23/12/2016

Museu Bernardino Machado em Famalicão

José Francisco da Cruz Trovisqueira, regressado à terra na segunda metade do século XIX, ali manda construir o agora conhecido como palacete Barão de Trovisqueira. Aquele homem, que emigrara aos 10 anos para o Brasil, fez do regresso um constante desafio contra o marasmo. Edificou uma fábrica de fiação em Riba de Ave, equipada com tecnologia inovadora para a época. Exerceu cargos políticos, foi chefe local do Partido Progressista, deputado em duas legislaturas e presidente da Câmara de Vila Nova de Famalicão. Com ele estava António Luís Machado Guimarães, pai de Bernardino Machado, futuro presidente da República. Com outros brasileiros de torna-viagem foram fundamentais para o desenvolvimento do concelho, através da criação da Misericórdia e, muito em particular, de escolas primárias essenciais para a alfabetização de um povo no essencial analfabeto.
O palacete Barão de Trovisqueira é agora o Museu Bernardino Machado, que comemora 15 anos de existência com duas homenagens. Uma, a Elzira Dantas Machado, casada com Bernardino, com quem teve 19 filhos. A outra, a Júlio Machado Vaz, médico e professor, neto do ex-presidente da República, que doou ao Museu o seu rico espólio documental, correspondência, fotografias e postais ilustrados legados pelo seu avô.
Elzira Dantas, que terá o seu nome atribuído à praceta contígua ao Museu, distinguiu-se ao longo da vida pelo seu papel na defesa dos direitos das mulheres. Foi uma das fundadoras da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, em 1909. Em 1916 preside à Associação de Propaganda Feminista. Com o deflagrar da I Grande Guerra e a participação de Portugal no conflito, ajuda a criar a Cruzada das Mulheres Portuguesas, centrada no apoio aos soldados e às suas famílias.
Uma visita ao Museu proporciona uma suculenta viagem informativa à volta dos grandes momentos da vida de Bernardino Machado. Não é apenas o seu percurso pessoal. É também o modo como se estabelecem as relações com os factos, os acontecimentos, as situações que marcaram o tempo da sua longa vida. Morreu em 1944 com 93 anos de idade. Para trás ficava uma intensa participação nos grandes eventos políticos nacionais.O catedrático coimbrão – foi, com 27 anos, o mais jovem catedrático de sempre na academia de Coimbra - iniciou a sua atividade política como monárquico. Em 1882 foi eleito deputado pelo Partido Regenerador e, em 1890, o corpo catedrático da Universidade elegeu-o Par do Reino. Em 1893 assumiu a pasta das Obras Públicas.
Aderiu à Maçonaria e chegou a grão-mestre. Depois de, em 1903, ter aderido ao Partido Republicano Português, passou pouco depois a dirigir o partido. Em 1910 foi Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo Provisório Republicano.
Eleito Presidente da República entre 1915 e 1919, cargo que voltou a desempenhar em 1925, Bernardino Machado foi deposto pelo golpe de 28 de maio de 1926 e por um seu ex-discípulo: Sidónio Pais. Obrigado a renunciar ao cargo, partiu para um longo exílio entre 1927 e 1940.
A figura de Bernardino Machado ocupa um natural lugar de destaque no Museu. Entre uma panóplia de documentos, quadros, fotografias, adereços, vestuário, lá estão dois elementos fulcrais para definir a figura em que tornou. Para lá do bigode, havia a bengala e a cartola. Nos corredores da Assembleia da República, Bernardino era muitas vezes alvo de comentários por sistematicamente chegar atrasado aos debates. Desarmados pela extrema delicadeza e urbanidade de Machado, amigos e adversários necessitados de encontrar uma culpa ou uma desculpa, inventaram uma possibilidade: Bernardino Machado não era indelicado ao ponto de não cumprir horários. Mas era muito cioso do respeito pela sua cartola, que o fazia perder muito tempo. Então, se Bernardino chegava atrasado, a culpa era da cartola.
Museu Bernardino Machado
Vista exterior do palacete Barão de Trovisqueira.
palacete Barão de Trovisqueira
Museu Bernardino Machado.

