30/06/2014

Portugueses enviados para os Campos de Concentração do nazismo (investigação do jornal Público)

François Vallon conheceu Maria Barbosa em 1962, no restaurante de Lyon onde ela trabalhava. François tinha 28 anos, Mariette, como era tratada em França, 40. “Ela trabalhava na cozinha, mas às vezes servia à mesa. O primeiro contacto que tivemos foi por causa do meu nome: ela disse-me que eu tinha o mesmo nome do irmão dela, desaparecido após a deportação para a Alemanha.” François, hoje com 80 anos, está sentado na sala da sua casa, a poucos quilómetros da pequena localidade de Port-Sainte-Marie, no Sudoeste de França. O cemitério onde repousa Maria Barbosa, com quem se casou em Novembro de 1964, fica a poucas dezenas de metros da habitação, no topo de uma subida acentuada, que François percorre amiúde, desde que a portuguesa morreu, em 2008. Na campa, o marido de Mariette colocou duas placas: uma que identifica a mulher como “antiga deportada”; outra dedicada ao irmão dela, Francisco Barbosa da Costa, com a indicação “morto durante a deportação”. Os irmãos Barbosa, Mariette e Francisco, chegaram a França ainda crianças, acompanhados por uma irmã mais velha, Rosa, e pelos pais, João Barbosa e Diolinda de Magalhães. Os três filhos do casal Barbosa tinham nascido em Vilar das Almas, Ponte de Lima, onde a família residia antes de se instalar na região de Lyon, em França. Aí, João e Diolinda teriam ainda mais dois filhos. Mariette, nascida a 23 de Fevereiro de 1922, tinha apenas 17 anos quando a guerra rebentou, mas em 1944 a jovem portuguesa de 22 anos, que residia, então, em Saint-Fons, estava já envolvida no combate ao nazismo. “Não sei [se ela era politizada]. Certamente um pouco. Em 1944, ela vivia maritalmente com um homem e ele, sim, era envolvido politicamente”, recorda François Vallon. A portuguesa foi detida a 10 de Janeiro de 1944, durante uma operação desenvolvida pela Milícia francesa, uma organização ao estilo da Gestapo alemã e que funcionava em articulação com ela. François guarda ainda a página de um jornal local francês, cuja data e o nome desconhece, na qual é descrita a operação que levou à detenção daquela que haveria de ser a sua mulher. Naquela segunda-feira à noite, pelas 20h, Mariette estava numa casa conhecida como Pommerol, alugada por Edmond Partouche, resistente do maquis da localidade de Azergues, ligado à rede resistente comunista Francs-Tireurs et Partisans Français (FTPF). Segundo o artigo, Mariette integraria uma outra rede, baptizada com o nome do primeiro resistente de Lyon condenado à guilhotina pelo regime de Vichy, em 1943, Émile Bertrand. René Fernandez, um jovem de 18 anos que se ia encontrar com o grupo, apercebeu-se da movimentação da Milícia na rua onde se encontravam os amigos e ainda os tentou avisar, mas acabou por ser assassinado. No interior da casa estavam Mariette Barbosa, Antoine Garcia e Daniel Agnes. Antoine é ferido num braço e consegue fugir, mas Mariette e Daniel são presos. “A minha mulher dizia sempre que a pessoa que foi presa com ela estava ali por acaso. Era um amigo de pessoas que pertenciam à Resistência, conhecia-os, queria vê-los, mas acabou detido”, relata François Vallon.
Para a jovem portuguesa, começava uma jornada de sofrimento que, ao longo dos anos, sempre teve relutância em recordar, como conta o marido: “Ela evitava falar e, quando via os documentários na televisão, dizia sempre: ‘Estão longe da verdade.’ Mesmo em Ravensbrück, mas sobretudo em Bergen-Belsen. Este era um campo que existiu durante muito tempo, mas no fim da guerra eles tentaram colocar ali toda a gente e era mais um lugar onde se morria. Ela explicou-me coisas… Que [os prisioneiros] eram obrigados a transportar os cadáveres e que, às vezes, as mãos ou os braços deles lhes ficavam nas mãos, por causa do elevado estado de decomposição.” Depois da rusga em Saint-Fons, Mariette esteve detida na prisão Montluc, em Lyon, até ser transferida para Compiègne, a 25 de Janeiro. Do pouco que Mariette lhe contou, François acreditava que a mulher tinha estado apenas nos campos de concentração de Ravensbrück e Bergen-Belsen, mas a verdade é que os arquivos do International Tracing Service (ITS), na Alemanha, que guardam todos os documentos sobre os campos de concentração nazis, têm vários registos que apontam para a presença de Mariette também no campo de Neuengamme, onde lhe atribuíram o número de prisioneira 5575. Não é de estranhar que tal tenha acontecido, uma vez que, como conta o investigador Pierre-Emmanuel Dufayel, em Un convoi de femmes, o livro que escreveu, dedicado ao transporte em que Mariette foi deportada: “Perto de 70% das mulheres que deixaram Compiègne a 31 de Janeiro foram transferidas ou empregadas num comando satélite. De Hamburgo à Checoslováquia, as ‘27.000’ seleccionadas para o trabalho foram dispersas por 17 campos diferentes.” É provável, por isso, que Mariette tenha sido transferida para um dos subcampos de Neuengamme e que, com a ordem de evacuação destes comandos, a 24 de Março de 1945, tenha sido enviada para Bergen-Belsen, onde, segundo o marido, chegou a contrair tifo, uma das doenças que ali grassavam.
Por esta altura, Bergen-Belsen estava transformado num verdadeiro campo de morte, com os prisioneiros abandonados à sua sorte. Inicialmente construído para ser um campo de prisioneiros de guerra, Bergen-Belsen recebe, nos últimos meses do conflito, milhares de prisioneiros de outros campos. Os alemães desistem de tentar lidar com a ausência de comida e as epidemias e deixam de entrar no campo, que se transforma num terreno em que os vivos convivem com os mortos tombados no solo e onde, como noutros campos, há relatos de canibalismo entre os prisioneiros esfomeados. O estado de grande parte dos detidos era de tal modo deplorável que a chegada dos britânicos, a 15 de Abril, e as medidas de emergência implementadas nas semanas seguintes não foram suficientes para impedir que mais de 13 mil pessoas morressem após a libertação. Mariette, contudo, sobreviveu. O seu nome consta numa lista de “repatriadas francesas” feita pelos próprios prisioneiros, com a indicação de que foi retirada do campo a 17 de Maio, “por camião”. A portuguesa chegaria ao Hotel Lutetia, em Paris — que desde a libertação da cidade funcionou como um centro de repatriamento para prisioneiros de guerra e dos campos de concentração e deslocados —, a 24 de Maio.
Para Mariette, a guerra não tinha, contudo, ficado para trás. A família não a recebeu de braços abertos e acabou acolhida por desconhecidos. “Ela contou-me uma coisa que a marcou, quando voltou a ver os pais. O seu pai fez uma reflexão pouco simpática. Ele disse-lhe: ‘Deixaste-te apanhar’, como se fosse um jogo de polícia e ladrão”, conta François Vallon. Maria descobriu, então, que o seu irmão Francisco também fora deportado e que, ao contrário dela, não regressara. A portuguesa nunca saberia que o irmão estivera ao mesmo tempo que ela em Bergen-Belsen e que morrera lá. Em 1947, o Ministério dos Antigos Combatentes e Vítimas de Guerra emitiu um “Acto de Desaparecimento” referente a Francisco, confirmando que ele fora detido e internado a 27 de Fevereiro de 1944 em Lyon e que “não existiu qualquer outra informação [sobre ele] depois de 27 de Junho de 1944”. Sem saber a razão da detenção do irmão, apesar de suspeitar de que ele se envolvera, de alguma forma, com a Resistência após a sua própria detenção, talvez na tentativa de saber o que lhe acontecera, Mariette vai continuar a procurar respostas sobre Francisco ao longo de toda a vida, incentivada, em grande parte, pelo marido, que lutou para que também ela tivesse acesso a todos os direitos concedidos aos Deportados Resistentes. Os pais e restantes irmãos de Francisco teriam, aparentemente, aceitado que ele não iria voltar. “Eles falavam muito pouco e o François [Francisco] foi rapidamente esquecido pelos outros membros da família. Ela dizia-me: ‘Eu também, se não tivesse regressado, teria sido esquecida rapidamente’”, recorda François Vallon.
Só em 2008 é que o ITS fez chegar a Port-Sainte-Marie os dados que permitiam traçar o percurso de Francisco Barbosa da Costa, nascido a 12 de Fevereiro de 1924, cerca de dois anos depois de Mariette. François recebeu a comunicação e guardou-a para si. “[Mariette] Já estava muito debilitada. A carta é de Janeiro de 2008 e a minha mulher morreu em Junho. Não quis que ela soubesse”, explica, agora, o viúvo. As informações do ITS mostram como Francisco foi constantemente transferido, desde a sua captura e a deportação para a Alemanha, num comboio que saiu de Lyon a 29 de Junho de 1944, em direcção a Dachau, até à sua morte. Em Dachau, Francisco recebeu o número de prisioneiro 75950 e permaneceu no campo principal até 21 de Novembro, altura em que foi transferido para o comando Weiss-See. Pouco depois, a 3 de Dezembro, regressa ao campo principal, apenas para ser transferido de novo, a 12 ou 14 de Dezembro para o subcampo Ohrdruf, do universo de Buchenwald. Aqui recebe um novo número de prisioneiro — 112418 —, que continuará a usar até as tropas norte-americanas se aproximarem e o campo ser evacuado. É neste contexto que Francisco é transferido, a 20 de Março de 1945, para Bergen-Belsen. Tinha 21 anos quando morreu, de causa desconhecida. Mariette Barbosa não soube o que acontecera ao irmão e também nunca terá sabido que o comboio que a levara para Ravensbrück tinha a bordo uma outra portuguesa, Maria d’Azevedo. François Vallon garante que a mulher nunca lhe falou de ter encontrado outros portugueses nos campos de concentração e ele não o estranha. “Ela tinha uma grande desconfiança, sobretudo em Ravensbrück, porque havia muitas suspeitas. Havia sempre o receio de que algumas mulheres pudessem falar, dar informações aos alemães”, diz.
Mariette tinha 21 anos quando foi deportada, Maria d’Azevedo, nascida no distrito do Porto a 21 de Fevereiro de 1901, já tinha 43 anos e seis filhos vivos. Se, no caso de Mariette, o envolvimento com a Resistência poderá ter sido uma influência do namorado, no caso de Maria d’Azevedo era uma luta enraizada na família. O seu marido, Américo d’Azevedo e o seu filho mais velho, Maurice d’Azevedo, também foram detidos pelos nazis, pelo seu envolvimento com os FTPF. A família Azevedo é referida logo em 1966, no livro On les nommait des étrangers… (Les immigrés dans la Résistance), em que se conta que Américo foi detido, pela primeira vez, a 1 de Maio de 1941. “O prisioneiro foi entregue aos alemães. Quatro meses de prisão pelos franceses, dois anos pelos alemães, o calvário da família Azevedo começa”, lê-se na obra de Gaston Larouche e de Boris Matline, coronel dos FTPF. De acordo com este livro, Américo foi “perdoado” pelos alemães em 1942, depois de ter ajudado a extinguir um incêndio na prisão, mas o português regressa à luta clandestina, com os FTPF e, a 29 de Setembro de 1943, é de novo preso. “Corajoso durante a luta, foi heróico sob tortura. Nenhum nome saiu da sua boca. Espancado diariamente, as suas costas não eram mais do que pisaduras e queimaduras. O bombardeamento da prisão acaba com o seu suplício”, lê-se no livro. Ironicamente, Américo terá morrido a 18 de Fevereiro de 1944, na cadeia de Amiens, durante um bombardeamento das forças Aliadas, denominado Operação Jericó, que pretendia libertar elementos da Resistência e prisioneiros políticos. Maria só saberá do destino do marido depois de ela própria regressar da Alemanha, para onde fora deportada, bem como o filho mais velho. O investigador francês Pierre-Emmanuel Dufayel explica à Revista 2 que Maria d’Azevedo foi presa a 17 de Novembro de 1943, “porque era uma resistente de um grupo dos FTPF, ela fazia o transporte de armas”. A portuguesa, nascida Maria da Silva, filha de Marcelino e Joaquina, foi internada em Amiens até ser transferida para Compiègne, a 25 de Janeiro de 1944. Maurice, de 19 anos, foi preso no mesmo dia que a mãe e os filhos mais novos dos Azevedo ficam sozinhos em Albert, onde a família residia, tendo sido acolhidos, segundo On les nommait des étrangers…, “pela esposa de um deportado”.
Maria d’Azevedo fica em Ravensbrück até 20 de Julho de 1944, altura em que é transferida para Buchenwald e, posteriormente, para o subcampo de Leipzig, que fornecia a fábrica de armas HASAG, onde recebeu o número de prisioneira 3845. A 13 de Abril de 1945, o campo é evacuado e Maria acaba por ser libertada, pelas forças Aliadas, durante esse processo, no início de Maio. A 21 de Maio de 1945, quatro dias antes de Mariette Barbosa, ela chega ao Hotel Lutetia, em Paris. O registo médico feito a Maria d’Azevedo quando chegou a Ravensbrück é um dos documentos preservados pelo ITS e revela o detalhe prestado à descrição dos prisioneiros. A ficha médica diz, por exemplo, que a mulher de 66,5 quilos e 1,56 metros de altura não necessitava de esterilização, não sofria de doenças venéreas ou de tuberculose. Diz ainda que Maria tivera oito filhos e que dois morreram quando eram ainda bebés. Maria é descrita como estando, em geral, “de boa saúde”.
Os dados sobre Maurice d’Azevedo são menos abundantes. Desde logo, subsistem dúvidas sobre se nasceu no Porto ou em França, no dia 8 de Julho de 1924, já que as duas versões aparecem em documentos diferentes. Maurice deixara Compiègne dias antes da mãe, num comboio que abandonou a cidade francesa a 22 de Janeiro de 1944, e foi transportado para Buchenwald. Aí, recebeu o número de prisioneiro 43118. Em Março desse ano, foi transferido para o comando Laura e, no final de Agosto, volta a ser deslocado, desta vez para o subcampo Dora-Mittelbau, onde os prisioneiros trabalhavam na abertura de túneis e nas fábricas subterrâneas, na produção de bombas. Não há informações sobre o que aconteceu, posteriormente, a Maurice.
Portugueses nos campos de concentração
O cartão de deportada de Maria Barbosa.

