19/04/2016

Descoberta de novo Caravaggio?

A procissão ainda vai no adro, como se costuma dizer – e promete prolongar-se por vários meses, ainda. Referimo-nos ao debate que se seguiu à suposta descoberta de um novo quadro de Caravaggio (1571-1610), anunciada com grande impacto mediático no passado dia 12 de Abril, em Paris. A tela em causa, de grandes dimensões, é uma segunda versão de Judite e Holofernes, a cena bíblica em que a bela viúva judia decapita o general assírio, que o pintor italiano representou noutra obra sobejamente conhecida e que actualmente se encontra no Palácio Barberini, em Roma. A descoberta agora divulgada ocorreu já em 2014, acidentalmente, no sótão de uma casa particular em Toulouse, no sul de França. O proprietário, que quis manter-se anónimo, entregou a tela, em invulgar bom estado de conservação, a um especialista francês em história de arte, Eric Turquin, que depois de dois anos de aturada investigação formou a convicção de que estava na presença de um verdadeiro Caravaggio, que terá sido pintado na primeira década do século XVII, ou seja, na fase final da vida do pintor.
“Esta iluminação peculiar, esta energia típica de Caravaggio, sem correcções, com mão segura, e também os materiais pictóricos, dizem que esta tela é genuína”, disse Turquin. E logo foi avançada mesmo a previsão de que este Judite e Holofernes poderá valer no mercado da arte mais de 120 milhões de euros.
No próprio dia da apresentação do “novo” Caravaggio, surgiram referências a dúvidas que diferentes especialistas da história da arte e da obra do próprio pintor proto-barroco expressaram quanto à autenticidade desta assinatura. A mais citada proveio de Mina Gregori, directora da revista Paragone e responsável pela Fundação Roberto Longhi, em Florença. Esta prestigiada investigadora defende que o quadro em causa deverá ser antes obra de Louis Finson (1580-1617), pintor flamengo que se radicou em Itália no início do século XVII, onde se deixou influenciar pela obra caravagiana. A tese de Mina Gregori foi logo secundada por outro especialista, Gianni Papi, que expôs na sua página no Facebook as suas reservas sobre a atribuição de Judite e Holofernes. “Eu vi o quadro três vezes em Paris, durante o ano de 2015. Não estou convencido de que seja de Caravaggio. Tem demasiados elementos estilísticos em que não encontro a mão do pintor”, escreveu este professor da Universidade de Florença – citado pelo jornal Le Figaro –, exemplificando com pormenores estilísticos como os dentes de Holofernes, a cabeça da criada, ou mesmo reflexos de luz que vê demasiado afastados da estética do autor de O sacrifício de Isaac. Gianni Papi acrescenta que “o gesto de Judite a decapitar Holofernes não tem a energia que caracteriza Caravaggio”, usando como comparação a obra sobre o mesmo tema que se encontra em Roma. Na sua opinião, Finson – que se sabe ter possuído duas telas de Caravaggio na sua colecção pessoal – pode muito bem ser o autor do quadro encontrado em Toulouse, e tê-lo pintado entre 1607-08, eventualmente mesmo influenciado por um segundo quadro que o pintor italiano fez sobre a mesma cena bíblica, mas cujo paradeiro estará ainda por descobrir. Quem também surgiu a secundar a opinião de Papi é o crítico de arte do Guardian, Jonathan Jones, que igualmente logo a seguir à conferência de imprensa de Paris considerou essa “descoberta” como “demasiado boa para ser verdade”. Admitindo que o tema da obra é tipicamente caravagiano, e que o quadro segue claramente o seu estilo, Jones acha que o quadro encontrado em França não tem “a intensidade psicológica” que encontramos na Judite e Holofernes do Palácio de Barberini, que classifica como “o equivalente visual de uma tragédia de Shakespeare”.
Mas o proprietário do quadro agora revelado e Eric Turquin também têm os seus defensores, entre os quais o antigo director do Museu de Nápoles, Nicola Spinosa, e o historiador francês Emile Mourey. E, mais importante do que isso, terão agora 30 meses para defender a sua tese – o tempo que foi estipulado pela ministra francesa da Cultura e da Comunicação, Audrey Azoulay, de interdição de saída da obra do país.
Novo Judite e Holofernes em França
Novo Caravaggio?

