadora Isaura Carvalho diz que “não faz sentido pedir reparações a estas gerações, cujos dirigentes não participaram directamente” na escravatura. “Há coisas que são irreparáveis: pior do que os danos materiais foram os danos a nível da nossa auto-estima, das mentalidades e da capacidade de decidirmos por nós”, acrescenta. Isaura Carvalho lembra que a seguir à escravatura veio o domínio colonial, ou seja, foram séculos em que o povo são-tomense foi impedido de pensar, de ser livre, de decidir, e isso é algo interiorizado, que passa de geração em geração. “Ainda hoje há dificuldade de dirigentes africanos se afirmarem junto de dirigentes europeus. São conhecidos pelos corruptos que não gerem bem as finanças e não conseguem tomar em mãos as decisões do país, que continuam a depender do exterior.” Resume, partilhando um ponto de vista parecido com o de Batsikama, que a reparação, “nos moldes em que tem estado a ser vista, cria mais uma forma de dependência”. “Porque vamos continuar a depender desses países para resolver os nossos problemas. [É dizer]: ‘Okay, eles estiveram a explorar-nos durante anos, eles que tratem de nós.’ E voltamos à menoridade. Sabemos que estamos a sofrer as consequências do passado, mas temos que ter uma outra atitude. Se continuarmos com o discurso dos coitadinhos, não vamos lá, é uma boa facada na nossa auto-estima outra vez.”
O historiador Luís António Covane, que foi vice-ministro da Cultura (2000-2004), vice-ministro da Educação e Cultura (2005-2009) e é reitor da Universidade Nachingwea desde 2011 (uma instituição privada da Frelimo), lembra que no estudo da história de Moçambique se classifica a exploração mercantil portuguesa em três fases: a fase do ouro, a do marfim e a dos escravos. “A nossa escravatura culminou com um processo de colonização e, em vez de se mandarem as pessoas para fora, elas passaram a ser exploradas dentro do seu próprio território: o trabalho forçado e outro tipo de escravatura interna, pessoas que trabalhavam sem salário, violência das exportações de pessoas para as plantações, para as minas de ouro e diamante na África do Sul e principalmente aqui dentro.” O sistema colonial português, principalmente durante a fase do fascismo e do nacionalismo económico que impôs medidas para a produção de matérias-primas nas colónias, foi alimentado com este esquema, acrescenta. Pensar em reparações exige fazer contas. E estas, diz, “serão as contas mais difíceis que a humanidade será obrigada a fazer”: “Quanto custa uma vida? Quanto custa uma grávida? Quanto custa um homem que era chefe do seu povo e foi exportado? Abrangeu imperadores, príncipes, rainhas, soldados, generais que foram deportados de forma indiscriminada. Estas contas entram naquela página que são os erros cometidos no passado e devemos fazer tudo para que não se repita.”
As contas seriam difíceis de fazer também por uma questão territorial, lembra o historiador guineense a viver em Portugal Julião Sousa. “Não creio que haja lugar a indemnização de ninguém: a Guiné era uma grande extensão de território que foi variando ao longo do tempo, não tinha limites definidos. Se houvesse uma indemnização, Portugal iria entregar isso a quem? Os países que existem agora ao longo da costa africana não existiam enquanto países com fronteira definida… Teria de pagar a quem? À Guiné actual? E o Mali? E o Gana? E o Senegal?”
Com uma realidade diferente de países como a Guiné onde já existia uma população residente, Cabo Verde foi sendo habitado por população trazida de outros países africanos e por portugueses brancos. André Corsino Tolentino, embaixador cabo-verdiano, sublinha que “a escravatura se deu de forma diferente” neste arquipélago. “Em 1466 houve os primeiros núcleos destinados à América do Sul e Central. Eram iniciados em Cabo Verde até para acrescentar valor comercial. O escravo boçal, considerado inferior, era usado para ser ladinizado — ou seja, para ensinar a cultura ocidental, fazer a conversão à religião católica, ensinar as artes de servir. Um escravo ladino valia mais do que um escravo boçal. Depois de iniciado em actividades agrícolas, artesanais, etc., o escravo continua a ser exportado e reexportado para o Brasil e Caraíbas.” Mas Tolentino toca num ponto polémico que é usado por quem é contra as reparações: o facto de os próprios africanos terem participado no comércio de escravos. Diz: “Os escravocratas foram nacionais e estrangeiros.”
É Miguel Bandeira Jerónimo quem recorda a posição do académico afro-americano de Harvard Henry Gates num artigo escrito em 2010 para o New York Times, sustentada nos trabalhos dos historiadores John Thornton e Linda Heywood (centrados na história colonial, sobretudo relativa ao Congo e a Angola): só uma “complexa cooperação comercial entre elites africanas e comerciantes e agentes comerciais europeus” permitiu o tráfico transatlântico de escravos com a dimensão que teve. Uma teoria que Henry Gates continua a defender. Bandeira Jerónimo comenta: “Esta é uma ‘verdade triste’ [expressão de Gates] que agrada pouco a cada um dos lados da barricada. Mais, torna a resposta prática à questão das reparações incómoda. Face ao que sabemos com rigor, quem deve pagar?”
O americano Ron Daniels, do Institute of the Black World 21st Century (IBW), responde indirectamente a Gates: “A questão é: quem iniciou e quem beneficiou? Não foram os africanos.” Rui Estrela defende que a participação dos africanos não retira o cunho racial à questão. “É como discutir se um polícia negro pode ser racista — sim, pode. Esse foi, aliás, o trabalho de Frantz Fanon sobre as mentalidades coloniais, sobre quanto tempo depois perdura a mentalidade servilista e colonialista."