22/12/2016

O Museu Universal. Do sonho de Napoleão a Canova. Exposição em Roma

Um retrato do Papa feito por Rafael, uma escultura clássica que representa Laocoonte com os filhos, a celebrada Vénus Capitolina, um anjo delicado de Perugino e um Cristo em agonia descido da cruz, rodeado de mulheres, pintado por Correggio, estão entre as dezenas de obras agora expostas nas galerias do Palácio do Quirinal, em Roma. O Museu Universal. Do sonho de Napoleão a Canova (até 12 de Março) mostra ainda pinturas de artistas como Ticiano, Veronese, Tintoretto, Carracci ou Guido Reni, unindo-as não apenas uma época ou um território, mas o facto de terem feito parte do lote de obras que o exército de Napoleão Bonaparte confiscou entre 1796 e 1814. Objectivo? Criar em Paris um grande e ambicioso museu capaz de acolher o que de melhor se produzira desde a antiguidade até à data e que viria a ser o embrião do actual Louvre. Um museu para a arte em toda a sua glória e para glorificação do imperador dos franceses, garantindo que se perpetuava, assim, a memória das suas conquistas (o seu nome, nada subtil, seria precisamente Museu Napoleão).
Dito isto, está explicado a inclusão de Napoleão no título da exposição, falta falar de Canova. O escultor, arquitecto e diplomata Antonio Canova (1757-1822) teve um papel fundamental em garantir que mais de 500 pinturas que pertenciam a palácios, conventos e igrejas dos estados papais, assim como dezenas de esculturas, entre elas o célebre Apolo Belvedere que hoje faz parte da colecção dos Museus Vaticanos, regressavam a casa.
Em O Museu Universal. Do sonho de Napoleão a Canova pode ver-se, assim, uma mostra do que foi espoliado e do que foi depois devolvido (dizem os números que 80% das obras terão voltado), em várias e penosas viagens de carroça, com muitos incidentes à mistura (o grupo escultórico de Laocoonte, de c. 40 a.C., caiu quando a coluna em que seguia atravessava os Alpes italianos e partiu-se em vários pedaços). Mas, como o mundo não é a preto e branco e, como gostam de dizer os optimistas incorrigíveis, é sempre possível encontrar algo de bom num cenário à partida catastrófico (o do roubo a mando do general e, mais tarde, imperador), a exposição lembra também que foi na ressaca dos saques napoleónicos e do regresso a Itália das obras que tinham sido levadas para Paris que a divulgação da arte junto do grande público conheceu um incremento, com a criação de vários museus que estão hoje entre os mais importantes do país (a Galeria da Academia, em Veneza, e as pinacoteca de Bolonha e de Milão). Foi assim, aliás, um pouco por todos os territórios europeus que o imperador francês foi anexando ao longo de sucessivas campanhas. E, curiosamente, tendo sempre o projecto do Louvre como referência.
A exposição nas galerias do Quirinal, fala-nos, por isso, de uma época em que, tendo o sonho de Napoleão presente, políticos e académicos perceberam que a arte italiana podia ser apresentada como um ingrediente essencial na formação da identidade europeia, na criação de uma linguagem comum, algo que parece hoje tão importante como há 200 anos.
Chorando sobre Cristo Morto, de Paolo Veronese, c. 1548
Chorando sobre Cristo Morto, de Paolo Veronese, c. 1548.

