27/02/2015

Jihadistas destroem esculturas pré-islâmicas em nova "tragédia cultural" no Iraque

Um vídeo de cinco minutos mostra membros do autodesignado Estado Islâmico a destruírem estátuas e frisos à martelada no Museu de Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, no Norte do país, que os radicais conquistaram no Verão do ano passado. Os jihadistas ocuparam o museu assim que entraram na cidade, mas disseram aos habitantes que o estavam a guardar e até agora não havia notícias de qualquer destruição de peças. Entre as enormes estátuas que se vêem na gravação, peritos ouvidos pela televisão Al-Jazira identificam cópias de gesso, reconstituições a partir de fragmentos mas também muitos artefactos originais oriundos de cidades assírias em Nínive, a região de que Mossul é hoje a capital, e das ruínas greco-romanas de Hatra. Noutra imagem, os radicais usam um berbequim para desfigurar um imponente touro alado assírio de granito na porta de Nergal, na mesma cidade.
“Este ataque é muito mais do que uma tragédia cultural – também é um assunto de segurança porque alimenta o sectarismo, o extremismo violento e o conflito no Iraque”, afirma num comunicado a directora da UNESCO, Irina Bokova. A chefe da agência das Nações Unidas para a Educação e a Cultura convocou uma reunião de crise do Conselho de Segurança para discutir a situação. O Metropolitan Museum de Nova Iorque descreveu o ataque “contra um dos museus mais importantes do Médio Oriente” como “catastrófico”. “A colecção do Museu de Mossul cobre todas as civilizações que passaram pela região, com extraordinárias esculturas de cidades reais como Nimrud, Níneve e Hatra”, diz o director do Met, Thomas Campbell.
Estas imagens de destruição surgem um dia depois de os radicais terem feito explodir uma mesquita do século XII no centro de Mossul. Ihsan Fethi, um arquitecto iraquiano a viver em Amã, lamentou “uma perda terrível e um acto inacreditável de terrorismo cultural”. Fethi disse à AFP que os jihadistas destruíram esta mesquita porque no seu interior se encontrava um túmulo cuja visita constitui um acto de idolatria para os fundamentalistas. “Fiéis muçulmanos, estas esculturas atrás de mim são ídolos para os povos de antigamente que as adoravam em vez de adorarem Deus”, afirma um jihadista, que se dirige à câmara. “Os chamados assírios, os acadianos e outros povos tinham deuses para a chuva, para as culturas, para a guerra”, diz, antes de lembrar que “o Profeta retirou e enterrou os ídolos em Meca”. Noutra parte do vídeo, ouve-se o homem afirmar o desinteresse pelo valor patrimonial destas peças ("não queremos saber, mesmo que valham milhões"), mas o tráfico de antiguidades já foi identificado como uma das fontes de financiamento do grupo radical e alguns peritos notam que as peças destruídas são demasiado grandes e pesadas para serem transportadas com facilidade. No início do mês, a ONU adoptou uma resolução para tentar combater o tráfico de antiguidades pilhadas na Síria e no Iraque.
No fim-de-semana chegaram relatos da destruição da Biblioteca Central de Mossul, mas essa informação não foi confirmada. Para já, sabe-se que várias bibliotecas mais pequenas e livrarias antigas da cidade foram incendiadas.
A história da civilização já perdeu muito durante a invasão norte-americana do Iraque, em 2003, quando o Museu de Bagdad e vários locais arqueológicos foram pilhados. Na Síria, bombardeamentos do regime e combates entre as forças do Presidente e da oposição já levaram à destruição total ou parcial de tesouros indescritíveis, como o mercado da Cidade Velha de Alepo, Património Imaterial da Humanidade. Agora, são os jihadistas que controlam vastas áreas da Síria e do Iraque que levam a cabo uma destruição cultural contínua. Só no que respeita a livros e manuscritos, a UNESCO diz que pode estar em curso “um dos actos mais devastadores de destruição de colecções de bibliotecas na história da humanidade”.

Museu de Mossul
Jihadistas destroem esculturas no museu de Mossul.