Em casos como o Brasil, por exemplo, a questão das reparações torna-se mais complexa, como faz notar a historiadora Ana Lúcia Araújo, professora na Howard University, em Washington: “Seria complicado pedir a Portugal e não ao Brasil, porque sabemos que os brasileiros nascidos no Brasil estavam envolvidos no tráfico atlântico de escravos desde o começo — então Portugal e Brasil eram parte da mesma questão.” O que tem existido no Brasil são várias iniciativas “com intento de reparar as atrocidades [vividas] na escravatura”, como as medidas de acção afirmativas. “No Brasil, mais de metade da população é afro-descendente, mais de 100 milhões de habitantes, e a única maneira de reparar os erros do passado é através do aprofundamento de medidas que já estão sendo desenvolvidas”, como as acções afirmativas, com cotas raciais nas universidades. “A escravidão durou praticamente 400 anos no Brasil, todas as esferas da sociedade estavam envolvidas. Fica difícil: para quem pedir e quem deve receber?” Isabel Castro Henriques lembra que dar reparações financeiras implicava “ir a todos os países de onde eram originários os negreiros”. “E não estou a desculpabilizar os portugueses de quem sou muito crítica e que não têm feito nada.” “Mas como identificá-los? E todos os outros crimes praticados ao longo da história ?”
Apesar de não estarem directamente no programa de dez pontos, as compensações financeiras têm sido referidas em algumas reivindicações. Em 1999, a Comissão Africana Mundial para as Reparações e Repatriamento exigia que o Ocidente pagasse cerca de 777 triliões de dólares a África.
Argumentos: a desigualdade entre países africanos e caraíbas, por um lado, e ocidentais, por outro, e os diferentes níveis de desenvolvimento são consequência da escravatura. Nos Estados Unidos, o debate já foi mais aceso, mas quem advoga reparações refere igualmente as desigualdades sociais entre brancos e afro-americanos e a necessidade de compensar as comunidades negras no país. É o caso de Adjoa A. Aiyetoro, activista, jurista, professora na University of Arkansas, que escreveu um artigo em que considera que as reparações aos afro-descendentes americanos são essenciais à democracia. “Continua a existir discriminação até hoje”. Aiyetoro, que fez parte da National Coalition of Blacks for Reparations in America, explica ainda que para colocar as vozes dos afro-americanos ao mesmo nível das dos outros americanos é preciso reparar. “As nossas vozes têm sido marginalizadas de inúmeras maneiras, desde o emprego à educação até à prisão.”
Integrado numa série que se pode traduzir como Descolonizar a Mente, 20 Questions and Answers about Reparations for Colonialism, o novo livro do activista holandês Sandrew Hira, director do International Institute for Scientific Research, faz um cálculo do valor das reparações que os países colonizadores deveriam pagar pela escravatura e pelo colonialismo. Dá um número esmagador: “O total seria 10 mil vezes o PIB de todos os países europeus, 30 triliões de dólares vezes 10 mil.” Os cálculos são feitos a partir da área dos continentes colonizados, do período de colonização, do ouro extraído das Américas, do número de escravos trazidos para as Américas, das estimativas da população indígena, do número de nascimentos, do valor à hora para seis dias de trabalho. “O impacto do colonialismo é gigante”, diz, por telefone a partir da Holanda. “Os países europeus não podem pagar isto, mas podem pensar na forma como lidam com o colonialismo. Idealmente, um dia atingem o nível de civismo dos alemães, que tiveram a atitude de dar uma indemnização às vítimas do Holocausto.” “[Foram] 70 mil milhões de dólares até agora, sem qualquer lei, pagos por uma questão de moralidade, de justiça.” No seu livro, Sandrew Hira construiu uma série de argumentos que desmontam as críticas às reparações. O mais usado é que a escravatura e o colonialismo aconteceram há muito tempo. “O meu contra-argumento é que se trata de uma questão de herança. Se o seu bisavô roubou a minha casa, a minha terra, o meu carro e se hoje nos conhecermos, o que é que vamos dizer um ao outro?” Outro argumento é que quem deve pagar a indemnização deve ser quem cometeu o crime. “Nos Estados Unidos a Al-Qaeda cometeu o crime do 11 de Setembro — foram os contribuintes americanos que pagaram reparações às famílias das vítimas e às companhias aéreas. Na Europa, as pessoas aceitam que, se abrirmos um negócio na propriedade de alguém, se deve pagar algo — os colonialistas europeus abriram muitos negócios nas terras dos colonizados sem pagar renda. Se alguém trabalha para si, deve ser remunerado por isso. Os países colonizadores puseram as pessoas a trabalhar e, não tendo pago por isso, têm hoje uma dívida para com os seus descendentes. Se for ao supermercado, paga pelo que leva, os colonizadores chegaram aos países colonizados e levaram coisas sem pagar.”
A quem pagar é sempre a questão que se coloca sobre as reparações. Hira sugere que se olhe para o modelo judeu. “No caso do colonialismo, pode começar-se a negociar com o Estado e com as organizações. Em Israel, além de dinheiro, houve também apoio a infra-estruturas, bens que vieram da Alemanha, há uma cadeia de apoios até agora e é uma questão de montar a estrutura para isso. O dinheiro foi também usado para programas que ensinavam aos alemães por que se deviam fazer reparações.”
Vantagens? “O Holocausto é considerado um crime contra a humanidade. Toda a gente no mundo sabe e leu sobre o Holocausto. No caso da escravatura a memória foi enterrada e há um silêncio em relação ao Holocausto dos negros.” A questão, para Hira, é que na Europa “ainda existe a ideia de que se fizeram muito boas coisas com o colonialismo, em vez de se assumir que foi um crime”.
Autor de várias obras sobre escravatura, João Pedro Marques descreveu como em Portugal persistiu uma forte corrente toleracionista da escravatura e uma ausência de abolicionistas, pois “temia-se geralmente que ela lesasse os interesses nacionais e equivalesse à perda das colónias”. Existia também complacência social em relação aos implicados na escravatura ilegal. “Mesmo na década de 1840, quando os governos se esforçavam por acompanhar o ritmo do abolicionismo britânico, vários indivíduos reconhecidamente implicados no comércio negreiro receberam recompensas do poder central”, escreveu. Mas João Pedro Marques “é completamente contra a ideia de reparações” pela escravatura. “A história é um tecido enorme de injustiças e horrores, [só que] não podemos aplicar retrospectivamente os nossos conceitos a épocas distanciadas de 200, 300, 400 anos”. “Não faz qualquer sentido julgar, criminalizar ou pedir indemnizações de coisas que não eram entendidas como crimes. Se