14/12/2016

Restauro do túmulo do rei D. Dinis

Para chegar ao trono teve de enfrentar um Afonso – o irmão – e para se manter no trono foi obrigado a lutar contra outro – o filho. Entre o primeiro e aquele que viria a ser o seu sucessor como Afonso IV, D. Dinis teve uma vida cheia e uma palavra a dizer sobre a forma como seria recordado depois de morrer. Escolheu o lugar em que haveria de ser sepultado e aprovou o túmulo que para ele mandou construir, o primeiro de um monarca português com uma jacente (escultura deitada sobre a tampa do sarcófago, neste caso representando o rei), o primeiro de um monarca português a receber autorização do próprio Papa para ser colocado dentro de uma igreja e não num espaço anexo, como era hábito.
Giulia Rossi Vairo, investigadora da Universidade Nova de Lisboa é autora de uma tese que olha para o monarca e para a sua mulher, que ficaria conhecida como rainha Santa Isabel, a partir da arte tumulária que lhes está associada (D. Dinis de Portugal e Isabel de Aragão in vita e in morte. Criação e transmissão da memória no contexto histórico e artístico europeu). Esta historiadora realça o papel exercido por D. Dinis na administração do território, na agricultura e na construção naval, na educação e na cultura, e tem no túmulo que outrora ocupou um lugar de destaque a meio da igreja do Mosteiro de Odivelas, entre a capela-mor e o coro das monjas que ali viviam em regime de clausura, outro reflexo de inovação. O rei quis determinar que imagem sua ficaria para a eternidade. E a rainha também. Isso é muito moderno para a época. São os primeiros reis portugueses a fazê-lo. D. Dinis (1261-1325) manda fundar este mosteiro cisterciense que obedecia à casa-mãe de Alcobaça, onde até aí se sepultavam os reis e sua descendência, e que é também ele que, por um breve período, o transforma num panteão régio.
É precisamente o seu túmulo, seriamente danificado pelo terramoto de 1755 (a abóbada da igreja abateu-se sobre ele), e sujeito a inúmeras intervenções, sendo as mais abrangentes dos meados do século XIX – foi a rainha D. Estefânia que a ordenou – e dos anos 1960, que a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) e a Câmara Municipal de Odivelas querem ver restaurado. Depois de anos de quase esquecimento, dirão muitos, as duas entidades juntaram-se para dar renovada dignidade ao túmulo do sexto rei de Portugal, um homem que, durante quase meio século de governo, consolidou as fronteiras, revolucionou a agricultura (daí o cognome O Lavrador), revitalizou a exploração mineira, impulsionou o comércio, fundou a primeira universidade, travou uma guerra civil (1319-1324) e ainda teve tempo para escrever poesia (é autor de dezenas de cantigas de amor e de amigo, referência das letras trovadorescas em Portugal e fora dele).
O seu sarcófago monumental ocupa hoje uma capela lateral do mosteiro que é monumento nacional desde 1910 e está entregue ao Ministério da Defesa (segundo a DGPC, a autarquia espera há já algum tempo resposta a um pedido para que o edifício passe para a sua guarda).
Nesta primeira fase, que deverá terminar no final de Dezembro, os trabalhos vão concentrar-se na limpeza do sarcófago. O Instituto Politécnico de Tomar vai agora estudar amostras da pedra e da tinta usada para decorar o sarcófago para que se possa determinar a sua idade. Nesta fase é efetuado o diagnóstico e um mapeamento do que é original e dos restauros. O que não significa que haja intenção de retirar o que o tempo lhe foi acrescentando, por mais despropositado que hoje pareça aos técnicos de conservação, que se regem por uma cartilha de intervenção que evita as reconstituições e deixa bem visíveis quaisquer alterações ao original. Hoje sabemos que a intervenção deve ser mínima, que devemos manter lacunas e omissões, que não deve haver qualquer especulação. No passado não era assim, mas os restauros do passado também fazem parte da história e, por isso, devem ficar.
Ninguém sabe como o túmulo era antes do terramoto e, se alguns defendem que lhe falta nas mãos a espada que era comum nas jacentes dos reis europeus da Idade Média, outros há que levantam a hipótese de ela nunca ter existido. Neste caso, como em tantos outros, são mais as dúvidas do que as certezas. Por que razão é a cabeça do rei tão desproporcional face ao resto do corpo? E porque segura ele um pedaço do manto, num gesto tipicamente feminino? Seria o túmulo em calcário colorido desde o começo ou veio a ser pintado no grande restauro do século XIX?
Certo é que o rei viu o sarcófago concluído e o aprovou – seja qual for a imagem que dele dava, D. Dinis achou-a adequada.  A historiadora de arte Carla Varela Fernandes já publicou estudos sobre este túmulo (O bom rei sabe bem morrer. Reflexões sobre o túmulo de D. Dinis). No primeiro dos testamentos que deixou, o de 1318, D. Dinis determina que o Mosteiro de Odivelas, cuja construção começa em 1295, deverá receber o seu túmulo e o da mulher, D. Isabel. Mas, num segundo documento, quatro anos mais tarde, muda de ideias. Para essa deriva de opinião terá contribuído a guerra civil que opôs D. Dinis ao filho Afonso, que temia ver o pai nomear como sucessor o seu meio-irmão, Afonso Sanches, filho bastardo do monarca e certamente o seu predilecto (ainda para mais trovador como o pai), e o facto de a rainha estar ainda longe de ser a figura que viria a promover a reconciliação entre o rei e o herdeiro legítimo.
“O casal zanga-se, a guerra separa-os, e nem mesmo a ligação emocional e até financeira que têm a Odivelas resolve as coisas”, diz a historiadora de arte Giulia Rossi Vairo, lembrando que a rainha está sepultada no Convento de Santa Clara-a-Nova, em Coimbra. “Até o Papa lhes pede que se reconciliem porque a desunião do casal era a desunião da coroa, o que podia ser perigoso. E pede também que Isabel reconcilie pai e filho, o que acaba por fazer.” Rossi Vairo não sabe se foi o rei se a rainha quem determinou que queria estar sozinho por toda a eternidade, embora cronologicamente essa decisão pareça ter cabido ao rei, que morreu primeiro. “Não sabemos, mas não acredito que a rainha não tivesse conhecimento da decisão do rei. E é Isabel de Aragão que depois escolhe Coimbra e também aprova o túmulo que para ela é construído. Estamos a falar de uma mulher de personalidade forte, com dinheiro e influência em Portugal e não só. Ela também não é uma rainha qualquer.”
A segunda fase dos trabalhos de conservação e restauro só começará depois de reunida e tratada toda a informação do levantamento que está agora em curso. A intervenção deverá depois estender-se ao outro túmulo do mosteiro, que pertencerá a um dos netos de D. Dinis (durante muito tempo acreditou-se que nele jazia uma das suas duas filhas bastardas – ao todo o rei teve sete filhos ilegítimos –, mas hoje as teses andam entre os netos João e Dinis, infantes que terão morrido com cerca de um ano).
Não está afastada a possibilidade de os restos mortais do monarca virem a ser estudados durante este processo, embora não haja ainda qualquer projecto nesse sentido.
túmulo de D. Dinis Odivelas
Restauro do túmulo de D. Dinis.
túmulo de D. Dinis Odivelas
Pormenor do jacente.
túmulo de D. Dinis Odivelas
Jacente do túmulo de D. Dinis.