26/02/2015

Estes pratos eram um luxo como a pimenta e a seda e têm 500 anos de garantia

Nova exposição no museu de Arte Antiga mostra 58 exemplares de uma raríssima colecção de pratos de porcelana da China. Pertencem à embaixada de França em Lisboa e estão a sair de casa pela primeira vez.
Há macacos, galos e veados, sapos, borboletas e gafanhotos. Mas há também dragões e corvos, pavões que parecem faisões (ou vice-versa), colibris e morcegos e até uma louva-a-deus elegante, executada com toda a minúcia. Um bestiário particular em azul e branco para impressionar convidados que traça a evolução da porcelana da dinastia Ming (1368-1644) e, ao mesmo tempo, evoca a expansão portuguesa e garante um regresso à Lisboa do século XVI, em que nobres e oleiros se cruzavam na freguesia de Santos-o-Velho.
A exposição inaugurada no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), Azul sobre Ouro, reúne 58 pratos de porcelana chinesa de uma colecção rara que pertence ao Palácio de Santos, casa de reis e da alta nobreza que desde o início do século XX pertence ao Estado francês, que ali instalou a sua embaixada. O acervo que tem 263 peças e que está habitualmente exposto de forma pouco convencional – encastrado num tecto piramidal com uma moldura em talha dourada – sai agora pela primeira vez do palácio, onde está há 330 anos. É a terceira vez que este conjunto sai da sua instalação singular por causa de trabalhos de conservação do edifício – é o que está a acontecer agora na Sala das Porcelanas, a que dá nome – desde que foi reunido pelos antigos proprietários do palácio por onde passaram D. Manuel, D. João III e D. Sebastião, os Lencastres, importante família da nobreza de Lisboa, de gosto refinado, lembra o comissário, Rui Trindade (conservador de cerâmica do MNAA), para quem este é um acervo “único no mundo”, pela “qualidade, quantidade e diversidade das suas peças”, que vão do século XVI ao XVIII. “Ter uma colecção como esta era sinónimo de status, de importância, porque estes pratos eram um produto de luxo, como a pimenta e a seda, coisa muito rara na Europa antes de os portugueses inaugurarem a Rota do Cabo.” Foi com a primeira viagem de Vasco da Gama, que chegou a Calecute em 1498, contornando a costa africana e assim ligando o Mediterrâneo ao Índico oriental por via marítima, que os primeiros pratos de porcelana da China viajaram nos porões das naus da coroa portuguesa. “Vasco da Gama sabia do valor comercial desta louça – a pouca que chegava por terra e era vendida na Europa era para uma elite mesmo muito rica -, como sabia do valor da seda e das especiarias. Sabia ao que vinha e percebeu de imediato o valor comercial da porcelana. Foi o primeiro a trazê-la por mar.”
Negócio da China
Na Idade Média, já havia pratos como estes a chegar à Europa mas vinham com a Rota da Seda e eram depois distribuídos a partir de Alexandria e Veneza. Chamavam-lhes louça da Índia. “Depois, durante praticamente todo o século XVI, são os portugueses que a comercializam em grandes quantidades, procurando eliminar todos os intermediários e distribuindo-a pela Holanda, França e Espanha, mas também pela África Ocidental, graças às ligações de D. Manuel ao rei do Congo, e mais tarde pela América do Sul e Central. Este é o verdadeiro negócio da China.” Um negócio que coloca pratos como estes à mesa da elite europeia, com os de maior dimensão como “peças de aparato”, usados em ocasiões de festa. “Esta porcelana é de grande qualidade e, por isso, não é de espantar que chegue até nós com estes vidrados impecáveis, praticamente sem falhas. Tem 500 anos de garantia.” Com a porcelana nos porões, ao lado da pimenta ou da canela, as expedições portuguesas ao oriente fizeram a primeira globalização desta louça chinesa, uma globalização que abriu a porta a outra – a que levou às Américas, à África ocidental e ao norte da Europa, a partir do início do século XVII, a faiança produzida em Portugal mas feita “à feição de porcelana da China”.
Em Azul sobre Ouro não há exemplares portugueses de faiança mas é simples estabelecer uma ligação entre essa produção e a colecção dos Lencastres dando um pulo às galerias da exposição permanente do MNAA. “Sabemos que os oleiros de Lisboa, mal chegam os primeiros pratos de porcelana por via marítima, começam a tomá-los como modelos”, diz Trindade. Mas, como o fabrico da porcelana (argila, com uma mistura de minerais - caulino e feldspato – e depois vidrada) permanece um segredo que missionários e comerciantes tentaram descobrir, em vão, durante muito tempo, as cópias que produzem são em faiança (barro fino vidrado). "A técnica da porcelana permanecia secreta, como a do trabalho da laca. Os oleiros de Lisboa, e depois os de Coimbra e de Vila Nova de Gaia, copiam porcelana mas produzem faiança. Simplesmente porque não sabem como fazer porcelana [a primeira feita em Portugal data de 1773]”, explica Conceição Borges de Sousa. A faiança azul e branca, com os mesmos motivos chineses, torna-se então um sucedâneo de um produto de luxo, que passa muitas vezes, acredita Trindade, pelo original, embora a porcelana seja bem mais fina e resulte, por isso, em peças bem mais leves.
Os artesãos das grandes olarias de Lisboa, instaladas na zona de Santos, onde está hoje o MNAA e o próprio palácio, “inspiravam-se” nas peças de importação. Segundo o comissário há até “90% de hipóteses” de peças da colecção que hoje pertence à embaixada de França terem servido de modelo. E porquê tanta certeza? Porque José Luís de Lencastre, proprietário do Palácio de Santos e o homem a quem se deve a decoração da Sala das Porcelanas, era também o dono de uma olaria na Rua da Madragoa, a escassos metros da sua casa. “Esta influência da China é depois assimilada em termos nacionais e mantém-se até hoje em alguma da produção cerâmica, embora seja mais forte até ao século XVIII.” E de tal forma ela se nota que, na viragem do XVI para o XVII, “toda a Europa faz louça policromada, enquanto em Portugal a maioria continua a ser em azul e branco”, reservando-se as outras cores para o azulejo.
Na exposição há apenas uma peça com outras cores, um pequeno prato com um círculo vermelho ao centro e decorações em azul turquesa com vestígios de dourado, destinado ao mercado japonês (entre as 263 peças dos Lencastres são apenas quatro as que não são a azul de cobalto e branco). O outro objecto que difere dos pratos saídos de serviços de porcelana da China é um gomil (1575-1585).
Descobrimentos
Os pratos de maiores dimensões eram feitos para impressionar em dias de festa e destinavam-se à exportação.
Descobrimentos
Nos 58 pratos seleccionados para a exposição no MNAA a figura humana aparece pouco representada
(prato do período Wanli, entre 1595 e 1600).
Descobrimentos
A louva-a-deus é um dos motivos.