fingimos que somos Deus e começamos a aplicar ao passado as nossas próprias ideias, onde é que a gente pára? Então, temos de nos começar a indemnizar todos uns aos outros. Imagine que resolvemos pedir uma indemnização aos franceses pelas invasões. Podemos dizer que foi por causa das invasões napoleónicas que a corte teve de fugir para o Brasil, etc., etc., até chegarmos à troika.” Algo completamente diferente das reparações aos judeus, defende, porque os crimes nazis eram vistos como crimes, quando foram cometidos, “enquanto aquilo que se passou com os escravos não era entendido como crime em parte nenhuma do mundo, nem na América, na Europa, em África”. Louis-Georges Tin contra-argumenta: “As pessoas que eram escravizadas consideravam-no um crime… Mais uma vez, quando se diz isso, está a dizer-se que os africanos na altura não eram seres humanos, não tinham importância e o que eles dizem não tem importância. Até entre europeus era considerado um crime; em França no século XIII, havia uma lei que dizia que a terra do reino não podia ter escravos.” Porém, João Pedro Marques defende: a ideia de abolir a escravidão de forma universal é ocidental e foram os ocidentais “que pagaram para acabar com a escravidão”.
Foi no Congresso de Viena, em 1815, que o comércio de escravos foi condenado. Em 1836 é abolido o comércio em Portugal, mas o tráfico continua clandestinamente. Na década de 1850, Sá da Bandeira decretou a abolição da escravatura e estabeleceu um prazo de 20 anos até que os libertados fossem efectivamente livres. “E portanto passaram de escravos a libertos e continuaram a trabalhar para os mesmos senhores. Só ao fim de 20 anos se tornaram livres”, contextualiza. O fim oficial da escravatura é em 1878.
Ao contrário de no Reino Unido, em Portugal não existiu qualquer indemnização. Desde 1500 que há uma consciência do crime da escravatura e isto está registado por vários estudiosos, defende, por seu lado, Rui Estrela. É com convicção que diz ser preciso discutir a legalidade do termo jurídico reparação — e “assumir que houve uma acção criminosa, é preciso pôr isto nos livros de História”. A palavra “genocídio” ou “negrocídio” deve ser usada para falar da escravatura e do comércio de escravos, afirma.
A verdade é que hoje há uma hierarquia racial herdeira do sistema esclavagista que se reflecte na hierarquia social, nota Estrela: em Portugal, a maioria das pessoas que saíram dos países colonizados por Portugal vive em guetos. “Com as questões do racismo e do racismo institucional, há uma certa continuidade. Há toda uma psicologia herdeira do sistema colonial e temos de assumi-la e travá-la. Discutir a reparação vai obrigar a discutir uma série de temas relacionados com o que Portugal é agora e com o que quer ser.”
Nascido no Haiti, o activista Louis-Georges Tin, presidente do Conseil Représentatif des Associations Noires de France (CRAN), explica que, “quando um crime é cometido, deve existir reparação” e a História tem inúmeros exemplos disso: “Muitas reparações aconteceram depois da I e II guerra mundiais; os nativos americanos tiveram reparações para o genocídio que é mais antigo do que a escravatura; o Quénia teve reparações do Reino Unido pelos mau-mau. Não há prescrição para um crime contra a humanidade e este é um exemplo.”
Por isso, primeiro devia ser feito um pedido de desculpas formal, depois devia haver indemnização para ajudar a reparar e, finalmente, quando a justiça for feita, pode existir reconciliação, afirma Ron Daniels. Quem pagaria? Nos Estados Unidos, os governos, instituições e empresas que estiveram envolvidas na escravatura. Quem recebe? “Com os afro-americanos é difícil, mas temos defendido que não interessa uma compensação individual mas a um grupo — por exemplo, um fundo para ser usado em instituições de Educação, de Saúde ou noutra estrutura comunitária.”
Embora não concorde com as reparações financeiras, Isabel Castro Henriques advoga manifestações públicas que mostrem uma consciência europeia sobre a natureza e dimensão da escravatura e do tráfico negreiro — por exemplo, acções pedagógicas, homenagens, memoriais. A criação de debates, produção cultural, tudo o que possa eliminar o que chama “silêncios envergonhados” e contribuir para “a assunção dos erros cometidos, o reconhecimento do preconceito e do racismo” seriam iniciativas a desenvolver.
Já Rui Estrela defende que parte da cooperação internacional — “que é tratada como filantropia, humanismo, solidariedade” — “poderia ser tratada como reparação jurídica”.
É também de cooperação, mas com um propósito oposto, que fala o embaixador Corsino, ao considerar que a questão das reparações deveria ser colocada “no plano da cooperação/colaboração e não da reivindicação”. Por outro lado, “uma coisa com custo zero, mas que teria um impacto simbólico muito grande seria Portugal, Grã-Bretanha, ou Bélgica, etc., reconhecer que esvaziar a região africana ou transportar os escravos do continente africano provocou os prejuízos tais e tais”.
De qualquer modo, a questão das reparações deve ser debatida, declara convictamente Rui Estrela. É verdade que em Portugal não têm aparecido, até agora, movimentos que reivindiquem activamente as reparações. O activista não sabe explicar porquê. Na geração anterior, diz, dos seus avós, o discurso “era muito feito para a questão da independência”. “Só agora, passado o capítulo da descolonização, é que há a questão de eu nascer em Portugal e de haver uma comunidade nascida em Portugal, amadurecida, com sentido de comunidade africana ou de afro-descendentes.”
Sandrew Hira e Louis-Georges Tin referem que mais cedo ou mais tarde este tema será colocado em cima da mesa dos países europeus. “Pagar as reparações custa dinheiro, mas não pagar vai custar ainda mais — muitos países africanos dizem que não querem fazer negócios com países que nos negam justiça”, diz Tin. Sandrew Hira conclui: “Os portugueses podem esperar que o tema apareça ou podem fazer como os alemães e pensar na questão da moralidade. Comecem a debater a história do colonialismo, porque senão os fantasmas irão perseguir-vos quando menos esperarem".
Imagens de escravatura
Painel de azulejos do séc. XVIII (Museu da Cidade).