Descoberto desenho de Leonardo da Vinci datado de 1482-85

Um médico aposentado francês entra numa importante leiloeira de Paris levando consigo uma pasta de cartão com 14 desenhos, quase todos italianos e dos séculos XVI e XVII, que pertencera ao seu pai, um bibliófilo. Tivera-os em casa durante anos sem lhes prestar atenção e entretanto decidira avaliá-los. Estava muito longe de saber que entre aqueles papéis que durante tanto tempo desconsiderara estava um estudo para um martírio de S. Sebastião semelhante a outros que Leonardo da Vinci fizera. Mais, estava muito longe de sequer supor que se tratava, na verdade, de um original de um dos mestres incontestados do Renascimento. Thaddée Prate, director do departamento de pintura e desenho antigos da leiloeira Tajan, deteve-se naquele santo em tronco nu mas sem as flechas que habitualmente marcam a sua iconografia, apercebeu-se da sua qualidade sem se atrever a estabelecer-lhe qualquer parentesco e resolveu consultar outro especialista, o marchand Patrick de Bayser. Este especialista começou por lhe chamar a atenção para o desenho no verso da folha que mostra o santo atado a uma árvore. Trata-se de um pequeno estudo científico sobre a sombra da luz de uma vela que inclui anotações em espelho, algo comum em Leonardo da Vinci (1452-1519). Depois, este especialista nos grandes mestres da pintura antiga perguntou a Thaddée Prate se reparara que o autor era canhoto (como Leonardo). Ambos ficaram estupefactos com a mera possibilidade de estarem perante um desenho do mestre. Como nestas atribuições sempre sujeitas a polémicas o melhor é jogar pelo seguro, Prate ouviu também Carmen C. Bambach, curadora de desenho espanhol e italiano do Metropolitan Museum. Confirmou tratar-se de um Leonardo, como lhe fixou uma data – segundo ela, o desenho terá sido feito entre 1482 e 1485, numa fase inicial da estadia do artista na corte milanesa, período em que pintou a primeira versão de A Virgem dos Rochedos, que hoje faz parte da colecção do Museu do Louvre, em Paris (a segunda versão está na National Gallery de Londres).
Encontrado o autor não foi difícil aos profissionais da leiloeira parisiense atribuir-lhe um valor – qualquer coisa como 15 milhões de euros. Há 15 anos que não aparecia um desenho de Leonardo no mercado de leilões. A última vez que isso aconteceu foi em Londres, quando a Sotheby’s levou à praça um estudo posterior representando Hércules (1506-1508) que acabaria por vender mais tarde, por meio milhão de euros, ao Met e a um casal de coleccionadores privados.
Segundo a publicação especializada The Art Newspaper, Leonardo faz referência a oito representações de S. Sebastião no Codex Atlanticus (1478-1519) – a sua célebre colecção de 12 volumes que guardam desenhos, textos e estudos científicos sobre os mais diversos temas, hoje à guarda da Biblioteca Ambrosiana de Milão – e, dessas oito, só três estão hoje identificadas, sendo esta uma delas (as outras duas estão em museus em Hamburgo, Alemanha, e em Baiona, França).
Para Carmen C. Bambach, o que agora foi descoberto é o mais desenvolvido desses três estudos para uma possível pintura deste santo que, segundo a tradição, foi um soldado romano e que acabou por morrer por ordem do imperador Diocleciano. Uma pintura que, entretanto, se terá perdido. Nele, diz a curadora do Met, torna-se evidente que Leonardo mudou várias vezes de ideias em relação à posição da figura, que é explorada com uma imensa energia. “É de uma espontaneidade furiosa.”
O desenho do santo martirizado, com 19x12,7 cm, está agora protegido por uma moldura dourada italiana da Renascença, que repousa sobre um velho cavalete de madeira numa das salas da leiloeira Tajan. Se irá daí para as paredes de um grande museu ou para as da sala de um oligarca russo, não se sabe ainda.
Estudo S. Sebastião Leonardo da Vinci
O desenho terá sido feito em Milão, entre 1482 e 1485, defende uma curadora do Metropolitan Museum especializada na obra sobre papel de Leonardo da Vinci.