27/06/2014

Entrevista a Francisco Bethencourt a propósito do seu livro Racisms: from the crusades to the twentieth century

Diz que o racismo — é a tese principal do livro — tem sempre por detrás um projecto político. Qual era esse projecto por detrás da discriminação e segregação dos judeus e dos muçulmanos na Península Ibérica?
É um movimento de baixo para cima: as elites de cristãos velhos das cidades agregam à sua volta e são empurradas pelos estratos mais baixos da população de cristãos velhos contra os cristãos novos. Isto é um modelo absolutamente extraordinário de integração de estratos modestos, excluindo uma população de cristãos novos que tinha uma posição relativamente mais confortável do ponto de vista económico e social. O projecto político é mobilizado sobretudo pelas elites urbanas de cristãos velhos. Desde o início da Reconquista Cristã da Península Ibérica que temos um processo de ocupação de cidades e, mesmo que existam tratados de paz com as populações muçulmanas, elas acabam por ser excluídas dos centros urbanos. Perdem o acesso às propriedades mais valiosas dos centros, sendo objecto de migração forçada para zonas suburbanas. Há claramente uma competição pelas zonas mais privilegiadas das cidades. Mas não é tudo: sucessivas acções de discriminação vão impedir que os cristãos novos tenham acesso às ordens religiosas, a colégios, a universidades, lugares nos conselhos municipais, a posições de consultores junto do rei. Há também a competição por indústrias fundamentais, como a da seda em Granada, competição pelo acesso à terra, porque os mouriscos são herdeiros de toda uma tradição e competência de trabalho e de tecnologia. Só se justifica esta acção sistemática de discriminação dos cristãos novos e dos mouriscos porque há uma competição em torno de recursos económicos, sociais e políticos.
Ficou surpreendido com as pontes que conseguiu fazer entre o século XV português, os Estados Unidos e a África do Sul?
Acho extraordinária esta equivalência entre a integração da população cristã velha na Península Ibérica e a população de brancos no sul dos Estados Unidos e na África do Sul à custa da exclusão destas populações estigmatizadas. Na África do Sul, no século XIX, os africanos estão excluídos do trabalho especializado nas minas. É um sistema de segregação racial informal, não completamente definido pelo Estado e ainda pré-apartheid. Isto cria uma dinâmica de integração dos segmentos mais baixos da população branca à custa da exclusão da população africana ou de origem africana. Há outra questão que estou a reflectir para o meu projecto actual sobre a história da desigualdade: porque é que os Estados Unidos nunca tiveram fortes correntes socialistas? Uma das explicações tem a ver com esta segregação racial, que permitia às camadas mais baixas americanas brancas sentirem-se superiores às camadas afro-americanas. Por isso, sentiam-se mais identificados com as camadas altas brancas do que na Europa. Só cheguei à tese do racismo motivado por projectos políticos ao longo da investigação. Depois vi como havia equivalências históricas. Eu trabalhei muito no racismo não como uma linha, uma continuidade ou uma prática cumulativa mas como algo que aparece em determinados momentos históricos devido a contextos precisos.
O que é que quer dizer a prática cumulativa, não vamos ficando mais racistas?
Recusei logo numa primeira análise que o racismo é cumulativo, linear e vai crescendo. Depende muito dos contextos. E isto está também ligado a uma outra ideia que recuso que é a das origens do racismo. O meu livro não é sobre as origens do racismo mas como é que emerge em determinados contextos históricos e quais os significados que tem. Tinha também recusado como hipótese de trabalho a ideia do racismo ser inato. Não tenho qualquer elemento e desafio qualquer pessoa a mostrar que o racismo é inato na humanidade. Surge em contextos históricos muito precisos. Quando cheguei à tese que o racismo está sempre motivado por projectos políticos comecei a comparar os vários contextos que já tinha estudado e vi que há de facto equivalências curiosas.
Como é que evolui o conceito de racismo?
Racismo é uma noção do final do século XIX que designava a promoção de teorias e hierarquias raciais. Só nos anos de 1920 e 1930 veio a designar hostilidade contra determinadas raças. Com a psicologia social, cheguei a esta noção de “preconceitos relativos a descendência étnica combinados com acção discriminatória”. Penso que é uma noção suficientemente simples e concisa para funcionar historicamente. Consigo encontrar exemplos desde pelo menos o século XV de preconceitos combinados com acção discriminatória.
E o conceito de raça?
Raça é uma noção extremamente flexível. No final da Idade Média, designa o desenvolvimento de animais e plantas. É aplicada à aristocracia e à linhagem nobre no Norte de Itália e em França. Começa por cima. Depois em Espanha e Portugal começa a descer na hierarquia social. A noção de raça passa a estar ligada a mácula de sangue, a estigma, ao cristão novo que tem um defeito de origem. Com a expansão europeia, já no século XV e depois no século XVI com o tráfico de escravos, raça passa a designar também os povos africanos. A noção de raça passa a compreender estes estratos mais estigmatizados da população e a justificar essa suposta inferioridade dos africanos porque eram escravos. No século XVIII, por exemplo, há também a noção de raça de mulheres e, no século XIX, raça passa a ser equivalente a nação.
Com os nacionalismos passa a existir essa equivalência?
E isso dura até aos anos de 1930. Por isso, raça é uma noção muito flexível, muito adaptável, que estigmatiza mas, ao mesmo tempo, pode ser transformada numa coisa diferente. Hoje os afro-americanos reverteram a questão e transformam a raça numa forma de identidade colectiva contra a discriminação. Têm um sentimento e um desejo de raça.
Porque é que a expansão trouxe uma identidade étnica baseada na cor da pele? Porque o projecto político era pôr a Europa no centro do mundo?
Não exactamente. Justificar formas de domínio, sim. A expansão europeia é sempre um processo um pouco improvisado. Na maior parte dos casos resulta de iniciativas privadas, que no caso português são rapidamente controladas pelo rei ou pela família real. Improvisam-se viagens, conquista-se onde é possível, dependendo muito das condições locais. Este é um dos elementos interessantes, de distância em relação a um eurocentrismo.
Se saltarmos para a fase da consolidação dos impérios, não há uma identidade étnica mais baseada na cor da pele do que antes?
Sim e não. Desde quando é que os europeus se definem como brancos? Não é evidente. Os europeus do norte acham que os europeus do sul têm pele mais escura.
Os tais portugueses judeus…
Exacto. Há sempre estas discrepâncias internas europeias. É verdade que com o desenvolvimento da expansão europeia os europeus do sul passam a ver-se a si próprios como brancos, por contraste com a escravatura africana. Até meados do século XV, os escravos que existiam na Europa eram normalmente de origem eslava. Daí o nome “escravo”, que vem de eslavo. Eram transportados do Mar Negro pelos genoveses, mas esse circuito secou com a conquista de Constantinopla pelos turcos. Os portugueses, que já estavam em África em meados do século XV, viram a possibilidade de divergir o tráfico de escravos que ia para o Norte de África, África Oriental e mundo muçulmano para a Península Ibérica e para a Europa do Sul. Ainda havia mercado para a escravatura na Europa do Sul, enquanto no Norte havia sistemas de servidão diferentes. Esta transformação do tráfico de escravos de eslavo para africano teve importantes consequências: vai alimentar as plantações na América com o extermínio da população dos nativos-americanos e criar uma dinâmica de identificação de nativos com negros.
Vamos a um dos exemplos que dá quando fala do primeiro colonialismo na África Central. Estamos a falar do Reino do Congo, onde D. João II de Portugal trata os primeiros reis quase como iguais. Durou pouco tempo e a certa altura no livro chama-lhe um princípio encorajador…
Eu chamo isso?
Sim. Mas diz também que passado um século e meio os relatos mudam completamente e passamos da proximidade à estranheza. O que é que aconteceu pelo meio, falando um bocadinho dos processos?
Acho que as necessidades locais e os projectos locais são fundamentais. Não podemos ver a expansão europeia apenas de cima para baixo, mas incluir o que interessava aos outros continentes. Eu não quero parecer monomaníaco mas no princípio os portugueses precisavam de alianças, porque África não é a América. África tem civilizações baseadas na metalurgia, armas de metal, entidades políticas complexas. Tem condições de clima e de doença que são muito desfavoráveis para os europeus. Na África Ocidental do século XVII, a percentagem de mortalidade anual dos europeus era de 66 por cento. Na América, as doenças europeias exterminaram os nativos americanos. Nesta primeira fase, os portugueses em África precisavam de âncoras e tratavam os príncipes africanos como iguais do rei português. É o caso do rei do Congo. Houve duas tentativas anteriores para ter uma relação no continente, no Senegal e na Nigéria, que falharam. No Congo resultou porque os seus reis viram vantagens em aderir aos cristianismo. Depois, há uma erosão: o facto dos portugueses estarem interessados fundamentalmente no tráfico de escravos é desestabilizador porque se baseia na guerra. Ao fim de 150 anos há uma visão portuguesa, e dos missionários italianos também, que diminui os africanos e considera-os selvagens sem remédio. Os africanos também têm os seus próprios projectos, que não são compatíveis com esta permanente hierarquia. Em África, os portugueses, os europeus em geral, nunca conseguiram ter uma posição enraizada até ao final do século XIX.
Sublinha no livro que há menos mulheres que emigram para o Brasil do que para o império britânico no Norte. A que sociedade e a que racismos é que isto deu origem, comparando o império português com o britânico?
Todas as sociedades coloniais na América são criadas de novo, porque a sociedade nativa que lá existia foi absorvida ou exterminada. Os ingleses na América do Norte fizeram uma colonização de tipo grego: as comunidades rurais, que tinham partido de Inglaterra com uma relação homem/mulher muito mais equilibrada do que no caso espanhol e português, reproduziram-se na América. No caso do Brasil, a plantação de cana do açúcar, que os portugueses introduziram, exigiu uma enorme quantidade de trabalho. Daí a introdução dos escravos africanos e em elevado número, devido à enorme mortalidade. Os escravos levados para a América do Norte não precisavam de uma reposição tão elevada pelo tipo de trabalho que tinham nas plantações de algodão ou nas plantações de tabaco ou de arroz. A reduzida percentagem de mulheres na emigração portuguesa está na origem da miscigenação com as populações indígenas e com os escravos africanos.
Diz que a grande diferença entre a América portuguesa e a espanhola é a presença maciça de escravos africanos desde o século XVII no Brasil.