Imagens de escravatura
O Chafariz d’El Rey no século XVI, de autor desconhecido.


03/11/2014

A História Partilhada. Tesouros dos Palácios Reais de Espanha - Exposição na Gulbenkian

A exposição intitula-se "A História Partilhada. Tesouros dos Palácios Reais de Espanha", e é uma iniciativa do Património Nacional de Espanha, que escolheu o Museu Gulbenkian para apresentar 140 peças de tapeçaria, pintura, armaria, escultura, mobiliário e arte sacra que nunca foram exibidas em Portugal. A única exceção é um retrato a óleo sobre madeira de D. Isabel de Portugal, pintado por Joos van Cleve, no século XVI, cedido pelo Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, para completar a narrativa de um dos núcleos da exposição. Com curadoria da responsabilidade do diretor do Museu Gulbenkian, João Castel-Branco Pereira, de Pilar García e Álvaro del Campo, a mostra foi criada privilegiando os acontecimentos históricos de Espanha partilhados com Portugal ao longo de 350 anos. "As peças mostram o sentido do gosto pelo colecionismo e o recurso aos melhores artistas da época", sublinhou João Castel-Branco, indicando que o Museu Gulbenkian escolheu 70 peças do conjunto. Através das 141 peças percorre-se um período de tempo que vai de Isabel, a Católica, rainha de Castela e Leão, e ainda de Aragão pelo casamento com Fernando II, em 1469, até à portuguesa Isabel de Bragança, rainha de Espanha por casamento com Fernando VII. A Isabel de Bragança (1797-1818), apreciadora das artes, deve-se a fundação do Museu do Prado, em Madrid, um dos museus mais visitados do mundo. Os curadores espanhóis sublinharam "o papel fundamental das mulheres da realeza no incentivo ao mecenato nas artes, em Espanha", como foi ainda o caso de Isabel, a Católica, cujo retrato, de um autor desconhecido, abre esta mostra, acompanhado por objetos que lhe pertenceram. As 140 peças vão estar no Museu Gulbenkian até 25 de janeiro de 2015, por iniciativa do Património Nacional de Espanha, instituição responsável pela preservação dos palácios ainda utilizados pela Casa Real de Espanha, alguns conventos de fundação régia e os respetivos acervos. O antigo património real de Espanha, cuja tutela e gestão aquela entidade tem a seu cargo, reúne 155 mil obras, distribuídas por 22 entidades de diferentes zonas do país. Na exposição em Lisboa, o público poderá ver o único quadro de Caravaggio (1571-1610) que existe naquela coleção, "Salomé com a cabeça de São João Batista" (1606-1607), e três pinturas de Goya, duas delas provenientes da residência pessoal do atual rei de Espanha, Filipe VI de Bourbon. De Francisco de Goya (1746-1828) podem ser vistos "Caridade de Santa Isabel de Portugal" (1816), "Fabrico de Pólvora" (1814) e "Fabrico de Balas" (1814). A exposição documenta as diferentes formas de transmissão da imagem da monarquia, enquanto instrumento ideológico de poder ou como reflexo dos gostos, vivências e ocupações da família real.
Gulbenkian
A História Partilhada. Tesouros dos Palácios Reais de Espanha

António Dacosta 1914-2014

Assinalando o centenário do nascimento de António Dacosta (1914-1990), esta exposição procura dar uma imagem de conjunto da obra deste artista juntando obras inéditas e menos conhecidas.  Combina núcleos perfeitamente demarcados no tempo, o Surrealista dos anos 40, ou os recomeços de 80, com outros em que diferentes tempos se cruzam. A exposição terá uma introdução evocativa da estação do Metro do Cais do Sodré, última obra pública de Dacosta, bem como um núcleo documental.
Amor Jacente
Amor Jacente, 1941 (óleo sobre tela - coleção particular)

A nova luz da Capela Sistina

Um novo sistema de iluminação, com 700 pontos de luz, e um novo sistema de climatização vão ajudar à melhor conservação da Capela Sistina. As mudanças custaram três milhões de euros. “Trata-se de uma luz que permite admirar a Capela Sistina em toda a sua beleza”, disse Antonio Paolucci, director dos Museus do Vaticano, citado pelo El País. O novo sistema de iluminação, formado por lâmpadas LED, permite poupanças energéticas e redução do calor. E o novo sistema de ar ajudará a diminuir a “excessiva pressão humana” sobre os frescos de Miguel Ângelo e Botticcelli, entre outros.
Renascimento
Capela Sistina

29/10/2014

Liber chronicarum, de 1493, também conhecido como Crónica de Nuremberga ou Crónica do Mundo, de Hartmann Schedel (1440-1514), no Museu Nacional de Arte Antiga