Grão Vasco promovido a museu nacional

O Estado Português aprovou a classificação do Grão Vasco como museu nacional. Foi com o regulamento de 1965 que ficou estabelecido quais os núcleos museológicos que passariam a nacionais e os que ficaria com a designação de regionais. Ou seja, criou-se o conceito de museu nacional, regional e municipal, tal como hoje são conhecidos. Até aí apenas três museus estavam referenciados como nacionais e não havia outras designações. O Grão Vasco é o terceiro museu a ficar com a designação de nacional fora de Lisboa, além dos museus Soares dos Reis (Porto) e Machado de Castro (Coimbra). Para o processo ficar concluído, falta apenas o parecer, não vinculativo, do Conselho Nacional de Cultura que se reunirá em finais de Março. Para o director do Grão Vasco, Agostinho Ribeiro, o acervo da instituição, o facto de estar ligada a uma figura como a do pintor Vasco Fernandes, a importância histórica e as estatísticas dos números de visitantes são os factores preponderantes para a atribuição do título. “Não há um único elemento que não possa ser chamado à fundamentação para a designação nacional que o Grão Vasco não cumpra. Desde logo porque tem um património com obras de interesse nacional e que nos coloca numa fasquia cimeira das entidades museulógicas, depois porque tem uma figura associada que é única e também a profundidade histórica da própria instituição que no próximo ano faz 100 anos. Depois dos museus nacionais, o Grão Vasco foi o que mais cresceu em número de visitantes”. Foi o sexto museu do país que teve mais visitas e a segunda cidade onde esse número mais aumentou, sendo só ultrapassado por Lisboa. Em números absolutos, pelo museu de Viseu, em 2014, passaram 80.241 visitantes, dos quais 62.826 foram nacionais e 17.415 estrangeiros. Relativamente ao ano de 2013, o Grão Vasco registou um aumento de 16% no total de visitantes e 22% nos visitantes estrangeiros. Sobre as vantagens de ser museu nacional, o director diz que a titularidade irá trazer “uma projecção maior quer nacional, quer internacional”, frisando que em termos operacionais e de gestão continua a estar debaixo da alçada da Direcção-Geral do Património Cultural. Vantagens realçadas também pelo presidente da Câmara de Viseu. Almeida Henriques deixa ainda a satisfação por a unanimidade neste desígnio e a “actuação conjunta” terem conseguido resultados que irão projectar a cidade de Viseu enquanto pólo cultural.
Grão Vasco
Fachada do Museu Grão Vasco que reabriu em 2004 com obra do arquiteto Souto Moura.
Grão Vasco
O retábulo da Sé de Viseu tem 14 painéis, entre os quais o famoso painel da Adoração dos Magos, que tem a primeira representação de um índio na arte ocidental.