A grande diferença do Brasil em relação à América espanhola é que os espanhóis encontraram populações sedentárias urbanizadas, os aztecas e os incas, já com sistema estatal e apoiaram-se nessas estruturas. A população do México hoje em dia tem uma forte presença de descendentes dos nativos americanos. A população colonial brasileira é predominantemente portuguesa e africana, com alguma contribuição dos nativos americanos. Foram transportados para o Brasil à volta de cinco milhões de africanos. O que significa que a minoria branca no Brasil teve que gerir uma enorme maioria africana. Teve que se apoiar na população de raça mista. Por isso, o sistema colonial português é um sistema baseado em discriminação racial mas não em segregação. Isto é o grande contraste com o sistema britânico.
Conta que no fim do período colonial no Brasil a nomenclatura racial chegou a ter 150 categorias. Por contraste, nos EUA só havia duas raças, brancos e pretos. Porque é que no Brasil uma pessoa de raça mista é considerada branca e nos EUA uma gota de sangue negro basta para definir um negro? Como é que os resultados são tão diferentes, como é que passamos de 150 categorias para uma classificação que é bipolarizada?
Os portugueses no Brasil criaram uma sociedade colonial com alguma flexibilidade e com alguma capacidade de emancipação por causa do enorme peso demográfico de escravos africanos. Os escravos conseguiram alguma margem de negociação pelo facto de serem obrigatoriamente convertidos: tinham as suas confrarias, alguma protecção das ordens religiosas, capacidade para fazer petições ao rei. Havia uma percentagem significativa de escravos emancipados, ou filhos de escravos emancipados, que funcionava como uma espécie de tampão. Um nível intermédio, de população de raça mista, em que os portugueses se apoiaram. As pessoas de raça mista tinham um estatuto social e político importante. No princípio do século XVIII circula o dito que os negros estão no inferno, os brancos no purgatório e os mulatos no paraíso.
Está quase luso-tropicalista ou não? [risos]
Não estou nada. É verdade que no princípio da pesquisa recusava todas as ideias de margem de negociação. Mas cheguei à conclusão que os níveis de emancipação impuseram uma certa flexibilidade ao sistema colonial. Na América britânica, essa emancipação era extremamente reduzida: houve no início e depois foi juridicamente restringida ou proibida a partir do início do século XVIII. A bipolarização branco/negro e o princípio da hipodescendência (uma gota de sangue negra equivale a classificação de negro) resultou de um debate sobre a abolição da escravatura nos Estados Unidos e do processo de segregação racial que se seguiu à emancipação em 1866. A raça mista foi excluída das classificações raciais, ao contrário do que aconteceu nas Caraíbas.
O livro compara os vários racismos nos impérios coloniais. Que retrato é que faz do império português comparado com os outros? E aqui vai a pergunta directa: é mais ou menos racista que os outros impérios?
[Silêncio]. Eu costumo escapar a essa pergunta… Mas vou responder directamente: acho que há formas diferentes de gerir racismo, de gerir populações coloniais, e acho que o caso português é talvez o mais flexível de gestão de populações coloniais até ao século XVIII. Penso que existe também racismo, mas é um racismo de discriminação. A situação do século XX é marcada por guerras de conquista, nas primeiras décadas, e pela Guerra Colonial, nos anos de 1961 a 1974. Não houve em Portugal nada que se assemelhasse a tentativa de formação de elites africanas como aconteceu em França, que incluiu deputados africanos no Parlamento. O racismo inglês é um racismo de segregação, de exclusão. E isso cria uma diferença. O racismo português é próximo do racismo espanhol, é baseado na discriminação e não tanto na segregação. Mas eu recuso as ideias do Gilberto Freyre de harmonia racial e acho que o racismo está lá desde o princípio. Existe uma ideologia luso-tropical enraizada em Portugal, visão passadista e errada, que dificulta a viragem para o futuro das nossas relações com os países lusófonos. Gilberto Freyre considerava que o luso-tropicalismo existia em todo o império português. O que não é verdade. Uma das coisas boas que o império português teve são as estatísticas e até 1959, até quando há estatísticas raciais, vê-se que menos de um por cento da população em África (Angola e Moçambique) é de raça mista. O Gilberto Freyre acha que o grande modelo de sociedade mista é Goa, onde as percentagens também são mínimas. E ele detestou o outro grande caso de população mista que é Cabo Verde. Onde a população mista é cerca de 70 por cento. O modelo do Gilberto Freyre é o modelo social patriarcal baseado na supremacia branca. Cabo Verde era uma sociedade relativamente pobre. Ele ignorou o único caso que se podia aparentar com o Brasil.
Porque é que essa miscigenação foi tão limitada na África portuguesa?
A mistura era possível e existia mas os luso-africanos que resultavam dessa mistura revertiam para a sociedade africana. Eram integrados com algumas excepções importantes, como no caso de Luanda. A diferença é que no Brasil não existia sociedade indígena que absorvesse isto. O número de portugueses em África até ao século XX é mínimo. Escassos milhares até 1800. E os portugueses estão numa sociedade africana complexa que está enraizada. Os portugueses viveram em enclaves até ao final do século XIX. Só começam a ter uma expressão significativa a partir da Segunda Guerra, nos anos de 1950. Sobretudo, o que é paradoxal, é que é durante a Guerra Colonial que os portugueses emigram, havendo uma explosão económica das colónias portuguesas em África.
Porque é que na América do Norte a resposta para controlar essa população negra acaba por ser a segregação e há apenas uma classificação bipolar?
São diferentes tipos de gestão de escravatura. A escravatura no sul dos EUA não tem números tão elevados que imponham a necessidade de criar um tampão, uma população de raça mista. A experiência britânica na América tem um maior equilíbrio de homem/mulher e desde relativamente cedo há uma diferenciação entre as colónias do norte e do sul. As colónias do norte, mais baseadas na indústria naval, são constituídas por colonos onde a escravatura africana nunca atinge mais de 10 por cento. Nas do sul, mais baseadas na plantação, os escravos chegam a um máximo de 40 e 50 por cento. Só nas Caraíbas atingem mais de 50. As classificações bipolares (branco e negro) são já do século XIX, numa fase de conflito. Porque há classificações anteriores ao século XIX na América britânica que mostram que classificavam uma população mista. É a partir do princípio do século XIX, com o debate abolicionista, que as classificações raciais passam a ser bipolares. A população branca do sul reage contra esta ideia abolicionista, identificando a população mista como negra, discriminando-a.
Mas porque é que chegam à segregação?
A segregação é a resposta branca dos estados do Sul à emancipação da população negra. Trata-se de garantir o monopólio dos recursos políticos, económicos e sociais. Impedir os afro-americanos de acederem à propriedade da terra, educação, lugares de poder — um projecto político evidente.
A sociedade da América do Norte com a sua bipolarização entre brancos e pretos e os seus modelos historiográficos dominantes não nos impede de valorizar as margens de negociação que os escravos e a população de raça mista conseguiram obter no Brasil? 
Existia margem de negociação que tornou o sistema esclavagista brasileiro relativamente mais flexível, com a criação de uma categoria intersticial de emancipados, mas esta margem não alterou o sistema de forma radical.
As comunidades de raça mista também eram fundamentais para o colonialismo português na Ásia e para a sua estrutura política? O mesmo raciocínio que se aplica na América aplica-se aqui?
Não. As condições locais são diferentes. O império português na Ásia, em África ou no Brasil é diferente. Na Ásia também há mistura mas não com a mesma dimensão do Brasil. O caso asiático é fascinante, porque a população mista é elevada ao estatuto de português. No Brasil, a mistura atravessa a hierarquia social.
Onde é que isso se vê?
Eu só percebi quando analisei os inventários de 1635 de todas as fortalezas portuguesas na Índia. É uma espécie de inventário enviado para o rei, umas listas das comunidades portuguesas na Ásia, em que eles dividem os “casados brancos” e os “casados negros”. Tudo o que não era soldado, porque esses eram celibatários portugueses. Os “casados negros” eram os convertidos que nunca se tinham misturado com os portugueses. Os “casados brancos” eram os convertidos que se tinham misturado com os portugueses. Na Índia, os de raça mista eram considerados brancos. Basicamente, os portugueses não tinham suficiente número de emigrantes para manterem uma elite na Ásia. É um caso clarísimo de necessidade de mão-de-obra. Os ingleses, e sobretudo os holandeses, tinham capacidade para recrutar. Entre 1600-1800, os holandeses mandaram um milhão de empregados para a Ásia, porque tinham acesso a mão de obra excedentária da Alemanha e dos países escandinavos. A maior parte dos empregados da East India Company holandesa não eram holandeses. Os ingleses tinham menos capacidade de recrutamento, porque tinham menos ambições. Até muito tarde foi muito mais uma companhia de comércio do que de ocupação territorial. A maior parte da emigração portuguesa passou a ir para o Brasil, porque são dois meses de viagem e muito menor mortalidade. A emigração para a Índia era de seis meses de viagem com uma enorme mortalidade. Enquanto no século XVI o risco compensava, porque podiam ganhar fortunas, no XVII essas possibilidades reduziram-se.
E como é que é a mistura com outras raças nos casos inglês e holandês?
No caso inglês eles misturaram-se (assim como os holandeses), mas depois há uma lei de 1793 a proibir as pessoas de raça mista de entrarem na East India Company. A única justificação que encontro para esta lei é o processo de “impeachment” do Warren Hastings (o governador geral de Begala em 1773-84). A companhia começou a envolver-se demasiado na conquista territorial, deixou de ter o grande lucro do comércio marítimo e passou a viver dos impostos territoriais. Deixou de pagar elevados dividendos e os accionistas começaram a achar que a companhia estava a ficar corrompida pelo sistema indiano. A partir de 1793 declina radicalmente a miscigenação devido à lei. É giro porque confirma aquilo que eu sempre achei: o Estado tem peso. Concluindo, a ideia de que só os portugueses se misturavam não tem base, mas os portugueses atribuíam um estatuto social e político às pessoas de raça mista…
Vamos passar para os nacionalismos, que trouxeram consigo a fusão de nação e de raça. O impacto desse encontro levou ao primeiro genocídio da época moderna, o dos arménios. É preciso este encontro para as consequências do racismo serem tão dramáticas?