Foi descoberto na biblioteca do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, um valioso incunábulo – uma obra impressa até 1500 –, que estava até agora guardada nos fundos, sem se saber da sua existência. Um dos primeiros livros impressos da história, um dos maiores livros ilustrados da época. Liber chronicarum, de 1493, também conhecido como Crónica de Nuremberga ou Crónica do Mundo, de Hartmann Schedel (1440-1514), é a “nova” peça do museu e está disponível para consulta, mediante autorização. Foi descoberto há cerca de um mês mas só agora a novidade foi anunciada no Facebook do museu, numa publicação que somou mais de uma centena de partilhas. Impresso em Nuremberga em 1493 e com xilogravuras de Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff, Liber chronicarum chegou ao museu através do Legado Barros e Sá, o coleccionador de arte, que deixou ao MNAA em 1981 o seu espólio de mobiliário, ourivesaria, artes decorativas e livros antigos. Foi exactamente no fundo bibliográfico, que está a ser catalogado, que foi descoberto este incunábulo.  “Quando esta colecção aqui entrou, foi feito um pequeno inventário mas agora estamos a introduzir toda essa biblioteca na base de dados. O senhor tem uma colecção de livros antigos espantosa mas não estava à espera de encontrar esta pequena preciosidade”, diz Luís Montalvão, o bibliotecário responsável pela biblioteca do MNAA desde há três anos. “Os incunábulos são obras que vão desde o início da história da impressão até 1500, são os primórdios da impressão”, explica Montalvão, contando que o livro encontrado tem uma “encadernação moderna, feita nos finais do século XIX, início do século XX, e por isso até dava a impressão de que era uma edição fac-similada”. Foi quando começou a analisar a peça que percebeu o que ali estava, até porque, conta o bibliotecário, “o próprio coleccionador tinha alguns documentos sobre o livro, coleccionava com critério, sabia o que estava a comprar”. Desde que em 1981 o acervo de Barros e Sá chegou ao MNAA que várias peças foram integradas na exposição permanente, o estudo biblioteconómico, porém, que permitiria a compreensão integral do valor desta obra, só agora está a acontecer. Antes do incunábulo, já tinha sido descoberto neste arquivo a publicação Theatrum Sabaudae, que integrou recentemente a exposição Os Saboias. Reis e Mecenas (Turim 1730-1750).
Liber chronicarum, escrito em latim, conta a história do mundo em sete capítulos e apresenta mais de 1800 gravuras em madeira, que incluem mapas e panoramas de várias cidades. “Na altura foi um livro muito popular, era muitíssimo ilustrado. É uma espécie de história do mundo à seculo XV, começa com a história sagrada, Adão e Eva, o Dilúvio, etc., e depois tem muitas imagens acerca de várias cidades, personalidades, santos. É um livro lindíssimo”, diz Luís Montalvão, explicando que este é o único incunábulo do MNAA. “Existem manuscritos mais antigos, no Gabinete de Estampas e Desenhos, mas uma obra destas de 1493 não”, continua, explicando que esta obra está catalogada e digitalizado em várias bibliotecas do mundo. Na Universidade do Porto, por exemplo, existe um exemplar destes e em 2010, inclusive, a Christie’s leiloou um outro exemplar que acabou arrematado por 85,3 mil euros, um valor acima dos 44 mil euros estimados pela leiloeira.
Também a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa, que tem uma colecção de incunábulos com 1597 títulos, segundo a informação disponível no seu site, detém nos seus impressos reservados esta obra, que pode ser consultada, sob autorização, à semelhança do que acontece no MNAA. “Um incunábulo é sempre raro e neste caso é surpreendente a qualidade do livro que está num estado impecável, é preciso ver que estas eram obras feitas de uma forma muito artesanal”, diz o bibliotecário, acrescentando existirem "muitas especulações acerca das ligações entre as gravuras de Liber chronicarum e o trabalho posterior do célebre artista alemão Albrecht Dürer (1471-1528)". "Dürer terá trabalhado na oficina de Michael Wolgemut", conta.
Esta obra ficará agora  nos reservados da biblioteca do MNAA. “É um livro que obviamente vai ser usado e poderá até figurar numa das exposições que o museu faça. Está catalogado, identificado e é mais uma peça do nosso património.”
Crónica de Nuremberga
Liber chronicarum - Um incunábulo de 1493, de Hartmann Schedel (1440-1514).

Quatro pinturas sem autor nem data mostram Lisboa antes do terramoto de 1755

Uma pintura do Terreiro do Paço, uma do Rossio, outra do Mosteiro dos Jerónimos e uma quarta do Convento de Mafra. No início do ano, Álvaro Roquette e Pedro Aguiar-Branco, do Antiquário AR-PAB, compraram a um antiquário internacional – preferem não revelar nem o nome nem a nacionalidade – quatro óleos que mostram como eram estes lugares antes do terramoto de 1755. Álvaro Roquette e Pedro Aguiar-Branco não conseguiram descobrir o percurso destas obras – há quanto tempo estão longe de Portugal? São de autoria portuguesa? São perguntas que não conseguiram esclarecer no acto da compra, nem até agora. Além disso as pinturas não estão datadas nem assinadas.
Apesar de mostrarem vistas anteriores ao grande terramoto, podem ter sido pintadas posteriormente com base noutras fontes iconográficas, analisa Miguel Soromenho do Museu Nacional de Arte Antiga. O historiador de arte explica como é possível perceber que as obras têm a mesma autoria: há “afinidades no tratamentos dos céus e na definição da paleta cromática” e “semelhanças na forma de dispor as figuras na composição”. António Miranda, coordenador do Museu da Cidade, conheceu estas obras em Madrid, em Outubro de 2013. Para o responsável do museu lisboeta, as pinturas são importantes “não pela sua qualidade pictórica”, diz, mas como “documento iconográfico dos costumes e da relação das pessoas com a cidade”. Mais que novos pormenores sobre a Lisboa anterior ao terramoto de 1755, as pinturas do Antiquário AR-PAB são exemplo de como se reproduziam as vistas de uma cidade nos séculos XVIII e XIX: muitas vezes a partir de outras obras anteriores a que o artista tinha acesso – o que torna possível que representações da capital antes do sismo tenham sido pintadas quando essa cidade já não existia.
pinturas do Antiquário AR-PAB
Na análise deste óleo, Miguel Soromenho aponta a gravura do Terreiro do Paço atribuída a Zuzarte como uma muito provável fonte iconográfica. Apesar de diferirem no traço, muito mais seguro em Zuzarte, o ponto de vista sobre o Torreão do Palácio da Ribeira é o mesmo, tal como o tratamento de edifícios chave, como a Igreja de S. Francisco, na colina, e o Palácio dos Marqueses de Castelo Rodrigo, à beira-rio atrás do Torreão, ambos representados com pormenor — o que nem sempre acontece na iconografia da cidade. A principal diferença entre as duas obras é o erro de escala: o autor anónimo agiganta estes edifícios, tal como faz com o Torreão, central na pintura.