16/02/2015

O sintoma grego para um novo espaço político na Europa

O filósofo italiano Antonio Negri, autor de uma extensa e muito influente obra de filosofia política, nomeadamente de três livros de enorme repercussão que escreveu com Michael Hardt (Empire, Multitude e Commonwealth), esteve em Lisboa para um seminário na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, a convite do Instituto de História de Arte Contemporânea, e participou num outro seminário organizado pela Unipop, no Hospital Júlio de Matos, no âmbito de um projecto de exposição de trabalhos artísticos e de investigação, coordenado por Paulo Mendes e Emília Tavares: O Tempo e o Modo – Para Um Retrato da Pobreza em Portugal.
Conversámos com ele dois dias antes das eleições na Grécia. A crise grega, o surgimento do movimento Syriza e a sua implantação, o desafio e a novidade política que ele representa, quando já era previsível a sua vitória nas eleições, foram o principal tema da conversa que se segue e sobre o qual Antonio Negri tem intervindo publicamente em várias ocasiões, sobretudo através de artigos em revistas e em volumes colectivos (por exemplo, Le Symptôma grec, Éditions Lignes, 2014; um livro cuja ficha técnica diz “Imprimé en Europe”). O nome de Negri não consta no entanto de um apelo muito difundido, assinado por nomes importantes de escritores, filósofos e intelectuais europeus e americanos, publicado no Libération a 21 de Fevereiro de 2012. Chamava-se esse apelo, da iniciativa da revista grega Aletheia, e à qual se associou a revista francesa Lignes (cf. Lignes 39, “Le devenir grec de l’ Europe néolibérale”, Outubro de 2012), “Salvemos o povo grego dos seus salvadores”.
Sobre o que estava em jogo nessas eleições Negri é peremptório: “Há a fortíssima pressão de uma dinâmica interna da União Europeia, mas há também uma situação nova: o facto de o movimento vitorioso não querer que a Grécia saia da Europa. Não se trata da velha esquerda completamente fechada, bloqueada no antieuropeísmo. Há, portanto, forças no interior da Europa que decidiram iniciar uma luta democrática para mudar a política europeia.” Na medida em que representa a esquerda na Europa e não contra a Europa, o Syriza, tal como o Podemos, em Espanha (mas Negri tem o cuidado de não assimilar um ao outro, de sublinhar que se distinguem tanto no plano da cultura política, como na história de cada um deles), já nada tem a ver com as velhas organizações comunistas e introduz uma ruptura com “o extremismo do centro”, que Negri define desta maneira: “Há uma esquerda social-democrata, em toda a Europa, que se tornou completamente centrista. São partidos que fizeram alianças com a direita e cuja política passou a ser de centro-direita, capturando a social-democracia.” Deste ponto de vista, a importância do Syriza consistiria na possibilidade que ele oferece por enquanto – em nenhum momento Negri lhe passa cheques em branco – de ser uma nova figura de organização política, dotada de uma dimensão crítica, não fechada no pensamento único económico e capaz de resgatar a social-democracia ao “extremismo do centro” que representa, há muitos anos, o quadro político de gestão da crise na Europa. Reconstruir, hoje, uma hipótese social-democrata, como diz ser a tarefa do Syriza e do Podemos, significa “definir um projecto reformista capaz de enfrentar a crise bem patente de uma social-democracia caracterizada nos seus termos tradicionais, tendo em conta as transformações profundas que atravessam tanto o capital como o trabalho”. No actual contexto europeu, apresentar um programa próximo de princípios da social-democracia (como é, diz Negri, o programa do Syriza) já é uma aventura política que merece a classificação de “radical”. A ocasião que se apresenta hoje na Grécia e poderá apresentar-se ainda este ano em Espanha é a da “abertura de espaços políticos novos na Europa”, algo que até há pouco estava completamente bloqueado. Mas Negri coloca essa possibilidade sob condições: “É preciso que a afirmação eleitoral do Syriza não se transforme imediatamente, como tantas vezes aconteceu na história da esquerda, numa cristalização.” Dito de outro modo, é preciso que todo o sucesso dê lugar a um movimento expansivo, ou, na linguagem conceptual de Negri, inaugure “um processo constituinte” – o que significa que não é o resultado eleitoral que representa, em si mesmo, uma “vitória”. Antonio Negri tem sido, em várias ocasiões, um crítico do partido enquanto forma de representação (ele é manifestamente inadequado para as novas formas de construção do “comum”) e, por conseguinte, entende que há limites a ultrapassar que um partido, qualquer que ele seja, jamais conseguirá. Daí, esta reivindicação que encontramos num dos seus textos: “Aquilo de que precisamos é de uma atitude ‘experimental’, de abertura visando a construção e a consolidação de uma nova trama de contrapoderes, de novas instituições, de experiências de auto-organização social.” É a isto, que é em suma a construção do comum, que ele chama um “programa constituinte”. Na sua perspectiva, nada se pode resolver pela simples reivindicação de uma “soberania nacional”. O seu contributo para o volume colectivo Le Symptôma grec (que nasceu, aliás, de um colóquio na Universidade Paris-8, em Janeiro de 2013) chama-se “Do fim das esquerdas nacionais aos movimentos subversivos para a Europa”. Aí, começava por afirmar: “Quando se fala de mundialização dos mercados, fala-se também de uma limitação imposta à soberania dos Estados-nação. Na Europa ocidental, o erro essencial das esquerdas nacionais foi o de não compreender que a mundialização era um fenómeno irreversível.” E, num texto recente que assina juntamente com Sandro Mezzadra (disponível no site EuroNomade), "Para uma política das lutas: Syriza, Podemos e Nós", podemos ler: “É evidente que as eleições gregas não serão simplesmente eleições ‘nacionais’ (...), é na realidade o equilíbrio geral das instituições europeias que está aqui em jogo – um equilíbrio que se redefiniu nestes últimos anos pela gestão da crise.” E, mais à frente: “Nestas condições, a partida que o Syriza está prestes a jogar é evidentemente complicada; e, do interior da esquerda europeia e em nome de um pretenso realismo político, as posições que propõem cenários lineares de superação do neoliberalismo e da austeridade através de um regresso à soberania nacional parecem-nos francamente ingénuas.” Voltando a esse texto sobre o fim das esquerdas nacionais, sublinhemos a afirmação de que a esquerda europeia tem sido incapaz de construir uma alternativa ao neoliberalismo, precisamente porque nunca pôs em questão o Estado-nação de maneira consequente e à altura da nova ordem em que vivemos. Lutar contra a crise a um nível europeu, “reabrir uma perspectiva de luta no terreno realista da construção subversiva de uma Europa unida”, eis aquilo a que Antonio Negri apela, tentando contrariar o que tem sido a tendência dominante da esquerda europeia. Sabemos que a propósito da Grécia e do modo como a Europa tem gerido a crise da dívida dos países do Sul já muito se falou em pós-democracia. Um outro filósofo italiano, Giorgio Agamben, numa conferência que proferiu há pouco mais de um ano em Atenas, vai ainda mais longe: “O paradigma governamental dominante na Europa de hoje não só não é democrático como não pode sequer ser considerado político.” E acrescenta: “A sociedade europeia já não é uma sociedade política: é algo totalmente novo para o qual falta ainda uma terminologia apropriada.” Negri faz uma crítica da democracia desde que começou a trabalhar sobre Espinosa, o filósofo que lhe forneceu o conceito de multidão e o conceito de democracia da pluralidade, “a democracia que determina, na pluralidade, as formas que são aquelas em que se constitui a sociedade”. E acrescenta: “É evidente que a democracia hoje já não funciona. E temos de pensar como superar, como ir além desta democracia.” E quanto ao “comum” que os movimentos políticos hoje procuram, em que consiste ele e que “gramática política” constitui? Negri explica: “Por ‘comum’ entendo o seguinte: há hoje uma cooperação social extremamente aprofundada no trabalho, que se tornou, na nossa época, cada vez mais, trabalho intelectual, cognitivo, algo que se realiza na Net, nas redes. Há uma nova realidade que podemos dizer que já é antropológica, na medida em que faz parte do espírito das pessoas, que é o espírito de participação. E isso é absolutamente fundamental na definição do ‘comum’, enquanto estrutura produtiva que se tornou cada vez mais cooperativa, intelectual, cognitiva. Hoje, mesmo os trabalhadores de uma fábrica são trabalhadores cognitivos. O trabalho manual, tradicional e de massa foi empurrado, por exemplo, para a China. Mas aí está-se a dar uma transformação impressionante. Há hoje mais engenheiros na China do que em toda a Europa.” Isto significa obviamente que o discurso dos velhos partidos comunistas chegou ao fim. E que a qualidade social e as características cognitivas da produção, na medida em que permitem aos trabalhadores organizarem de maneira autónoma as suas próprias redes sociais de trabalho, tornam obsoleto e absurdo que se continue a impor as oito horas de trabalho. Diz Negri: “Se ainda perdura esse horário de trabalho, é apenas por uma regra completamente disciplinar e idiota. Por outro lado, afirma, “o direito de cada cidadão a um rendimento mínimo, independente do trabalho e já não entendido como assistência social, vai tornar-se uma questão cada vez mais presente”. O “comum”, tal como Negri o entende, está relacionado com essa “nova antropologia", a revolução em curso que permite a reapropriação daquilo que se produziu – isto é, o novo proletariado já não é massificado e tem autonomia, na medida em que é o conhecimento, a dimensão cognitiva, que constitui parte do “capital fixo”.
Negri
Antonio Negri