É um período fundamental. A minha primeira ideia quando comecei a fazer este trabalho foi parar no Darwin, porque achei que o século XX já estava muito estudado. Mas o argumento da ligação do racismo com projectos políticos é muito mais visível e consequente nesse período. O nacionalismo tem um lado sombrio. Apoiei-me na tese de Michael Mann que diz que a dinâmica do nacionalismo cruzada com a dinâmica da democracia implica a definição de quem é cidadão e de quem não é, de quem é incluído e excluído. Todos os movimentos nacionalistas, com uma inspiração original generosa que é a inclusão de todos os cidadãos, acabam por confrontar-se com estes conflitos étnicos. Toda a dinâmica na Europa Oriental, em que os nacionalismos contestavam as entidades imperiais supranacionais ou multinacionais, como os impérios Russo, Habsburgo ou Otomano, e todo o movimento de independência dos Balcãs, que rompeu com toda aquela estrutura que existia, é de conflito. Faz agora quase 200 anos, porque isto começa no princípio do século XIX, com o movimento independentista sérvio. Depois vêm os húngaros, que se querem autonomizar do império austro-húngaro e descobrem que têm um conflito com os romenos. Não podem afirmar um território contra outras minorias, porque essas minorias também se revoltam contra o projecto húngaro. Na Boémia é o mesmo, porque os checos querem revoltar-se contra o império Habsburgo mas têm uma forte minoria germânica. Depois da revolução de 1848, estes nacionalismos vão tornar-se mais auto-centrados e começa uma competição por recursos e por definição de territórios que tem a ver com a exclusão dos outros. O nacionalismo torna-se mais fechado e a nação passa a ser equivalente de raça, com a ideia de língua, de descendência comum (outra ficção), para criar entidades nacionais homogéneas do ponto de vista étnico. Os sérvios tratam de afirmar a sua independência e ver se conseguem excluir outros, os croatas a mesma coisa, os húngaros a mesma coisa, os romenos a mesma coisa, com guerras sucessivas.
O holocausto e o genocídio são vistos como questões racistas ou as pessoas têm tendência a identificar racismo com questões de cor de pele?
Essa pergunta vai ao coração do livro. O meu problema desde o princípio é que a identificação do racismo com cor da pele não ajuda a explicar muito. Explica o racismo em relação aos africanos, mas não explica o racismo em relação aos judeus ou arménios. Se concentrarmos o racismo na cor da pele estamos a excluir alguns dos principais casos de racismo do século XX. Por isso é que a definição de racismo como “preconceitos sobre descendência étnica combinados com acção discriminatória” é suficientemente lacta para incluir os racismos em relação a judeus e arménios. O racismo nesta acepção é não só uma forma de legitimar ou justificar hierarquias sociais, por exemplo o sistema de escravatura em relação aos africanos, mas também uma arma discriminatória para excluir concorrência. Porque racismo não é apenas justificação de hierarquias, é um elemento activo de discriminação contra concorrentes.
Voltando ao Brasil, onde diz que a raça é menos determinante como marcador social do que nos EUA. Em última análise isto mostra o quê? Mostra que o Brasil é uma sociedade mais ou menos racista do que os EUA?
Tenho alguma resistência em classificar uns como mais ou menos racistas. O Brasil era uma sociedade mais flexível do ponto de vista racista, com mais discriminação mas com muito menos segregação que a sociedade americana, com mais possibilidades de mobilidade social. Porque o problema do racismo é fundamentalmente como é que são bloqueadas as possibilidades de mobilidade social. Depois dos anos de 1960, com os movimentos dos direitos civis, o Brasil ficou numa posição menos favorável porque os EUA definiram uma legislação contra a discriminação racial e o Estado implementou-a de uma maneira sistemática. No mundo ocidental a seguir à Segunda Guerra Mundial, dado o horror do holocausto, passa a predominar uma norma anti-racista. Isso é uma grande viragem histórica.
No Brasil, Barack Obama seria o primeiro Presidente negro? Ou seria um Presidente branco?
Essa é uma boa pergunta. Seria o primeiro Presidente “moreno”. Mas se deslocarmos a comparação para o México temos uma surpresa: o país teve um Presidente índio em meados do século XIX, um zapoteca, o Benito Juárez, formado em Direito. Foi um excelente Presidente. No Brasil isso seria impensável. Os nativos americanos têm um peso muito grande no México. No Brasil há racismo, não vamos iludir o problema. Eles assumiram a acção afirmativa, já com o governo do Fernando Henrique Cardoso, depois reforçada pelo Lula. Há um grande debate entre os meus colegas no Brasil, que acho que vem da constatação de que [no Brasil] a noção de hipodescendência não funciona — a raça não é um marcador como nos EUA. Há um branqueamento da pele consoante a posição social. Mas há outra constatação, que é verdadeira: quanto mais negra é a população, mais está colocada no fundo da hierarquia social. Portanto, há uma relativa equivalência entre a cor da pele e a posição social. Esta equivalência está mais do que estudada e é isto que justifica a acção afirmativa. No Brasil, o debate da acção afirmativa está ganho. Nos últimos censos, alterou-se a auto-precepção da população brasileira: aqueles que se classificam como brancos diminuíram desde o início da acção afirmativa.
No seu livro, a iconografia mostra que a teoria das raças é anterior aos textos escritos dos séculos XVIII e XIX?
Exacto. Mostra que há ali uma estabilidade enorme nas alegorias dos continentes produzidas desde o Abraham Ortelius em 1570 (página de título do Theatrum Orbis Terrarum) até ao Jean–Baptiste Carpeaux em 1867-74 (fonte dos quatro continentes no Jardim do Luxemburgo, Paris). As alegorias dos continentes inspiram as teorias da raça. Considerava-se que começavam com Lineu, em meados do século XVIII. Mais recentemente foi recuperado um artigo do François Bernier, de 1684, em que ele falava de variedade dos seres humanos através dos continentes. Mas as origens são mais longínquas.
Por isso, quando se define uma hierarquia dos continentes, e por consequência das populações que lá vivem, já há uma teoria das raças?
Há uma hierarquia dos continentes, há uma personificação dos continentes e uma alegoria de cada continente que condensa todos os preconceitos étnicos e que se mantêm até ao século XIX. Sabine Poeschel fez o recenseamento desta personificação dos continentes e conseguiu inventariar mais de 500 imagens de alegoria dos continentes nos séculos XVI-XVIII. Aquilo tem um impacto enorme em toda a Europa. Por isso, há dois aspectos determinantes: ver quando surge algo que seja influente na teoria das raças e que impacto é que a teoria das raças teve no século XVIII e XIX. Há uma diferença de grau, porque as práticas de discriminação racial passam a estar muito mais suportadas por uma teoria das raças que se pretende científica. Isto é utilizado por agentes políticos e por grupos para justificar a discriminação e segregação racial. Eu não diminuo isso, o que digo é que o racismo já existia antes. A teoria das raças vem depois do racismo e multiplica o racismo. Tem um impacto a longo termo, justificando o racismo e depois sendo apropriada pelas teorias nacionalistas.
Ao tratar um tema como o racismo sentiu que era necessário fazer alguma sinalização moral num tema que é difícil e polémico. Teve medo que ao tratar um tema como o racismo o acabasse por justificar?
Não, pelo contrário. O que eu tentei foi tratá-lo de uma maneira objectiva. Daí o cuidado que tive, e reflecti durante anos, sobre a noção de racismo, sobre a noção de raça, sobre esta tese de o racismo ser motivado por projectos políticos. Tudo isto levou tempo a amadurecer. Foi um livro que levou bastante tempo a ser concebido, a ser realizado, e resultou muito de uma prática de pesquisa. Procurei ter uma linguagem objectivada, utilizar o menos possível adjectivos e uma linguagem emocional. Do ponto de vista analítico, o livro é bastante seco. Procurei também não entrar em polémicas desnecessárias. É evidente que tenho a minha ética e uma visão política de tudo isto, e tenho a plena convicção que estes problemas têm que ser afrontados, discutidos. Tem que haver uma certa consciência histórica do passado que não passa por ignorar problemas e metê-los debaixo do tapete. Porque há uma concepção da direita portuguesa segundo a qual falar do racismo é um crime de lesa-pátria e eu acho que prejudica profundamente a pátria ignorar [estes problemas], fingir que eles não existem. Ou, pior do que isso, projectar uma imagem de harmonia que nunca existiu.
Porque é que prejudica?
Uma comunidade histórica só progride se tiver uma relação de honestidade com o seu próprio passado. Os passados de qualquer país não são limpos e assépticos.
Sente-se mais um historiador do mundo ou um historiador português?
Como dizia o Fernand Braudel, toda a história é história do mundo, mesmo que as pessoas a queiram fazer local. Eu acho que não é possível reflectir sobre Portugal de uma maneira isolada. Há uma quantidade de estudos muito bons sobre história local, regional, nacional, mas este é o meu caminho, não estou a dizer que é o único e respeito outras opções historiográficas. Eu acho que consigo reflectir melhor sobre Portugal de uma maneira comparativa. Agrada-me imenso a história mundial porque passo a outra escala e posso reflectir sobre os problemas a outro nível, desenvolver muito mais o meu raciocínio. E quando volto à história de Portugal, e volto sempre e voltarei e escreverei livros mais específicos [sobre a história de Portugal], volto mais enriquecido e numa perspectiva de colocar Portugal numa história do mundo que passa a ser mais interessante e com maiores possibilidades de ser entendida noutros países.
O nosso contacto com histórias do mundo em que haja uma presença tão grande de fontes portuguesas não é assim tão grande. Há uma internacionalização suficiente da história de Portugal?
Começa a haver de uma maneira mais significativa. Penso que há ainda um caminho a percorrer. Para fazer um trabalho comparativo é preciso sair de Portugal, porque as bibliotecas portuguesas são boas para a história de Portugal mas não para a comparação com outros países. Aí há uma grande diferença e é preciso vir para a Inglaterra ou para os EUA para fazer uma boa história comparativa.
Os seus temas são todos ideologicamente mais colocados à esquerda do que à direita.
Hoje em dia a direita é muito mais ideológica do que a esquerda. Isso é que é curioso. Eu tenho uma visão que acho que é muito mais objectiva da história do que uma visão da historiografia de direita. O que me dá o gozo no meu trabalho histórico é procurar os fundamentos das várias perspectivas, ver o que está por detrás das aparências. Não estou a propor criar novas aparências, não estou a tapar problemas, não estou a dirigir a minha pesquisa por motivos ideológicos. Estou, creio, a tentar compreender as coisas como elas se passaram.
Como é que se controla isso? Não é o que toda a gente diz?
Eu parto dos problemas do presente, como o racismo, e procuro encontrar no passado os fundamentos que me permitem compreender melhor o presente. Acho que neste caso a tese principal do livro ajuda a compreender alguns problemas do presente. O que se está a passar agora no Sudão do Sul é o típico caso de racialização de etnias que estão em concorrência, como os nutre e os dinka, pelo controlo de três quartos dos poços de petróleo que herdaram do antigo Sudão.
Bethencourt, Francisco
Francisco Bethencourt