pinturas do Antiquário AR-PAB
A pintura do Rossio tem também fortes semelhanças com uma outra gravura de Zuzarte: “O ponto de vista é exactamente o mesmo, deslocando a frontaria hospitalar [Hospital de Todos-os-Santos] para a direita do quadro de forma a poder incluir, também, a fachada da 1igreja de São Domingos, um dos mais importantes templos da cidade”, escreve Miguel Soromenho. Mais uma vez as questões de perspectiva: o Convento da Graça está, na pintura, encostado ao Castelo de S. Jorge, que tem o jogo das muralhas errado, diz António Miranda. Também as dimensões do portal manuelino do Hospital de Todos-os-Santos estão alteradas: em comparação com as figuras humanas que passeiam no Rossio, ou mesmo com o Chafariz de Neptuno em primeiro plano, o portal não parece muito grande. No entanto, António Miranda lembra que este exemplar único da arquitectura manuelina era admirado por toda a Europa, não só pelo seu trabalho de escultura, mas pela também pela sua imponência – a que não é feita justiça na pintura.
pinturas do Antiquário AR-PAB
Quanto às outras duas pinturas – Mosteiro dos Jerónimos e Convento de Mafra –, “é plausível admitir que a mesma fonte [Zuzarte] tenha fornecido os exemplos”, avança Miguel Soromenho, embora não nos tenham chegado estas obras. Entre a iconografia antiga dos Jerónimos, há uma gravura anónima, datada do século XVIII, e outra de Piete van Den Berge, da segunda metade do século XVIII. Ambas têm a mesma vista sobre o mosteiro que é, de resto, a mais comum em todas as suas representações. Na pintura do Antiquário AR-PAB, no entanto, o edifício aparece demasiado próximo da margem do rio e a casa de nobres da Quinta da Praia, onde hoje está o Centro Cultural de Belém, aparece demasiado pequena. Alterar a escala dos edifícios era “uma técnica frequente quando se queria acentuar a monumentalidade de um edifício”, diz António Miranda, o que pode explicar este erro de perspectiva. O edifício do mosteiro é também, nesta representação, mais alto e tem, se comparado com a restante iconografia, mais vãos.
pinturas do Antiquário AR-PAB
A mesma perspectiva oblíqua usada para a representação do Mosteiro dos Jerónimos é usada na pintura do Convento de Mafra. O domínio desta técnica é “inábil”, escreve Miguel Soromenho, –  os vãos aparecem mais estreitos e as torres desproporcionais. É uma tentativa de dar leveza a um edifício visualmente pesado, diz Miguel Soromenho, e evita a perspectiva ortogonal da fachada, mais usada no desenho técnico, como o de Michael le Bouteaux, de 1792. O ponto de vista oblíquo idêntico ao do óleo é usado numa litografia de 1853, atribuída a J. Macphail, e que apresenta uma imagem mais realista: por exemplo, o torreão em primeiro plano esconde parte da fachada, o que por causa do mau uso da perspectiva não acontece na pintura.