Obra em Fafe revela monumento funerário megalítico do início da Idade do Bronze

Durante a construção da subestação da REN em Fafe, no distrito de Braga, foram descobertos dois monumentos funerários megalíticos, designados mamoas, pequenos montículos revestidos por uma couraça de terra e pedras, cuja forma lembra um seio feminino. Uma dessas mamoas terá sido construída há mais de 4000 anos, sendo a mais antiga identificada e datada na zona Norte do país.
O concelho é rico em vestígios arqueológicos – entre os quais está o Castro de Santo Ovídio, um dos mais afamados. Só no Monte de S. Jorge, na fronteira entre as freguesias de Armil e Cepães, existem pelo menos mais 12 mamoas, que compõem a Necrópole Megalítica de S. Jorge, mas há muitas outras espalhadas pelo território, identificadas na carta arqueológica.
Uma das mamoas agora encontradas, a mamoa 2 da Regedoura, fica dentro do perímetro da subestação e por isso não foi preservada. “Foi feita a escavação completa para registo e memória futura, acompanhada pela Direcção-Geral do Património Cultural”, afirma Francisco Parada, director do Departamento de Qualidade e Segurança da REN. Os dados recolhidos darão origem a um relatório, que será entregue à tutela e à autarquia. O estudo deste monumento permitiu situar a data de construção entre 2468 a.C. e 2332 a.C., no início da Idade do Bronze, o que faz dele um dos mais antigos da zona Norte. “Devido à plantação de eucaliptos, o interior da câmara funerária estava mal conservado”, explica Gabriel Pereira. Mesmo assim, foi possível perceber alguns pormenores sobre a construção: após uma queimada para limpeza do local, foi desmontada a fraga rochosa, da qual resultaram pedras utilizadas na construção do montículo. Pelas dimensões reduzidas da mamoa 2 (cerca de sete metros de diâmetro e cerca de 60 centímetros de altura), que a tornam quase imperceptível na paisagem, os arqueólogos concluem que terá albergado apenas um ou dois indivíduos. Seria um monumento fechado, de planta circular, com uma câmara de tipo cistóide (com pedras ou alto ou na horizontal, em forma rectangular) ou poligonal (com mais do que seis pedras, maiores). Os investigadores acreditam que a mamoa terá sido saqueada na época romana. No local foram encontrados ainda alguns objectos de cerâmica, um braçal de arqueiro, um amolador e o fragmento de uma ponta de seta em cobre, materiais habitualmente depositados nas sepulturas. Já no exterior do perímetro da subestação foi encontrada outra mamoa, maior, com cerca de dez metros de diâmetro, supostamente colectiva. Segundo o Gabriel Pereira, a zona envolvente foi limpa e foi feito um registo gráfico do estado actual do monumento. O objectivo é preservá-lo, para que possa ser visitado e, eventualmente, escavado no futuro. A autarquia de Fafe está actualmente a rever o Plano Director Municipal (PDM) de forma a garantir a protecção das mamoas e da zona envolvente. Nos últimos anos, a pressão urbanística e a reflorestação – sobretudo de vinhas e eucaliptos – levaram à destruição de alguns monumentos do concelho. O executivo quer travar esse processo promovendo o conhecimento da população sobre o património arqueológico do concelho.
Este ano a câmara vai dedicar especial atenção ao Castro de Santo Ovídeo, classificado como imóvel de interesse público, situado no monte homónimo. O povoado fortificado foi construído na Idade do Ferro e depois reaproveitado pelos romanos. No século XIX foi ali encontrada uma estátua de guerreiro, que se encontra exposta no Museu da Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães. Além disso, a autarquia está a formalizar o pedido de integração na Rota do Românico, que engloba 12 concelhos dos vales do Sousa, Tâmega e Douro. O argumento principal é a Igreja de São Romão de Arões, um templo rural do século XII de arquitectura românica e cunho gótico, o único monumento nacional do concelho.
Monumento funerário da Idade do Bronze
Por se encontrar dentro do perímetro da subestação da REN, a mamoa 2 da Regedoura não pôde ser preservada.