Racisms: from the crusades to the twentieth century. Novo livro do historiador Francisco Bethencourt

O historiador português Francisco Bethencourt, que publicou o livro Racisms: from the crusades to the twentieth century (Princeton University Press), não é, definitivamente, um saudosista do luso-tropicalismo do sociólogo e ensaísta brasileiro Gilberto Freyre. Não defende que o império colonial português tenha sido menos racista do que impérios como o britânico. O seu livro, ao convocar um tema como o racismo e ao fazer uma história comparativa, vai ao coração das sociedades coloniais e à gestão dessas populações. Como é que se deve lidar com a intensa miscigenação no Brasil dos portugueses com a população indígena e com os escravos africanos, consequência de uma reduzida emigração de mulheres portuguesas logo desde o início da colonização? Porque é que esta população de raça mista ganhou muito mais privilégios sociais e políticos do que no império britânico? Porque é que na América do Norte no século XIX a raça mista desapareceu das classificações raciais e posteriormente passou a ser possível ser apenas branco ou preto? Por que razão, ao contrário, no fim do período colonial no Brasil a nomenclatura racial chegou a ter 150 categorias?
Brasil colonial
Interior de casa branca com crianças escravas, Jean-Baptiste Debret, "Voyage pitoresque et historique au Brésil".

A história nunca contada dos portugueses nos campos de concentração

O comboio partiu às 6h15. Era o dia 25 de Junho de 1942 e no seu interior apinhavam-se mil homens. Todos judeus. Tinham passado os últimos meses no campo de internamento de Pithiviers, a 87 quilómetros a Sul de Paris, mas agora chegara a ordem de partida. O destino, desconhecido para os passageiros do comboio n.º 813, era o campo de concentração de Auschwitz, na Polónia. A bordo ia Michael Fresco, um judeu português, nascido em Lisboa, a 15 de Setembro de 1911. Enquanto Michael era deportado para Auschwitz, Luiz Ferreira, um funileiro da região de Guimarães, emigrado em Lyon, já tinha sido “apanhado” pelo regime colaboracionista francês, por causa da sua filiação no Partido Comunista e da acção clandestina contra os ocupantes nazis. Maria Barbosa, natural de Ponte de Lima e também emigrada em Lyon, estava longe de saber que, dois anos mais tarde, em 1944, estaria a iniciar a sua viagem em direcção ao campo de concentração de Ravensbrück. Já Casimiro Martins, um algarvio que partira para os Pirenéus franceses, para se juntar a um irmão e trabalhar na construção civil, não podia ainda imaginar que dali a dois anos e meio seria uma das vítimas mortais do campo de concentração de Neuengamme. Portugal manteve a neutralidade durante a guerra que devastou a Europa entre 1939 e 1945, mas os portugueses não saíram incólumes do conflito. Dezenas foram transportados para os campos de concentração e alguns morreram lá. Um destino ignorado pelo seu país, esquecido por membros das suas famílias, desconhecido dos portugueses. Quase 70 anos depois do fim da guerra, as suas histórias são, finalmente, contadas.
Michael Fresco morreu com 30 anos, apenas por ser judeu. O “Michael Strogoff”, alcunha pela qual era carinhosamente tratado em família, nas tardes de reunião que os Fresco gostavam de partilhar com os primos, em Lisboa, abandonara Portugal para se instalar na cidade francesa de Nantes, como comerciante. Foi aí que o seu futuro foi definitivamente interrompido. Para trás, deixava uma vida lisboeta que parece doce e alegre, nas palavras dos descendentes da família. Alberto Fresco, 65 anos, filho de uma prima de Michael, nunca conheceu este parente distante, mas lembra-se de ouvir a mãe, Rebeca, falar dele. “A família juntava-se toda e havia grandes brincadeiras. A minha mãe contava que o Michael era uma pessoa muito extrovertida, muito jovial, de tal modo que ele tinha uma alcunha, um petit nom entre os membros da família. Era conhecido como o Michael Strogoff. Estava-se numa época em que os livros do Júlio Verne eram muito apreciados e eu lembro-me sempre de ouvir falar do Michael como sendo o Michael Strogoff, o correio do czar.” Uma sobrinha-neta de Michael, que prefere não ser identificada, também se lembra bem de ouvir a avó, Raquel, falar do irmão perdido na guerra. “Eu adorava que a minha avó contasse histórias de família e ela falava muitas vezes do Michael, com grande tristeza. Contava como tinha sido deportado e morrera em vagões de gado”, diz.
A Comunidade Israelita de Lisboa ainda guarda o “Termo de Nascimento” de Michael Joseph Fresco, um dos seis filhos de Nissim e Sultana Fresco, dois judeus turcos de Constantinopla que se haviam fixado em Lisboa, no final do século XIX. Dos seis irmãos — Alberto, Miriam, Rebeca (que haveria de mudar o nome para Raquel depois de casar com um português de uma família profundamente católica), Vitória, Michael e Ventura —, Michael é o único cuja morte nos campos de concentração nazis está confirmada. Apesar de a deportação e morte de Michael em Auschwitz ser algo de que Alberto se recorda de ouvir falar desde criança, não sabe precisar quando é que o primo emigrou para França, nem se se casou, se teve filhos ou em que condições é que foi preso. A neta de Raquel lembra-se de a avó contar que o irmão casara e que fora denunciado aos alemães “por um cunhado francês”. Alberto diz que essa é “uma história” que também já ouviu, mas que nunca foi confirmada. Pode ter acontecido que, à semelhança de outros passageiros do comboio n.º 813, Michael Fresco tenha respondido voluntariamente à convocatória para apresentação às autoridades feita a todos os judeus estrangeiros residentes em França, a 14 de Maio de 1941, pelo regime de Vichy, e que ficaria conhecida como a rafle du billet vert.
Do que não há dúvidas é que Michael Fresco residia no Quai d’Orléans, n.º 11, em Nantes, antes de ser detido. Os nazis eram meticulosos nos registos que faziam dos prisioneiros e o certificado que atesta a morte do português em Auschwitz escapou à destruição organizada de todos os registos, pelos alemães, nos últimos meses da guerra. Além da morada de Michael, o documento indica que ele morreu às 15h20 do dia 24 de Julho de 1942, menos de um mês depois de chegar ao campo que, por esta altura, já se expandira para os terrenos em Birkenau e se tornara numa verdadeira máquina organizada de matar. Para aqueles que não eram imediatamente seleccionados para as câmaras de gás, a esperança de vida era de poucos meses, Graças ao trabalho escravo que eram obrigados a suportar, à subnutrição ou às experiências médicas ali desenvolvidas. No caso de Michael, a causa de morte apontada pelos nazis é hidropisia cardíaca.
Rebecca Boehing, directora do International Tracing Service (ITS), na Alemanha, avisa que estas “certidões de óbito” devem ser olhadas com reserva. “Muitos dos nossos documentos foram criados pelas autoridades nazis, por isso se os nazis dizem: ‘o seu avô morreu de um ataque cardíaco, numa situação normal…’ Bom, não havia nada de normal em estar num campo de concentração, por isso é preciso contextualizar. Talvez tenha havido um ataque cardíaco, mas o que se passou? Que esforço foi feito antes?”, questiona. Esta norte-americana, historiadora na Universidade de Maryland, Baltimore County, dirige o ITS desde Janeiro de 2013. Criado ainda antes do final da guerra, em 1943, pelos Aliados, o ITS congrega toda a documentação relativa aos campos de concentração. Estão ali fichas de nomes, listas de entrada ou de transferência dos campos, os Livros dos Mortos, em que se registavam as vítimas, as fichas de avaliação médica e as relações dos bens que os prisioneiros transportavam, cartões de identificação e, até, listas de pessoas com piolhos em determinado campo, que pormenorizam quantos piolhos foram encontrados em cada uma no dia em causa (os piolhos eram os principais transmissores de tifo, uma das doenças que mais assolaram os campos de concentração). O ITS guarda cerca de 30 milhões de documentos relativos aos prisioneiros dos campos, aos homens e mulheres submetidos a trabalhos forçados durante o regime nazi e aos sobreviventes, que passaram pelos chamados Campos de Deslocados. Em Outubro de 2013, os seus arquivos foram classificados pela UNESCO como Memória do Mundo, pelo “valor excepcional e importância para a humanidade, pelo seu contributo para o conhecimento do impacto da guerra nas pessoas”. Apesar da sua longa existência, o ITS só se abriu ao público em 2007. Até aí, apenas as vítimas directas do nazismo ou os seus familiares podiam aceder à informação guardada em três edifícios na pequena cidade no centro da Alemanha, Bad Arolsen. A digitalização de um elevado número de documentos e o alargamento dos objectivos do ITS, que passaram a incluir o acesso à pesquisa académica ou jornalística, disponibilizaram um manancial de informação de um valor inestimável. Permitiu, por exemplo, que se tornasse muito fácil responder a uma pergunta que até há pouco tempo não se fazia: houve portugueses nos campos de concentração?
Emílio Pereira
Emílio Pereira foi deportado para o campo de Buchenwald, como atesta a sua ficha de prisioneiro.