05/12/2016

Amuletos com seis mil anos fabricados pelo método de “fundição por cera perdida”.

Edificado na planície de Kachi, no Paquistão, Mehrgarh é um dos sítios arqueológicos mais importantes para estudar o período Neolítico no Sul da Ásia. Considerado o povoamento agrícola mais antigo da civilização do vale do Indo, Mehrgarh foi fundado por volta de 7000 a.C. e abandonado em 2500 a.C. Agora descobriu-se que foi em Mehrgarh que foram fabricados os primeiros objectos pelo método de “fundição por cera perdida”, usado para fazer peças com muitos detalhes. Esses objectos são amuletos, que não têm mais de 20 milímetros de diâmetro.
Para chegar a esta conclusão, uma equipa de cientistas franceses, coordenada pelo físico Mathieu Thoury, da Universidade de Versalhes em Saint Quentin-en-Yvelines, fez uma viagem até ao nanomundo dos amuletos, e publicou os resultados na revista Nature Communications.
Antigos e minúsculos – é como podemos classificar, à primeira vista, os amuletos desta história. Mas a sua idade e dimensões podem guardar muitos segredos que não estão ao alcance do olho humano sem a ajuda da ciência. Para sermos exactos, estes amuletos datam do período do Neolítico (entre 12.000 a.C. a 4000 a.C.) e o início da Idade do Cobre (aproximadamente até a 1200 a.C.). Ou seja, têm cerca de seis mil anos. Com uma forma circular, são compostos por seis raios, cada um com dez milímetros.
Até aos nossos dias, apenas chegaram intactos três amuletos. A este conjunto, juntam-se mais dois amuletos da mesma colecção, mas de que só restam algumas partes. A descoberta dos cinco amuletos foi feita em 1985, numa escavação arqueológica em Mehrgarh, que decorreu de 1981 a 1990.
Aliás, a descoberta do povoamento de Mehrgarh ocorreu em 1974, por uma equipa de arqueólogos coordenada por Jean-François Jarrige e Catherine Jarrige. Entre 1974 e 2000, houve várias escavações, que chegaram aos 11 metros de profundidade. Até ao momento, foram encontrados 50 mil objectos, entre os quais cerâmicas, figuras de barro, azulejos e metais.
Com o “resgate” dos amuletos de Mehrgarh do solo, tem-se procurado perceber a sua função. Numa primeira hipótese, a equipa do actual estudo considerou-os “simples ornamentos”, tal e qual como outras centenas de missangas para pulseiras e colares descobertas no povoamento. Contudo, o detalhe como foram feitos os amuletos lançou outra hipótese: será que eram objectos ornamentais que tinham uma função religiosa ou ritual?
Para responder a esta questão, os cientistas procuraram perceber como é que os amuletos tinham sido fabricados. “O fabrico específico pela fundição por cera perdida, em vez do processo clássico de moldes, abriu a possibilidade de uma função mais religiosa e ritual, como amuletos. Segundo esta hipótese, o molde seria escolhido pelo seu ‘proprietário’ e depois convertido em metal por um metalúrgico”, conta-nos o físico Mathieu Thoury. Até agora, não se sabia como os metalúrgicos de Mehrgarh tinham fabricado os amuletos. Nem como isso podia ser mais importante do que parecia.
Afinal, tinham sido fabricados pelo método de fundição por cera perdida. E, ao descobrir-se isto, conclui-se que este método terá surgido no povoamento de Mehrgarh.
Não se pense que este processo apenas foi realizado há seis mil anos. Ainda hoje este é usado para fundição de objectos tão úteis como um porta-chaves, embora tenha sido aperfeiçoado. E no que consiste a fundição por cera perdida?
No Neolítico, começava por se construir os amuletos com cera de abelha, um material que derrete a temperaturas baixas. Depois, os amuletos em cera eram cobertos com argila, formando o molde. A argila era em seguida aquecida, para remover do interior a cera. O metal era despejado no interior da argila, preenchendo o espaço antes ocupado pela cera. Por fim, o molde de argila era partido e retirava-se o objecto.