22/10/2014

Os campos nazis: nunca vimos nada assim

Nunca os meus olhos viram nada assim. E já estive em muitos campos de concentração pela Europa fora; vi demasiados filmes sobre as atrocidades nazis, tantos milhares de fotografias. Nada se compara a este filme.
German Concentrations Camps Factual Survey é um documentário feito a partir do material filmado pelos exércitos britânicos, americanos e soviéticos quando libertavam os campos de extermínio. Resultando de uma encomenda feita em Abril de 1945 pelo Comando Supremo das Forças Aliadas, foi concebido primordialmente como uma vindicta pedagógica. No âmbito de um vasto programa de desnazificação da Alemanha, este seria o "filme oficial" que os vencedores iriam mostrar aos que haviam apoiado Hitler. Os seus primeiros minutos, aliás, assemelham-se a uma obra de propaganda feita por Leni Riefenstahl, exibindo a águia esmagadora e multidões na aclamação do seu Führer. German Concentrations Camps é um exercício de represália ou castigo e, sobretudo, um libelo acusatório – não por acaso, as imagens que contém seriam usadas como meio de prova em alguns julgamentos do pós-guerra. A acusação, no entanto, dirige-se não apenas à elite do III Reich mas a um povo inteiro e até, num certo sentido, à Weltanschauung (visão do mundo) germânica. É sintomático que, antes de se revelar o horror dos campos de extermínio, se mostrem paisagens idílicas dos lugares situados nas suas imediações. Montanhas, castelos e lagos, trajes campestres tradicionais. Depois, surge o cheiro. Era impossível, diz-se, que aquelas raparigas louras, que em Bergen-Belsen brincavam em prados verdejantes, ou que aqueles casais que namoriscavam nas margens de Ebensee não sentissem o odor que vinha das chaminés dos fornos crematórios. Não se pode abdicar do olfacto. Mesmo os que não quisessem ou não pudessem ver o sofrimento próximo seriam incapazes de evitar a presença do cheiro emanado a poucos quilómetros dali. No filme, procura-se ajustar contas com uma nação derrotada e o seu povo, opção compreensível atendendo ao contexto em que a obra foi realizada. Em poucos meses, porém, o cenário mudaria, entendendo-se agora que a culpabilização de todos os alemães não seria a forma mais adequada de reconstruir o país num quadro geopolítico que entretanto também se alterara, com a Guerra Fria no horizonte e a Realpolitik a impor a reabilitação silenciosa de altos funcionários do regime nazi. A par disso, e como sublinha Night Will Fall, um documentário de André Singer que acompanha de perto a feitura deste filme, o facto de milhares de refugiados não quererem sair dos campos de morte para a Alemanha, preferindo o êxodo para a Palestina, colocava sérias dificuldades às autoridades britânicas, que deixaram de ter interesse em exibir uma obra que retrava, com inultrapassável dramatismo, os tormentos por que passaram os sobreviventes. Impacientes com os atrasos dos ingleses, os americanos decidiram produzir em 1945 o seu próprio documentário com base em parte do material filmado: Death Mills, de Billy Wilder. Ao mesmo tempo, uma nota do Foreign Office informaria o produtor, Sidney Bernstein, que nos altos círculos militares não se via com bons olhos o aparecimento de um atrocity film. O projecto não foi concluído. As bobinas acabariam por ser arquivadas em 1952 nas prateleiras do Imperial War Museum, em Londres, onde estiveram esquecidas durante longos anos.
Na preparação do filme German Concentrations Camps, a pedido de Sidney Bernstein, que produzia o filme para o Ministério da Informação britânico, Alfred Hitchcock tinha-se deslocado à América para supervisionar a montagem ou, nas palavras de Bernstein, ditas anos depois, para "juntar todas as peças". Os militares que filmaram a libertação de Bergen-Belsen diziam que Hitchcock ficara tão impressionado com as primeiras imagens que lhe mostraram que esteve uma semana sem aparecer nos estúdios de Pinewood. Sendo ou não verdadeira esta história, o papel de Hitchcock situa-se a meio caminho entre o de um realizador clássico (na verdade, não dirigiu a tomada das imagens nem sequer esteve nos campos) e o de responsável pela montagem. Terá sido, como refere a ficha técnica do filme, um "treatment adviser". Em todo o caso, há o inegável risco de, a partir de agora, esta obra passar a ser conhecida como "o documentário de Hitchcock sobre o Holocausto" e, pior ainda, em pretender ver na sua filmografia subsequente vestígios desta experiência, que decerto terá sido marcante, talvez traumática, mas ainda assim episódica e efémera. Num depoimento de 1962, Hitchcock qualificou o papel que teve como o seu "esforço de guerra", dado que a sua idade e o seu peso jamais lhe permitiriam entrar em combate. Sendo impossível determinar a dimensão do contributo de Hitchcock – em comparação, por exemplo, com o do editor Stewart McAllister ou de Richard Crossman, o autor do script –, reconhece-se que a ele se devem muitos dos elementos que conferem a esta obra uma subtileza e uma densidade que o filme de Billy Wilder não possui. A ele pertence uma das ideias centrais deste filme, segundo a qual a generalidade dos alemães sabia o que se passava nos campos. Daí a apresentação, numa linguagem visual extremamente simples, de mapas que assinalavam a localização geográfica dos campos, na vizinhança de cidades como Munique ou Weimar. Se todo o filme está construído de uma forma "manipulatória", algumas passagens evidenciam mais flagrantemente os traços de uma intervenção que visava obter o máximo efeito junto do auditório. Por exemplo, quando o folhear de um álbum de fotografias familiares é entrecortado por grandes planos de cadáveres horrivelmente esfacelados; ou quando à apresentação de corpos subnutridos se sucedem imagens de mulheres nuas que tomavam o seu primeiro duche quente em muitos meses ou anos. Uma "orgia de limpeza" diz-nos o narrador, Richard Crossman, propagandista antinazi e futuro político trabalhista. Neste passo, há alguma voluptuosidade na exposição demorada dos corpos femininos inteiramente despidos, o que para os padrões morais da época seria impensável noutros contextos ou lugares. Os campos eram, até no registo da sua memória, um território de excepção, ponto salientado por um dos operadores de câmara: "jamais poderíamos associar aquilo que víamos às nossas próprias vidas (…). Era outro mundo. Se nos envolvêssemos naquilo, teríamos enlouquecido". Todas as oportunidades são aproveitadas para menosprezar o inimigo derrotado, geralmente com uma ironia onde é impossível não adivinhar a influência de Hitchcock. Quando se mostra detidamente o banho das mulheres, diz-se que aqueles eram os seres humanos que, segundo os nazis, tinham poucos ou nenhuns hábitos de higiene. Ao apresentar-se os guardas das SS a proceder à tarefa horrível de inumar os corpos, afirma-se que, se aquele era o escol de uma "raça superior", se tinham sido treinados para matar a sangue-frio, certamente não lhes seria difícil realizar o trabalho de enterrar os mortos. Esse sarcasmo, porventura fruto de uma incontida raiva mais do que do propósito de fazer humor, leva o narrador a dizer, perante as imagens de dezenas de idosas acamadas, que aquelas senhoras "eram consideradas uma ameaça para o Estado". Mostram-se ossadas humanas, dizendo-se que eram usadas como fertilizantes; logo de seguida, o plano de um campo de couves, acrescentando-se que provavelmente muitos alemães se alimentavam com legumes que cresciam graças aos restos mortais das suas vítimas. Não há qualquer momento de complacência nem espaço para tolerâncias.