17/06/2014

Trinta candidaturas a Património Mundial da UNESCO

São cerca de 30 as candidaturas que o Comité do Património Mundial da UNESCO, reunido desde este domingo em Doha, no Qatar, poderá aprovar até ao encerramento da sua 38.ª sessão. Entre elas estão sítios naturais como o Delta do Okavango, no Botswana, e as Falésias de Stevns, na Dinamarca, mas também sítios culturais como a Citadela de Erbil, no Curdistão iraquiano, o Caminho Inca (cerca de 30 mil quilómetros de percursos em altitude que cruzam toda a cordilheira dos Andes, da Colômbia à Argentina, do Equador ao Chile, passando pela Bolívia e pelo Peru) e o Rani-ki-Vav, um monumental poço esculpido do século XI que pode ser visitado em Patan, na Índia. Da lista que será submetida à aprovação do comité constam ainda a paisagem vitícola do Piemonte italiano, as grutas paleolíticas de Pont d'Arc, em França, as regiões vitícolas de Monferrato e de Langhe-Roero, no Piemonte italiano, e a paisagem cultural de Batir, terra de oliveiras e vinhas a Sul de Jerusalém que a Autoridade Palestiniana diz estar "ameaçada" pelo avanço do muro que separa Israel da Palestina. Até hoje, a UNESCO já classificou 981 sítios (distribuídos por 160 países): 759 bens culturais, 193 bens naturais e 29 bens mistos, todos considerados de "extraordinário valor universal". Portugal, que tem 15 sítios inscritos na lista (entre os quais a Arte Rupestre do Vale do Côa, o Mosteiro de Alcobaça e o Centro Histórico de Évora), integra desde Novembro do ano passado o Comité do Património Mundial, tendo por isso uma palavra a dizer nas decisões que serão tomadas. A 38.ª sessão do Comité poderá ainda decidir colocar o Palácio de Westminster, sede do Parlamento britânico, na lista dos sítios em perigo. O relatório preliminar elaborado pelos peritos do comité considera que o projecto de adaptação da vizinha Elizabeth House "constitui uma ameaça potencial ao valor universal do bem". Também a Austrália verá discutidos dois dos seus sítios classificados: no caso da Grande Barreira de Coral, o comité parece disposto a reconhecer "os progressos conseguidos" na melhoria da qualidade da água, mas a pretensão anunciada pelo Governo australiano de retirar da protecção da UNESCO uma parte da Floresta da Tasmânia não deverá ser atendida.
Erbil
A Citadela de Erbil, no Curdistão iraquiano, é habitada ininterruptamente há oito mil anos.

Pinturas rupestres de Pont D'Arc
As grutas paleolíticas de Pont D'Arc, em França.

Okavango
O Delta do Okavango, no Botswana, é uma das Sete Maravilhas Naturais do continente africano.

Civilização Inca
O Caminho Inca tem uma extensão de mais de 20 mil quilómetros, cruzando os Andes.

16/06/2014

"Cenas de Baile" de Columbano

Um conjunto de cinco painéis que Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929) pintou para o antigo Palácio do Conde Valenças, agora Hotel Olissipo, em Lisboa, vai a leilão. Até agora em mãos privadas, estas cinco pinturas decorativas que são “uma espécie de revista histórica da dança”, como descreveu na época o escritor Fialho de Almeida, mostram-nos um outro lado de um dos nomes maiores da arte portuguesa do século XIX: Columbano foi o mestre do retrato mas deixou também uma obra importante na pintura decorativa. Estes painéis são disso exemplo e a serem arrematados poderão tornar-se na obra mais cara do artista vendida em leilão. São cinco painéis com 250 centímetros de altura e faziam conjunto na época com mais duas pinturas e também com um tecto, que continua a existir no palácio que deu lugar ao Hotel Olissipo. Os dois painéis que aqui faltam (um deles assinado) estão numa colecção privada, e hoje no hotel não haverá sequer quem saiba que naquela sala onde há um tecto assinado por Columbano existiram em tempos estes painéis. É uma peça muito marcante no percurso do Columbano (datada de 1891), representa as danças palacianas nas suas diferentes épocas, tendo sido apresentada num contexto muito próprio, nomeadamente à burguesia lisboeta, o que foi importante na leitura que se passou a fazer da obra do pintor, explica o responsável, que vai levar estes cinco painéis à praça num só lote. As suas estimativas apontam para os 500 mil a 800 mil euros.
Tendo sido esta uma encomenda para um salão de baile, Columbano achou por bem representar diferentes cenas de baile com casais trajados à moda das diferentes épocas. Nos cinco painéis que vão agora à praça estão representados a Belle Époque, o período Império, a época de Luís XV e a época de Luís XIV. Há ainda uma pintura central e por isso ligeiramente maior do que as outras e que representa simplesmente um grupo de nove pessoas em festa. Este conjunto é descrito pormenorizadamente na obra de Fialho de Almeida, Os Gatos, onde o escritor falar da “mais ampla obra do artista e a mais superiormente executada de quantas até agora lhe saíram das mãos”. Estes painéis "fazem parte de um tipo de trabalho em que Columbano investiu e que valorizou muito”, nota Pedro Lapa, destacando também que foi nesta altura, ou seja, na década de 1890, que o pintor ganhou o reconhecimento nacional, “coisa que não tinha acontecido na década anterior”. “Estas pinturas têm um sentido declaradamente decorativo e este foi um trabalho que ocupou bastante o Columbano, que deixou uma ampla obra nesta área”, explica Lapa. No entanto, para o especialista a obra decorativa de Columbano “não é tão consistente quanto a sua obra de pintor retratista”.
“Mas estamos sempre a falar de um dos nomes maiores do século XIX português”, continua. “O Columbano é um pintor com uma estrutura e uma personalidade própria, inimitável, profundamente idiossincrático, e isso é sempre de valorizar. É sempre um trabalho curioso e isto é importante”, atesta Pedro Lapa, que gostava de ver estas obras “no espaço arquitectónico para o qual foram pensados”. “Idealmente eram boas até para um museu, o Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado (MNAC) devia ter meios para chegar à praça e fazer uma aquisição, era o que aconteceria com o Museu d’Orsay, em Paris, ou a Tate, em Londres”, defende Lapa. “Mas obviamente que os meios são muito escassos e, não existindo uma política exaustiva de aquisições, entendo que as prioridades sejam outras.” O MNAC tem já “uma colecção gigantesca de Columbano”, diz Pedro Lapa, e por isso a compra destes painéis “não será seguramente uma prioridade para o museu quando tem lacunas noutras áreas”. “Correctamente, isso devia ser feito para salvaguardar este sentido de arquivo que um museu também representa das obras dos artistas”, continua. “Mas tudo isto pressupunha uma situação articulada e uma política patrimonial para a Cultura que não existe”.
Cenas de baile
Cenas de baile (painel de um grupo e festa), 1891

13/06/2014

Restauro de retábulo manuelino da Sé assinala 500 anos da Diocese do Funchal

A Diocese do Funchal, criada em 12 de Junho de 1514 através da bula do Papa Leão X, iniciou as celebrações dos seus 500 anos de existência com a apresentação da obra de restauro do retábulo e cadeiral da capela-mor da Sé do Funchal. De inegável valor cultural, o retábulo da capela-mor, de raiz gótica final, é o único que ainda permanece in situ. Foi mandado executar pelo rei D. Manuel I entre 1512 e 1517. Alguns estudiosos atribuíram a execução e as imagens da estrutura retabular ao mestre flamengo Olivier de Gand, autor dos retábulos da Sé Velha de Coimbra e da Igreja de São Francisco, em Évora, hoje desmantelado, e do cadeiral do Convento de Cristo, em Tomar, pelas semelhanças entre as várias obras. As pinturas que completam o dispositivo iconográfico do retábulo têm sido atribuídas, por diversos estudiosos, a Francisco Henriques, ao núcleo luso-flamengo do anónimo mestre da Lourinhã (que algumas hipóteses indicam ser o pintor Álvaro Pires) ou ainda a uma obra de parceria de vários artistas pertencentes à mesma oficina, para concluir rapidamente uma obra régia. À semelhança do retábulo, o cadeiral foi executado no reinado de D. Manuel I. Esta estrutura foi atribuída recentemente ao mestre Machim Fernandes, envolvido até 1512 na construção do cadeiral de Santa Cruz de Coimbra. A sua estrutura arquitectónica filia-se nos modelos tardo-góticos com alguns elementos proto-renascentistas, apresentando semelhanças com o cadeiral da Catedral de Yuste, em Espanha. O valor da intervenção ultrapassou os 375 mil euros, sendo comparticipada pela World Monuments Fund – Portugal (219 mil euros), pelo Governo Regional da Madeira (128 mil) e Diocese do Funchal (cerca 28 mil). Os trabalhos de restauro resultaram de uma parceira destas entidades com o Laboratório José de Figueiredo, da Direcção-Geral do Património Cultural, e Laboratório Hercules, da Universidade de Évora.
A Diocese do Funchal foi a primeira diocese portuguesa da Igreja Católica instituída fora do continente europeu, na sequência das viagens marítimas de descoberta que potenciaram a experiência de globalização. Criada em 12 de Junho de 1514, através da bula Pro excellenti præeminentia, do Papa Leão X, após a elevação da vila do Funchal ao estatuto de cidade pelo rei D. Manuel, a nova diocese foi, 19 anos mais tarde, a 31 de Janeiro de 1533, elevada à dignidade arquidiocesana. A Diocese do Funchal tornou-se, durante 22 anos, a maior arquidiocese metropolitana do mundo, tendo como sufragâneas as dioceses do Império Colonial Português nos Açores, Brasil, África e Oriente. Depois desmembrou-se nas dioceses de Angra, de Cabo Verde, de São Tomé e de São Salvador da Bahia. Até começos do século XX, os bispos do Funchal usaram o título de "bispos da Madeira, do Porto Santo, das Desertas e de Arguim".
Diocese do Funchal
Retábulo manuelino da Sé do Funchal

12/06/2014

A cópia de Rembrandt na Abadia de Buckland afinal é um original

Afinal, na Abadia de Buckland, no condado de Devon, no Reino Unido, estava guardado um Rembrandt (1606-1669) original e não uma cópia como se pensava até agora. A autoria deste óleo de 1635 há muito tempo que gerava dúvidas mas só agora através de uma investigação exaustiva com especialistas britânicos e holandeses é que foi possível provar a sua autenticidade. Guardado na arrecadação desde 2010, ano em que foi doado ao English National Trust (entidade responsável pelo património britânico), o auto-retrato está agora exposto na Abadia de Buckland e tornou-se já numa das jóias da coroa. É aliás o primeiro Rembrandt da colecção pública britânica, composta por 13.500 pinturas.
Intitulada Auto-retrato com boina e pluma branca, esta pintura com 91x72 cm. mostra Rembrandt, aqui com 29 anos, de boina negra de veludo, com duas penas de avestruz, usando uma capa escura. O pintor, um dos mais populares na Europa do século XVII, é autor de alguns dos auto-retratos mais conhecidos da história da pintura. Segundo as contas dos especialistas, Rembrandt terá pintado 40 a 50 auto-retratos.
No entanto, quando em 2010 esta obra chegou à Abadia de Buckland, uma propriedade com 700 anos que pertenceu a Francis Drake (1540-1596) – o almirante da Marinha de Isabel I e traficante de escravos que saqueava embarcações espanholas em nome da coroa britânica viveu nela 15 anos –, vinha já atribuída a um pupilo de Rembrandt. Havia também quem defendesse que era uma cópia perfeita, tendo em conta o estilo utilizado na pintura, muito próximo daquele usado pelo mestre holandês.
A autenticação da obra só foi possível depois de Ernst van de Wetering, um dos maiores especialistas em Rembrandt, ter levantado a questão no ano passado. Desde então, a obra foi analisada em profundidade: os técnicos fizeram novas radiografias e exames de infravermelhos para poderem estudar o desenho por baixo das camadas de tinta, além de terem sido feitos testes aos pigmentos usados e à madeira que serve de suporte à pintura. A reatribuição de Ernst van de Wetering é assim feita 46 anos depois de um outro especialista, Horst Gerson, ter defendido que a pintura teria saído das mãos de um dos discípulos de Rembrandt. Van de Wetering atribui esta conclusão ao que se sabia sobre o estilo do mestre, em 1968.
“Apesar de ter praticamente a certeza de que esta pintura era um Rembrandt quando a vi, em 2013, quis que mais exames fossem feitos depois de uma limpeza para ver os resultados das análises técnicas, uma vez que isto nunca foi feito antes”, explica Ernst van de Wetering, mostrando-se satisfeito pelas evidências científicas: é um Rembrandt e está já avaliado em cerca de 30 milhões de libras (cerca de 37 milhões de euros). Para David Taylor, curador da pintura e escultura do English National Trust, “o debate sobre se é um Rembrandt ou não existe há décadas” e “o elemento chave foi a limpeza”. As cores da obra estavam já tão esbatidas que era impossível perceber “quão bem o retrato foi pintado”. Depois deste processo de investigação e restauro, já é possível apreciá-la “como um Rembrandt”, destaca Taylor.
Auto-retrato com boina e pluma branca
Auto-retrato com boina e pluma branca (Rembrandt, 1653)