Durante o fabrico de uma peça, era necessário criar canais de vazamento de várias dimensões, para libertar gases que, de outra forma, podiam danificar a peça. Este processo permitia – e ainda hoje permite – criar peças com muitos detalhes. Foi então assim que os habitantes de Mehrgarh fizeram os minúsculos amuletos.
Para descobriu como os amuletos foram fabricados, a equipa de Mathieu Thoury usou a espectrometria de fotoluminescência – método que analisa a emissão luminosa dos componentes dos objectos, nomeadamente a radiação ultravioleta e infravermelha. Assim, foi possível visualizar microestruturas invisíveis em microscópios convencionais.
Mas nem todos os componentes dos amuletos foram facilmente desvendados. Aliás, foram necessários cerca de 15 anos, depois de terem sido feitas melhorias à fotoluminescência, para ser possível uma “análise mais pormenorizada” dos amuletos, como salienta o artigo científico.
O caminho até à descoberta do processo de fabrico dos amuletos teve duas fases. Num primeiro momento, há cerca de 15 anos, viu-se em radiografias que os amuletos eram constituídos por cobre puro. Este elemento formava umas ramificações (dendrites), que estão escondidas na morfologia dos raios do amuleto. Desde então sabia-se também que existia mais um elemento que se ligava ao cobre, mas não se sabia qual era.
Juntando as análises feitas com a radiação por sincrotrão e a fotoluminescência, descobriu finalmente o elemento mistério: o óxido cuproso. Este misterioso elemento (que ocupava o espaço entre as dendrites, ligando o cobre) tornou-se mais visível através da observação da radiação infravermelha. Desta forma, confirmou-se que o amuleto tinha sido formado por uma liga de cobre e óxido cuproso (uma mistura dita de “eutéctica”, que se funde facilmente).
Esta mistura deu-se durante o processo de solidificação das dendrites. Primeiramente, as dendrites eram apenas compostas por cobre puro e, depois da solidificação à temperatura ambiente, formaram-se interdendrites de óxido cuproso (que oxida facilmente ao ar). A estas dendrites dentro das dendrites, a equipa chama “estruturas dendríticas fantasmas” e que são frequentes em estruturas de cobre antigas.
O óxido cuproso ter-se-á formado acidentalmente nos amuletos, numa fase de fundição a 1066 graus Celsius. “O cobre absorveu uma pequena quantidade de oxigénio durante o processo, o que poderá explicar a mistura de microestruturas observadas”, salienta um resumo da Nature Communications.
Deixados no solo durante largos anos, no período de abandono de Mehrgarh os amuletos também acumularam uma percentagem extra de óxido cuproso. “Os contrastes observados nos resultados da fotoluminescência detectaram diferentes malformações nos cristais entre as duas cuprites [o óxido cuproso e o cobre]: uma variação do conteúdo de átomos de oxigénio na mistura eutéctica e os resultados da corrosão posterior”, explica o comunicado da equipa.
Outra das conclusões foi que os amuletos foram fabricados de uma única vez, e não em partes separadas, devido precisamente à fundição por cera perdida. “A revelação do processo metalúrgico deste amuleto permitiu descobrir que as escolhas técnicas dos metalúrgico de Mehrgarh levaram à invenção do processo de fundição por cera perdida”, resume Mathieu Thoury. No artigo científico, acrescenta-se que a preservação dos amuletos ao longo de seis mil anos mostra que a fundição a cera perdida é um “sucesso irrefutável e permanente”.
Neolítico
O sítio arqueológico Mehrgarh.
Neolítico
Reconstituição do processo de fundição por cera perdida.
Neolítico
Foram encontrados cinco amuletos. Três estão intactos e dois apenas têm algumas partes.