Dentro da mesma lógica que os levara a produzir este filme, os Aliados traziam aos campos as autoridades locais mas também os cidadãos vulgares, que contemplam o cenário macabro com os olhos postos no chão; diz-se a dada altura que, numa medida ou noutra, todos eles eram culpados pela tragédia. A caminho de Buchenwald, muitos habitantes de Weimar iam felizes, sorrindo para a câmara. Até ao momento em que lhes é mostrada uma mesa onde se apresentavam pedaços de pele tatuada que os nazis retiravam às vítimas e as cabeças reduzidas de dois polacos capturados quando tentavam fugir. O filme percorre diversos campos, obedecendo a uma estrutura narrativa que, também do ponto de vista da impressão causada no espectador, se afigura extremamente eficaz e dilacerante. A sequência é dada pela sucessão dos vários campos de morte, cada qual funcionando como capítulo ou separador do relato. Após a indicação do nome do campo, assinala-se num mapa o local. As primeiras imagens mostram os mais saudáveis, que acorriam em festa à chegada das tropas. Em Dachau, a câmara acompanha o avanço dos jipes entre os sobreviventes que se afastam para abrir caminho aos seus salvadores. Só depois aparecem os corpos. Espalhados pelo chão ao acaso, tantos e tão desfigurados que a sua presença já nem impressiona os que ali se encontravam. Ou empilhados ao acaso, num aglomerado disforme. Surpreendem pela sua extrema alvura, que contrasta com as tonalidades escuras do meio envolvente, dos uniformes dos soldados e, sobretudo, dos sobreviventes. Nas valas, de uma extensão imensa, os corpos tombam sobre terra deslizante, enquanto no fundo alguém os vai arrumando, para facilitar a chegada de mais e mais cadáveres. Aos milhares. Noutro campo, corpos carbonizados, deitados no chão. Alguns têm as cabeças levantadas, como se aguardassem algo enquanto rastejavam queimados, nos derradeiros instantes. No filme, o sangue esvaiu-se, não se vê. O narrador fala de mulheres que parecem "estátuas de mármore". Em alguns locais, os corpos empilhados encontram-se hirtos, denotando uma total rigidez, como se fossem manequins; noutras paragens, são transportados e atirados às valas como bonecos desarticulados. Não há uma exploração do horrível pela simples razão de que seria desnecessária. Mas existe um propósito claro de evitar eufemismos ou elipses e, pelo contrário, de expor o mal na sua radical crueza. Nenhum detalhe é poupado. Vezes sem conta, a câmara perscruta o interior dos fornos crematórios, buscando restos mortais, ossos fumegantes que as chamas não devoraram. O objectivo, insiste-se, não é voyeurista ou sequer propagandístico; tratava-se, acima de tudo, de recolher provas – e essa demanda exigia um levantamento completo, mas especialmente focado naquilo que mais se prestava a ser posto em dúvida: sacos com cabelos, ossadas em crematórios, experiências com gémeos. Na montagem do filme, Hitchcock aconselhou a equipa a escolher planos-sequência, sem cortes, para que dessa forma a apresentação das cenas ganhasse mais credibilidade. Com efeito, a alternância rápida de vários planos induziria a desconfiança do auditório e levá-lo-ia a pensar que tudo o que via não passava de um artifício encenado: fragmentos de pele humana, cabeças trepanadas de olhar vazio, seres que vagueavam amparados pelos seus semelhantes.
À distância de tantas décadas, o filme é ainda tão impressionante que nos impede de sobre ele formularmos qualquer juízo. Dificilmente alguém ousará dizer se é "bom" ou "mau". Temos também consciência de que German Concentrations Camps procurava algo mais do que servir a culpabilização colectiva dos alemães, objectivo demasiado patente no filme de Billy Wilder. Além do projecto de tradução em várias línguas e de exibição em diversos pontos do mundo, é a esta luz que se compreende que, a dado passo, a voz de Crossman enumere sincopadamente todos os povos vitimados pelo nazismo. Num depoimento de 1984, Bernstein afirmou que, entre o mais, o filme visava ser "uma lição para a Humanidade". De facto, por muito perturbadoras que sejam as imagens dos cadáveres, o filme é também um testemunho da reconstrução e, sobretudo, da recuperação dos sobreviventes, com as mulheres a tomarem banho e a escolherem vestidos, os doentes de tifo a serem tratados, uma criança a ingerir a sopa de uma enorme tijela, serenamente e até à última gota, sem sofreguidão alguma. Reagimos às imagens com dispositivos defensivos, procurando refúgio em explicações do conteúdo ou enquadramentos contextuais. Fixamo-nos no objecto fílmico, contamos a história da sua redescoberta e outros pormenores acessórios para evitarmos o confronto com o objecto filmado, com a realidade que nos é trazida pela visão de um crânio aberto, de onde escorre uma massa encefálica que outrora alojou pensamentos e emoções. Apercebemo-nos de que o filme não atribui lugar central aos judeus. Estes são tratados como vítimas, a par de católicos e protestantes, num registo "ecuménico" que por certo desagradará aos que, nos meios judaicos, defendem a absoluta singularidade do Holocausto. Esta omissão de uma referência mais explícita aos judeus poderá dever-se, novamente, ao contexto em que o filme foi produzido. Todas as análises deste género, porém, recuam perante as imagens dos cadáveres e dos sobreviventes. Procurar analisar o filme e discorrer sobre o seu "contexto" são exercícios de autodefesa, formas elusivas de lidar com uma realidade que é insusceptível de ser representada. Ou, talvez, que se afigura como absolutamente representativa, no sentido em que convoca e torna presente o ausente, aquele que se ausentou por ter sido morto numa acção de assassínio em massa. Se os que presenciaram e registaram os acontecimentos ficcionavam que estavam num universo paralelo e num mundo-outro, nos nossos dias somos obrigados a ver este filme remetendo os seus protagonistas para esse lugar de ausência, onde nos surgem não já como pessoas mas como imagens, fantasmagorias. Terríveis imagens, sem dúvida, mas, parafraseando o ensaísta Didi-Hüberman, imagens apesar de tudo. Imagens apesar do tempo e do propósito com que foram feitas, imagens apesar de sermos incapazes de saber como olhar para elas hoje. Só dessa forma, como imagens apesar de tudo, seremos capazes de as encarar sem mergulharmos na vertigem da loucura.
Uma versão parcial deste filme já era conhecida em 1984, numa montagem com o título Memory of the Camps. Mas só agora, com a descoberta da "sexta bobina" e o seu tratamento digital, German Concentrations Camps Factual Survey alcançará o estatuto que merece. Poder-se-ia dizer que, volvidas tantas décadas, o filme acusa as marcas do tempo e a erosão dos excessos da "indústria do Holocausto". Puro engano. A força expressiva de German Concentration Camps Factual Survey permanece intocada, mesmo que já tenhamos estado em campos de concentração ou visto milhares de imagens dos crimes do nazismo. Comparadas com estas imagens – imagens apesar de tudo – muitos dos filmes sobre a Solução Final tornam-se grotescos, quase caricatos.
Nunca os nossos olhos viram nada assim.
Mike Lewis
O cameraman sargento Mike Lewis, da Unidade de Cinema e Fotografia do Exército Britânico, filmando em Bergen-Belsen