09/06/2014

A "maior colecção" de gravuras de Rembrandt "não tem a mão de Rembrandt"

A “maior colecção de gravuras de Rembrandt” exposta em Águeda, poderá afinal não ter gravuras, mas sim reproduções fotomecânicas das gravuras originais. A colecção tem valor histórico, estético e artístico, mas “estas peças não são da mão de Rembrandt” afirma Maria José Goulão, historiadora de arte que trabalhou na Fundação Dionísio Pinheiro e Alice Cardoso Pinheiro, onde está uma exposição de 14 gravuras do pintor holandês do século XVII. O museu da Fundação Dionísio Pinheiro e Alice Cardoso Pinheiro, instituição privada com apoios da Câmara Municipal de Águeda, possui uma colecção de 282 gravuras de Rembrandt, que Miguel Vieira Duque, conservador deste museu, afirma ser “a maior do género por ter mais peças do que a colecção do holandês Rijksmuseum, com 260, e do que a da Casa Museu Rembrandt, com cerca de 80”. Chamou a esta exposição Gravuras de Rembrandt (1606-1669), o Aguafortista, na Colecção da Fundação Dionísio Pinheiro e Alice Cardoso Pinheiro e disse que o seu objectivo com esta exposição é “criar interesse” em entidades e especialistas que possam vir a estudar esta colecção. A sua intenção é que seja possível fazerem-se análises ao papel para que possa ser datado, e estudar-se cada uma das peças para que seja identificada a sua técnica de gravação. Apesar de não ter certezas quanto à técnica e data das peças — que situa entre os séculos XVII e o XIX — o conservador está convicto de que tem em sua posse gravuras e não reproduções obtidas através de qualquer processo fotográfico.
Maria José Goulão é hoje professora de História da Arte na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, mas em 1985, com 22 anos, foi a primeira conservadora deste museu de Águeda e afirma, que apesar de não ter acesso à colecção desde essa época, é “altamente improvável serem gravuras originais” de Rembrandt. “Aquilo de que podemos falar são de reproduções fotomecânicas, obtidas através do processo fotolitográfico, ou da técnica da heliogravura, ambas usadas em França no século XIX. A palavra reprodução diz tudo — estas peças não são da mão de Rembrandt”, diz Maria José Goulão, acrescentando mesmo que esta colecção foi objecto de um artigo publicado pela sua sucessora na fundação, Madalena Cardoso da Costa. No artigo publicado em Dezembro de 2007 na revista Munda - Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, lê-se que um parecer do departamento de gravuras e fotografias da Biblioteca Nacional de França enviado a este museu indica que a “maior parte destas gravuras são reproduções de gravuras de Rembrandt feitas nos séculos XVII e XIX”. O artigo com o título "A Colecção de gravuras de Rembrandt do Museu Fundação Dionísio Pinheiro" diz ainda que muitos dos originais de onde foram reproduzidas as estampas da colecção estão naquela biblioteca francesa e que estas reproduções foram feitas na época por negociantes por meio de técnicas fotográficas. A diferença entre gravuras originais e reproduções fotomecânicas está no seu método de reprodução. Toda a gravura é uma reprodução feita a partir de uma matriz, normalmente uma chapa metálica. Se a gravura é feita a partir da chapa metálica concebida pelas mãos do gravurista, neste caso Rembrandt, diz-se que é original, explica Alexandra Markl, conservadora de gravuras do Museu Nacional de Arte Antiga. Esta conservadora teve acesso a cerca de três das peças de todo o conjunto desta colecção da Fundação Dionísio Pinheiro e, por isso, sublinha que a sua avaliação é superficial mas lembra que as chapas originais de Rembrandt estão “amplamente estudadas” e que esse estudo seria um bom ponto de partida para se avaliar esta colecção. Têm estas estampas exactamente as mesmas características das chapas originais, têm as mesmas dimensões?, questiona a especialista. A reprodução fotomecânica não implica sequer o acesso a essa matriz, mas sim à gravura uma vez que é um processo fotográfico, continua a explicar Alexandra Markl. Pode ser feita através de heliografia ou de fotolitografia. Simplificando, explica por sua vez Maria José Goulão, é como se estivéssemos perante um fac-simile à gravura. E como o produto de uma reprodução fotomecânica não está alicerçado na matriz produzida pelo artista, o seu valor comercial desce significativamente. “Numa avaliação superficial, o conjunto da Fundação terá o valor de 8 500 a 9 mil euros. Se uma só das peças fosse uma gravura original, ela valeria mais do que esse valor”, explica Maria José Goulão. A professora de História da Arte considera que este núcleo não deixa apesar disso de ter um valor histórico, estético e artístico importante até porque estas são reproduções de muito boa qualidade, diz. “O importante é recentrar o conjunto no contexto do século XIX porque todas as fontes apontam para esse período”, diz explicando que em França, nesta época, havia uma grande admiração por Rembrandt e uma grande procura comercial das suas gravuras. Estas eram apreciadas pela forma como captam o instante, importante para espírito impressionista que estava a desenvolver-se. Na mesma época, realizavam-se as experiências de Talbot e Niepce na área da fotografia que permitiram a produção de uma grande quantidade de heliogravuras. “Este conjunto não deve ser ignorado neste contexto”, acrescenta. Também o historiador de arte Nuno Saldanha teve acesso, em 1994 a uma amostra deste espólio. Na altura estava a comissariar a Galeria de Pintura do Rei D. Luís no Palácio da Ajuda e decidiu não expor por não se tratar de uma colecção homogénia. Nuno Saldanha, hoje coordenador do curso de fotografia e cultura visual do IADE, percebeu na altura que não eram todas da mesma época e ficou com a impressão de que não se tratava de gravuras. “Só uma peritagem aos exemplares, bem como a identificação dos impressores que os executaram podem permitir um cabal esclarecimento quanto à técnica exacta usada em cada estampa”, diz Maria José Goulão apontando a possibilidade do uso das diferentes técnicas de reprodução fotomecânica.
Rembrandt
Uma das obras em exposição