11/02/2015

Tela atribuída a Leonardo da Vinci apreendida na Suíça

Uma tela atribuída a Leonardo da Vinci, retratando Isabella d’Este, marquesa de Mântua, foi apreendida num cofre de um banco privado de Lugano, no cantão suíço de Ticino. A operação foi conduzida por uma unidade policial suíça especializada em roubos de obras de arte com a colaboração das autoridades fiscais de Pesaro, segundo as quais a tela, que poderá valer mais de cem milhões de euros, terá sido ilegalmente exportada para a Suíça.
A primeira vez que se ouviu falar deste quadro foi em Outubro de 2013, quando os seus proprietários, que nunca foram publicamente identificados, pediram a especialistas que o analisassem. Segundo o jornal Corriere della Sera, a tela pertenceria a uma família italiana e faria parte de uma colecção de 400 obras de arte conservada em Turgi, no cantão suíço de Argóvia.
Testes de carbono realizados num laboratório da Universidade do Arizona indicaram que a pintura poderia ser do início do século XVI, e um dos mais prestigiados especialistas em da Vinci, Carlo Pedretti, afirmou não ter quaisquer dúvidas de que este retrato de Isabella d’Este, mecenas de artistas e grande figura do Renascimento italiano, era “trabalho de Leonardo”. As notórias semelhanças com um desenho de da Vinci conservado no Louvre – no qual o mesmo modelo surge retratado na mesma posição –, levaram os especialistas a propor a hipótese de que a tela agora apreendida constitua a versão definitiva do esboço que se encontra no museu de Paris.Testes à tinta parecem também demonstrar que os pigmentos usados são idênticos aos que Leonardo empregou na Mona Lisa. Se se confirmar que a tela é genuína e os especialistas concluírem que é anterior à Mona Lisa, prevê-se uma pequena revolução nos estudos sobre a obra-prima de Leonardo, já que o sorriso de Isabella d’Este parece prenunciar o da Gioconda.
Quando a imprensa europeia fez eco desta descoberta, em Outubro de 2013, não se sabia ainda que as autoridades de Pesaro estavam já a investigar o caso desde finais de Agosto desse ano, quando souberam que um advogado local estava mandatado para vender, “por um mínimo de 95 milhões de euros”, um quadro atribuído a Leonardo da Vinci e figurando Isabella d’Este, depositado num banco suíço. A suspeita de que a tela saíra ilegalmente de Itália, e que poderia estar relacionada com um crime de fraude fiscal, desencadeou a investigação que agora levou à detenção do quadro, num momento em que as negociações para a sua venda, por valores próximos dos 120 milhões de euros, estariam prestes a ser finalizadas.
Leonardo da Vinci
Isabella d’Este. Tela do início do século XVI. Atribuído a Leonardo da Vinci.

10/02/2015

Peça do mês de fevereiro no Museu Carlos Reis em Torres Novas

Capitel do século XV em calcário, proveniente da Igreja de Santa Maria do Castelo (Torres Novas). Apresenta uma forma quase cilíndrica abrindo ligeiramente no sentido da zona superior, composto por astrágalo, cesto e ábaco de convexos. O cesto apresenta na face principal um elemento heráldico sendo enquadrado lateralmente, na linha dos ângulos, por elementos vegetalistas pronunciados do tipo palmiforme. Nas restantes faces a decoração vegetalista repete-se, apresentando cada uma das palmetas um talhe variado, mais ou menos cuidado. A sua colocação respeita o ritmo das faces e ângulos do capitel ao inscreverem-se no eixo axial de cada face e nos ângulos. Desprovido de decoração, o ábaco é de moldura mistilínea e define a forma do capitel.
Segundo José Alberto Borralho este capitel foi descoberto na sequência das obras de demolição da Igreja de Santa Maria do Castelo, encontrando-se na altura embutido numa parede de uma divisão situada no lado do Evangelho, próxima do arco triunfal [Capela de Nossa Senhora do Socorro?].
Museu Carlos Reis
Capitel em calcário do século XV - Museu Carlos Reis - Torres Novas.

06/02/2015

A obra de arte mais cara de sempre? Gauguin terá ganho a Cézanne?