06/06/2014

O dia D foi há 70 anos

Há 70 anos os aliados desembarcaram na Normandia. Foi o Dia D que a 6 de Junho de 1944 mudou o curso da II Guerra Mundial. Foi uma operação militar inaudita, de cunho americano. Poderia ter falhado: a Europa seria outra.
O desembarque foi preparado em segredo na Inglaterra desde 1943, com uma imensa concentração de homens e meios, sob o comando do general americano Dwight Eisenhower, futuro Presidente dos EUA. Havia divergências entre os aliados e muitas incertezas estratégicas.
Depois de atacar a Polónia em Setembro de 1939 — com a cumplicidade de Estaline — a Alemanha de Hitler destroça o Exército francês em Maio-Junho de 1940. Um ano depois invade a União Soviética. Os EUA só entram na guerra em Dezembro de 1941, após o ataque japonês a Pearl Harbor. Até aí, a Grã-Bretanha — embora abastecida pelos americanos — suportou todo o peso da guerra no Oeste, enquanto no Leste a URSS era quase esmagada por Hitler. O avanço alemão será sustido na batalha de Estalinegrado (de 23 de Agosto de 1942 a 2 de Fevereiro de 1943) que marca o primeiro grande momento de viragem. O segundo grande momento será o Dia D — a operação Overlord.
A intervenção americana no teatro de guerra europeu não era evidente. Estava em guerra no Pacífico. Foi uma decisão estratégica do Presidente Franklin Roosevelt. Na conferência Arcadia, em Washington, nos últimos dias de 1941, ele garantiu a Churchill que considerava o III Reich alemão como o inimigo prioritário. Não foi uma decisão ideológica. Era uma decisão estratégica para evitar a hegemonia de Hitler: dominando quase todo o continente e prestes a derrotar a URSS, o Reich tornava-se na maior ameaça para a segurança e os interesses dos EUA. Roosevelt resistirá a todas as pressões para alterar essa opção.
Estaline lançava desde 1942 apelos desesperados para a abertura duma frente oeste que dividisse as forças alemãs. Os americanos não tinham forças preparadas para uma operação de tal envergadura. Mas Roosevelt tinha em mente um desembarque em França. Churchill defendia uma estratégia intermédia, propondo um ataque no Mediterrâneo. Em Novembro de 1942, os aliados desembarcam no Norte de África e, em Julho de 1943, na Sicília, passando depois para a Itália. Os americanos impõem então a Churchill o desembarque em França. Em Dezembro de 1943, Eisenhower é nomeado supremo comandante das forças aliadas e começa a preparar a Overlord. Concentram-se na Inglaterra 1,5 milhões de homens e meios fantásticos para a maior operação anfíbia da História.
Na madrugada de 6 de Junho, uma armada de 4266 barcos de transporte, escoltados por 722 navios de guerra, e quase 200 mil homens — na maioria americanos, britânicos e canadianos — protegidos por 10.000 aviões, iniciam o desembarque. Durante a noite tinham sido lançados 23.500 pára-quedistas na retaguarda das linhas alemãs. A aviação e navios bombardeiam os bunkers e as falésias. Às 6h30 começa o desembarque, em cinco praias: Omaha (americanos), Gold e Sword (britânicos), Juno (canadianos). Os americanos abrirão a um sexto ponto, Utah. Tanques anfíbios cobriam os soldados com a sua artilharia.
Ao fim do dia, 176 mil homens tinham posto o pé em terra, no meio de combates violentíssimos. Morreram nesse dia 4900 G.I. (soldados), um número abaixo do previsto. A seguir, os aliados desembarcam uma média diária de 30 mil homens, 7000 veículos e 30.000 toneladas de abastecimentos.
Os alemães tinham fortificado a costa francesa com uma rede de bunkers com artilharia, minas e obstáculos — o “Muro do Atlântico”. Tinham 100 mil homens na Normandia. Sabiam que o ataque era provável. Hitler estava optimista. Acreditava na eficácia do “muro” e queria atrair o inimigo para uma ratoeira, dizimando nas praias as suas forças, de modo a concentrar o esforço de guerra na Frente Leste e aniquilar a resistência russa.
A favor dos aliados jogou a intoxicação do inimigo — operação Fortitude — que convenceu os alemães de que o ataque seria a norte, no Pas-de-Calais, o que os levou a aí fixar 17 das 50 divisões disponíveis. Jogaram também a favor dos aliados as divergências entre os generais alemães e a confusão criada pelas ordens contraditórias de Hitler. A Resistência francesa colaborou, sobretudo na sabotagem das comunicações.
A enorme superioridade de meios dos aliados criou o mito de que o sucesso estava garantido. Pelo contrário, foi uma acção de alto risco e incertezas, a começar pela meteorologia. Uma coisa são os planos cuidadosamente elaborados e outra são os imprevistos e as surpresas no terreno, diz Antony Beevor, historiador do Dia D. Apesar do minucioso planeamento, a acção revelou desordem, improvisação e erros tácticos que quase custaram a vitória aos aliados. Decisiva terá sido a sua esmagadora superioridade aérea.
Para os americanos, Omaha — a Bloody Omaha — ficou impregnada na memória colectiva. As nuvens impediram o apoio aéreo. E um erro de informação sobre as tropas alemãs presentes quase foi fatal. A situação tornou-se tão desesperada que o general Bradley encarou a retirada. Morreram lá 2200 americanos.
Seguem-se semanas de batalhas sangrentas, por vezes selvagens. “A batalha da Normandia que se seguiu foi ganha à custa de um esforço quase sobre-humano”, acrescenta Beevor. Paris será libertada a 25 de Agosto. O Reich capitulará a 8 de Maio de 1945.
O Dia D passou a simbolizar a vitória na II Guerra Mundial. A primeira celebração formal faz-se em 1954, sob o signo da viva memória dos horrores guerra. Foi uma homenagem aos anglo-americanos. Eisenhower, embora convidado, preferiu enviar uma declaração em que lembrou o papel do marechal Jukov, supremo comandante russo na Europa. As cerimónias passam a ser feitas de cinco em cinco anos.
Em 1964, o Presidente De Gaulle envia ministros à Normandia, mas não comparece. Irá, em Agosto, às cerimónias do desembarque na Provença. Não perdoou aos americanos a sua marginalização do Dia D. Por outro lado, as relações entre Paris e Washington degradavam-se. De Gaulle reconhecera a China de Mao. O 30.º aniversário teve maior dimensão. Mas a forma moderna surge em 1984, pela mão de François Mitterrand e Ronald Reagan, na presença da rainha Isabel II e outros chefes de Estado aliados. No fim da Guerra Fria, teve uma forte marca de exaltação da aliança atlântica.
Acabada a Guerra Fria muda o tom. Em 1994, celebra-se a “reconciliação europeia”, na presença de Bill Clinton e outros 11 chefes de Estado. Embora convidado, o chanceler alemão, Helmut Kohl, acha prematuro comparecer.
Duas barreiras foram passadas em 2004, sob a presidência de Jacques Chirac: a presença do alemão Gerhard Schroeder e do russo Vladimir Putin. As dissidências da guerra e do pós-guerra pertenciam à História. Já não se comemoravam vitórias. Celebrava-se a paz.
Voltando ao início: quem ganhou a guerra? Em Agosto de 1944, o Reich tinha 2,1 milhões de soldados na Frente Leste e 1 milhão na Frente Oeste. Os russos lembram o preço que pagaram para suster Hitler: 21 milhões de mortos. A Guerra Fria e a denúncia dos crimes de Estaline ajudaram a desvalorizar este facto.
Foi certamente na estepe russa que Hilter começou a ser travado. Mas a Overlord não foi apenas a operação que permitiu acabar com o III Reich. Mudou decisivamente o curso da guerra.
Imaginemos o cenário de um fiasco. Hitler ficaria livre da ameaça americana por algum tempo. Concentraria as forças no Leste. E se conseguisse esmagar os russos? Ou se, inversamente, as divisões de Estaline tivessem prevalecido sobre Hitler, que rosto passaria a ser o da Europa? Não há resposta senão em termos de História contrafactual.
Disse-se acima que a opção europeia de Roosevelt se deveu a uma pura análise estratégica. A sua lucidez serviu a Europa. Sem a potência americana e sem o sacrifício dos seus soldados a Europa — ou metade dela — não se teria tornado num lugar agradável. Os G.I. não morreram só pela América, morreram também pela Europa.
II Guerra Mundial
Veterano de guerra em praia da Normandia


05/06/2014

Alberto da Costa e Silva: o vício de África

DIOGO RAMADA CURTO, 
PÚBLICO, 04/06/2014
A atribuição ao embaixador Alberto da Costa e Silva do Prémio Camões 2014 constitui um incentivo para ler a sua obra.
Alberto da Costa e Silva nasceu em 1931. Da sua infância, na casa grande do Piauí e chegada ao Rio de Janeiro, escreveu umas memórias. Intitulou-as, com ironia e gosto pelo paradoxo, Espelho do Príncipe. A par da sua carreira como diplomata, no âmbito da qual serviu como embaixador em Portugal (1989-1992), dedicou-se à poesia, ao ensaio e à investigação histórica. Tal como um outro diplomata brasileiro da sua geração, o grande historiador nordestino Evaldo Cabral de Melo, Costa e Silva deve ser considerado um dos maiores historiadores brasileiros da actualidade.
Quais são, então, os principais domínios e pontos de vista em que Costa e Silva inovou ou alcançou uma maior profundidade analítica?
Para responder a esta questão identifico três linhas principais, depois de tomar em mãos os seus principais livros de história publicados pela Editora Nova Fronteira: A Enxada e a Lança: a África antes dos Portugueses (1992; 2.ª ed., 1996), 768 pp.; A Manilha e o Libambo: A África e a Escravidão, de 1500 a 1700 (Nova Fronteira, 2002), 1071 pp.; Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos (2004), 207 pp.; Um Rio Chamado Atlântico (Nova Fronteira, 2012), 287 pp.. Não esqueço uma colectânea de ensaios publicada há muito em Lisboa O Vício da África e Outros Vícios (João Sá da Costa, 1989), 215 pp.; nem a sua recente coordenação do vol. I da História do Brasil Nação: 1808-2010 – Crise Colonial e Independência 1808-1930 (Fundación Mapfre e Editora Objetiva, 2011), 256 pp..
A primeira característica encontra-se no confessado “vício de África” que todas essas obras de história revelam. Ou seja, se outros grandes historiadores brasileiros procuraram dentro do Brasil a construção da sua história, propondo-se encontrar o seu epicentro tanto numa visão do paraíso situado algures no sertão, como numa outra qualquer matriz regionalista (do Nordeste à Bahia, de Minas Gerais ao Rio de Janeiro, ou das plantações e engenhos aos caminhos dos bandeirantes paulistas), Alberto da Costa e Silva encontra em África e no tráfico atlântico de escravos a raiz a partir da qual o Brasil necessita de ser explicado.
Outros intelectuais brasileiros, tais como os antropólogos Nina Rodrigues e Artur Ramos em trabalhos começados a publicar na década de 1930 foram pioneiros na criação dessa visão africanista do Brasil. Mais recentemente, Luiz Felipe de Alencastro, outro grande historiador brasileiro, também procurou traçar o quadro estrutural de um Brasil feito fora do Brasil, no Atlântico Sul. Costa e Silva elogiou o último, sem deixar de o criticar. Isto porque, ao retábulo de um só painel — representando a junção de Angola ao “miolo negreiro do Brasil” ou, por outras palavras, unindo Luanda ao Rio de Janeiro —, se deveriam acrescentar outras tábuas, capazes de formar um políptico. Compunham-no: a Costa do Ouro, onde os acãs vendiam escravos em troca de ouro brasileiro, no fim do século XVII; a Costa dos Escravos no Golfo do Benin com a sua procura de tabaco baiano; o tráfico do Senegal e dos Rios da Guiné, considerado o mais antigo de todos (tão bem estudado por António Carreira em livros que é urgente difundir); e a vasta linha costeira do Gabão aos reinos ao norte do rio Zaire.
Segunda característica: se a preocupação pela história de África implica que o historiador saia do Brasil para o compreender melhor, obriga igualmente a recorrer a diferentes texturas temporais, a começar por aquelas que só são apreensíveis através de um recuo aos ritmos mais lentos da longa duração. A este respeito, que admiráveis são os exercícios analíticos de Costa e Silva em A Enxada e a Lança! Nuns casos, encontra-se a lenta expansão a sul do Sara da cultura banta — comparada à expansão dos tupis-guaranis na América do Sul —, tanto ao nível da língua como das novas tecnologias da fundição do ferro. Noutros, são as comunidades agrícolas, fundadas na enxada, em oposição aos grupos nómadas do pastoreio, na sua relação com os processos de concentração dos poderes. Noutros casos, ainda, como no Zimbabué, no Gana ou no Mali, é a acumulação de riquezas, nomeadamente o ouro, a revelar que o comércio à distância se constituía como um dos principais instrumentos dos reis para fortalecer o seu domínio. Claro que a capacidade de lidar com diferentes texturas temporais não se reduz ao afrontar do tempo longo — em oposição às visões superficiais do que se julga ser a mudança rápida porque associada, em círculo vicioso, ao contemporâneo. Mas revela-se também no estudo de outros processos de mudança que tanto podem percorrer dois séculos (A Manilha e o Libambo…), como ser compreendidos à escala de uma vida (Francisco Félix de Souza…).
Uma última característica diz respeito não aos resultados das análises históricas centradas em África e na escravatura, que procuram jogar com diferentes texturas temporais, mas à própria oficina onde Alberto da Costa e Silva compõe os seus trabalhos. Ora, esta é composta por uma bibliografia gigantesca, lida e comentada, sempre de forma crítica, com destaque para as obras essenciais de Eric Williams a Jan Vansina. Menor peso ocupam as novidades recolhidas em arquivo, embora este seja compensado por uma fina atenção às fontes impressas, em particular aos relatos de viagem.
Porventura, mais importante, é o cuidado com o estilo — não no sentido vazio da forma pela forma — mas posto ao serviço da explicação analítica e do traçar dos quadros onde se desenham processos de mudança. É que um grande historiador recorre sempre a múltiplas formas de explicação, para procurar responder a diferentes problemas. Nuns casos, são as referidas imagens que se inspiram nas técnicas da pintura, dos retábulos aos polípticos. Noutros, encontra-se a paráfrase que se inspira em Carlos Drummond de Andrade: “apenas um arabesco em torno do elemento essencial – inatingível” (A Enxada e a Lança, p. 647). Noutros casos, ainda, estão as referências aos vestígios materiais: os três fragmentos de um prato de porcelana chinesa azul e branca, da dinastia Ming, a testemunhar como o paço real do Zimbabué, na transição dos séculos XV para o século XVI, estava no centro de uma rede de comércio a longa distância (A Enxada e a Lança, p. 657).
Em toda esta erudita diversidade de registos, sente-se bem a figura do escritor dobrado de historiador. Tal como se Alberto da Costa e Silva fosse um Michelet brasileiro interessado na história de África.
Prémio Camões 2014
Alberto da Costa e Silva, prémio Camões 2014