Dois franceses, dois pós-impressionistas, duas referências do mundo da arte que atraíram atenções no Qatar. A venda não teve os habituais intermediários – nada de leilões ou galerias – e a informação chegou através do diário The New York Times, que cita apenas fontes bem informadas dos mercados europeu e norte-americano, sem mencionar nomes.
Ao que tudo indica, Paul Gauguin destronou Paul Cézanne, tornando-se o autor da mais cara obra de sempre. Nafea Faa Ipoipo (1892), qualquer coisa como “Quando irás casar?” (101X77cm), acaba de ser vendida por 300 milhões de dólares (271 milhões de euros), mais 50 milhões (cerca de 45 44 milhões de euros) do que a soma atingida em 2011 pela pintura Os Jogadores de Cartas (1895), comprada pela família real do Qatar a um magnata grego.
Trata-se agora de uma pintura representando duas jovens mulheres ao ar livre, executada um ano depois de o pintor ter chegado ao Taiti para a primeira das duas estadias na polinésia francesa que viriam a marcar em definitivo a sua obra. Uma delas, a de maior movimento e que desvia o olhar do observador, está vestida de forma tradicional, com os braços nus e uma flor branca no cabelo. A outra, um corpo hirto que parece aprisionado num vestido de corte ocidental semelhante aos que os missionários costumavam impor aos nativos que tentavam evangelizar, interpela quem a vê. À combinação das duas mulheres atribuem alguns historiadores uma ligação aos dilemas pessoais e artísticos do pintor, sempre entre dois mundos.
Segundo o jornal norte-americano, a obra foi transaccionada entre Rudolf Staechelin - um antigo executivo de 62 anos que trabalhou para a leiloeira Sotheby’s e que através de um fundo familiar gere uma colecção de 20 obras de arte impressionistas e pós-impressionistas - e um comprador do Qatar. Questionado sobre a possibilidade de o novo dono de Nafea Faa Ipoipo ser um coleccionador deste emirado do Golfo Pérsico que vive essencialmente do petróleo e do gás, Staechelin, que também não falou do preço em causa, disse apenas: “Não confirmo nem desminto.” É claro que, no mercado da arte e tendo em conta os últimos quatro a cinco anos, especula-se já sobre o possível comprador. E são muitos os que apostam na família real do Qatar, que em 2011 adquiriu Os Jogadores de Cartas e que no mesmo ano foi considerada pela publicação especializada The Art Newspaper o maior investidor mundial em arte contemporânea (Damien Hirst está entre os seus favoritos). Outros optam pelo organismo que gere os museus do emirado. Uma e outra coisa, aliás, confundem-se.
The New York Times baseia a sua notícia de que teria sido comprada pelos museus do Qatar no testemunho de dois negociantes de arte com informação privilegiada sobre o negócio, mas que preferiram manter-se anónimos. Cita ainda a Baer Faxt, uma respeitada newsletter semanal publicada pelo consultor de arte Josh Baer desde 1995 e que costuma avançar, muitas vezes em primeira mão, notícias sobre o mercado. Diz a Baer Faxt no seu site que são muitos os rumores de que será efectivamente o Qatar o comprador e por uma soma muito próxima dos 300 milhões de dólares já mencionados.
O acervo que Staechelin gere, e a que pertence esta pintura de Gauguin (1848-1903), é suíço e estava emprestado ao Kunstmuseum de Basileia, cidade onde vive o antigo funcionário da Sotheby’s. Por serem demasiado valiosas – o lote de 20 obras inclui Van Goghs, Picassos e Pissarros – nunca estiveram expostas na casa de Staechelin nem de nenhum outro familiar desde a morte do seu avô, o coleccionador original, em 1946, explicou. O avô de Staechelin, um negociante de arte suíço a quem o neto deve o nome, tinha muitos artistas no seu círculo de amigos e fez a maioria das suas compras durante e depois da Primeira Guerra Mundial. Foi já na condição de consultor do museu de arte de Basileia que se decidiu pelo empréstimo das obras, que só foi concretizado pelo seu filho Peter, no final dos anos 1940 início dos 50, segundo a agência de notícias Bloomberg. Um empréstimo a que Staechelin pôs agora fim, depois de um contencioso com as autoridades regionais, ainda de acordo com o jornal norte-americano. O presidente da câmara de Basileia, Guy Morin, reconhece a perda e garantiu à imprensa suíça que tentou persuadir Staechelin a manter o empréstimo ao museu, que se encontra fechado há poucos dias e que está prestes a entrar em obras, reabrindo em Abril do próximo ano. Na base do conflito está o contrato de concessão, que o coleccionador queria alterar e que o museu fez questão de manter. Aproveitando que o contrato vigente exige a exposição permanente das obras sob empréstimo, Staechelin resolveu denunciá-lo e vender a pintura, tirando partido do facto de o mercado estar em alta para obras deste género. A família, que frequentemente é contactada por compradores interessados em várias obras do seu acervo, teve agora, admitiu, "uma boa oferta". "Para mim [esta obras] são história de arte e história da minha família", disse Staechelin citado pelo The New York Times, "mas são também uma segurança e investimentos". “Fomos dolorosamente recordados de que os empréstimos permanentes são empréstimos na mesma”, reagiram os responsáveis do Kunstmuseum, num comunicado breve. Para Staechelin trata-se de encarar o acervo como um organismo vivo: “As colecção privadas são como as pessoas. Não vivem para sempre.”
Ainda não é claro quando é que o Kunstmuseum terá de entregar a pintura de Gauguin ao seu novo dono, seja ele quem for, escreve o jornal económico The Wall Street Journal, embora o The New York Times garanta, citando o próprio Staechelin, que deverá mudar de mãos em Janeiro de 2016. O tempo de espera deve-se aos compromissos que o museu assumira já com exposições em Washington (Phillips Collection), Madrid (Centro de Arte Reina Sofia) e mesmo em Basileia (Fundação Beyeler), a primeira das três. Staechelin diz agora que anda à procura de um grande museu que aceite a colecção do avô. Assegura que não pedirá dinheiro pelo empréstimo e que a única condição que o fundo familiar impõe é que as obras façam parte da exposição permanente. O seu destino depois das exposições ainda não é público. Seja ou não o Qatar, também não é certo que venha a integrar as colecções de um dos museus de Doha, a capital. O Cézanne (1839-1906) que a família real comprou em 2011 continua a ser um privilégio partilhado por muito poucos.
Gauguin
Paul Gauguin - Nafea Faa Ipoipo (1892)

Cézanne
Paul Cézanne- Os Jogadores de Cartas (1895)

03/02/2015

Equipa internacional atribui duas esculturas em bronze a Miguel Ângelo

Dois homens cavalgam duas panteras de braço no ar em sinal de triunfo. Serão as duas únicas esculturas em bronze da autoria do mestre italiano Miguel Ângelo existentes no mundo e foram apresentadas por uma equipa multidisciplinar que envolve peritos da Universidade de Cambridge e do Rijksmuseum que, depois de mais de 130 anos de dúvidas, confirmaram a sua autoria. Se se confirmar esta é uma das mais importantes descobertas da Renascença feitas no século XXI. Parte de colecções privadas desde 1878, os dois bronzes de cerca de um metro de altura cada foram várias vezes associados a Miguel Ângelo. Só agora a equipa multidisciplinar que inclui Paul Joannides, professor emérito de História de Arte da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, atribuiu a sua autoria ao pintor, escultor e arquitecto italiano. Joannides foi abordado pelo seu proprietário, um coleccionador particular britânico, no Outono de 2014 para que o perito avaliasse as peças. Foi aí que a investigação começou, com o professor de Cambridge a associá-los a Folha de estudos com a Virgem abraçando Jesus (c. 1508), um documento da autoria de um aluno de Miguel Ângelo (1475-1564) que reproduz fielmente vários esboços do mestre florentino. A sua datação, operada através de testes realizados na Universidade de Oxford, coloca-os no início do século XVI, mais precisamente entre 1506 e 1510, e teve então como pista fundamental a folha de esboços que se encontra no Musée Fabre, em Montpellier. Nela está uma composição com grandes semelhanças com estas peças e o seu tema, pouco usual, dos bacantes, montados em panteras, animais que na mitologia são dedicados a Baco, deus do vinho e do excesso na sua versão romana. Num dos cantos dessa folha, está uma pantera e um jovem musculado que monta o felino. O desenho tinha o traço vigoroso que Miguel Ângelo empregava quando planeava escultura. As panteras fornecem outra pista, visto que há um conjunto de desenhos associados ao mestre que representavam tigres e panteras que se encontram no Museu Albertina, em Viena.
As peças terão sido feitas logo a seguir a Miguel Ângelo ter acabado o seu famoso David e quando começava o seu trabalho para o tecto da Capela Sistina. Não são um par gémeo uma vez que um dos homens é mais velho (e é representado com barba), embora com uma aparência ágil, enquanto o outro é mais jovem e atlético. Sabe-se que além das suas conhecidas e magistrais peças em mármore, Miguel Ângelo trabalhou em bronze, mas não restaram quaisquer esculturas em metal da sua autoria – fez um David de bronze para um castelo francês, que se perdeu durante a Revolução Francesa, e uma estátua do Papa Júlio II, que foi derretida em Bolonha durante conflitos para o metal ser usado para a artilharia. Agora, a equipa de historiadores de arte, cientistas e peritos em anatomia assegura que estas duas peças cujo paradeiro foi incerto durante séculos até surgirem, em 1878, na colecção de Adolphe de Rothschild – são conhecidos como os Bronzes Rothschild  – são mesmo as únicas peças de bronze de Miguel Ângelo do planeta, se a atribuição estiver correcta e for reconhecida.
Estarão expostas no Museu Fitzwilliam, em Cambridge, até 9 de Agosto, depois de um percurso que começa em 1878 com sugestões de que poderiam ser de Miguel Ângelo, mas também de Jacopo Sansovino ou Tiziano Aspetti. Também o holandês Willem Danielsz Van Tetrode foi considerado seu potencial autor, assim como Benvenuto Cellini, a quem terão sido associadas as peças. Em 1957, saem da posse da família Rothschild – que se pensa que os terá comprado aos reis de Nápoles, os Bourbon – para as mãos de um colecionador privado francês e só voltam a ser vistas em público em 2002, num leilão da Sotheby’s em Londres. Descritas como sendo da “escola florentina, meados do século XVI”, foram vendidas por 1,5 milhões de euros e chegaram a ser expostas em 2012 na Royal Academy, no âmbito da exposição Bronzes, onde já se arriscava que pertenciam ao “Círculo de Miguel Ângelo”. Atualmente pertencem a um colecionador particular britânico, que se quer manter anónimo.
Foram usadas técnicas de termoluminescência para datar as esculturas e os núcleos das peças foram sujeitos a exames de imagiologia para concluir que os métodos de feitura coincidem com as práticas florentinas. Foram também feitos exames raios X e comparadas formas anatómicas e traços das suas representações por Miguel Ângelo, concluindo-se que estas, nomeadamente a forma como representa os corpos musculados e suas torções musculares, a curvatura das costas e os abdominais exacerbados, tinham a precisão e correcção que eram marcas do mestre italiano. Incluir estas figuras no rol de obras de Miguel Ângelo "é uma atribuição perigosa de se fazer", admite Paul Joannides, porque "a cada ano ou par de anos, alguém aparece com uma nova pintura ou escultura atribuída a Miguel Ângelo e 99,99% das vezes são atribuições fantasiosas". Mas um dos seus argumentos, explica, tem por base exactamente a questão anatómica. Entre os artistas mais reputados à época, só ele e Leonardo da Vinci tinham conhecimentos tão profundos de anatomia como aqueles reproduzidos nestas peças. "Na verdade na altura não havia mais ninguém que fosse, de alguma forma, um candidato alternativo plausível", diz Joannides. E Peter Abrahams, professor de Anatomia Clínica na Faculdade de Medicina da Warwick University, que integrou esta equipa, diz que os detalhes da musculatura são como os de David. Alude ainda às semelhanças entre estes nus e aqueles que se encontram representados na Capela Sistina, no Vaticano. "Até um tendão peroneal é visível, bem como o arco transverso do pé", sublinha Abrahams no livro que detalha a investigação e que acompanha a divulgação dos bronzes. A equipa é formada por Joannides, de Cambridge, Victoria Avery, conservadora de artes aplicadas no Museu Fitzwilliam, Robert van Langh e Arie Pappot, peritos de conservação do Rijksmuseum, e Peter Abrahams, da Warwick University. Participaram também na investigação o historiador de arte Charles Avery, o comerciante de arte Andrew Butterfield e o crítico Martin Gayford. Segundo Joannides, apesar de a equipa ser internacional, ainda não foram consultados quaisquer peritos italianos.

Bronzes Miguel Ângelo
Os dois bronzes de cerca de um metro de altura cada.
Desenhos Miguel Ângelo
Pormenor da folha com cópias de esboços de Miguel Ângelo, onde se vê a pantera e um jovem musculado que a monta estavam num canto.
Bronzes Miguel Ângelo
Pormenor do jovem.
Desenho Miguel Ângelo
Detalhe de um desenho de Miguel Ângelo, de 1503/4, da colecção do Museu Britânico.
Bronzes Miguel Ângelo
Pormenor do trabalho das costas.
Desenho Miguel Ângelo
Desenho de Miguel Ângelo que mostra semelhanças com a escultura.