Amadeo em exposição no Grand Palais em Paris

É impossível não pensar no que Amadeo de Souza-Cardoso podia ter sido se não tivesse morrido aos 30 anos.
Na última sala da exposição encontramos uma obra inédita, uma colagem sobre cartão com 15 por 24 centímetros que a família encontrou na casa de Manhufe. Vemos três pernas com meias de senhora sobrepostas, um "S" que identifica as máquinas de costura Singer, a palavra “woman”, material retirado da revista feminina americana McCall’s. É provavelmente um dos seus últimos trabalhos, uma nova pesquisa sobre a relação entre arte e publicidade. A colagem é mostrada entre as suas pinturas mais conhecidas, as da fase final, que pertencem todas à Fundação Calouste Gulbenkian (à excepção da da colecção Ilídio Pinho), que organiza com o Grand Palais esta exposição. Retoma o tema do feminino. Percebe-se a sua identidade. Muitas destas pinturas já têm marcas publicitárias. Aqui vê-se a utilização das palavras como símbolos gráficos, que já vinham de trás misturadas com os seus próprios elementos de promoção pessoais.
Helena de Freitas ainda pensou pôr esta colagem inédita – há mais duas semelhantes que estão em mau estado de conservação, que não foram recuperadas a tempo – ao lado de um trabalho do artista alemão Kurt Schwitters, mas não conseguiu o empréstimo necessário. E cita uma frase de Amadeo para falar desta busca identitária – “eu nem a mim próprio me imito” –  para falar de um artista muito livre que não queria ser cubista, nem futurista, mas que, paradoxalmente, também dizia ser tudo isso. Helena de Freitas diz que é preciso não nos esquecermos de que estamos a falar de um artista jovem, “que estava a atingir a maturidade quando morreu”.
A exposição que a Gulbenkian mostra em Paris é muito diferente da que Lisboa viu em 2006 e ultrapassou os cem mil visitantes. Esta é para falar de Amadeo a quem não o conhece ainda. Não há só uma mensagem, mas muitas: “Que é uma personagem muito complexa. A mensagem é a pluralidade, o sentido experimental.”
A exposição começa, aliás, com a famosa frase “Tenho mais fases do que a lua”, ao lado de um diaporama com várias fotografias do artista em várias poses. Se o título é apenas o nome do pintor, o subtítulo podia ser “um dos segredos mais bem guardados do modernismo”, e é por aí que tem passado o marketing da exposição. Um dos segredos, relativiza a comissária, e não “o segredo”.
Como se trata exactamente de mostrar alguém que é desconhecido, a exposição “é muito focada no trabalho de Amadeo”, diz a comissária, estando apenas representados outros artistas internacionais com quem teve relações pessoais, como Brancusi, o casal Delaunay e Modigliani. Entre as mais de 200 obras de Amadeo, há uma dezena de outros artistas. “Na exposição sente-se o espírito de Amadeo com toda a sua complexidade. Ele é capaz de desenvolver experiências diferentes em simultâneo na sua obra.”
Depois da introdução, o visitante descobre logo três das oito pinturas que foram ao Armory Show (1913), em Nova Iorque. Paysage, Le Saut du Lapin e Château Fort, e que pertencem ao Art Institute of Chicago. Se se olhar para o lado esquerdo, está também Avant la Corrida, que além dessa exposição esteve antes em Paris, no X Salão de Outono, em 1921, exactamente no Grand Palais (hoje integra a colecção de arte moderna da Gulbenkian). As quatro pinturas não estavam juntas desde 1987, uma vez que Le Saut du Lapin não foi à grande exposição de Lisboa em 2006.
Mas como é que se internacionaliza um artista cuja obra está quase toda em Portugal, principalmente na Fundação Calouste Gulbenkian, e que tem apenas cinco obras em museus estrangeiros? Além do Art Institute of Chicago, há uma obra no Centre Pompidou e outra no Muskegon Museum of Art, também nos Estados Unidos, se falarmos das colecções institucionais. “Essa é uma pergunta delicadíssima. Acho que a viúva, por ter escolhido um museu português, acabou por condicionar a visibilidade do artista”, porque são as instituições internacionais mais conhecidas que acabam por construir e legitimar o discurso da história de arte. “Mas para um artista ser conhecido tem de ser visto. Ele foi, de facto, esquecido e está aqui para ser descoberto. E apesar de os franceses estarem sempre a perguntar quem fez primeiro, isso não me preocupa nada, porque a obra é muito boa e o artista é muito sólido”, diz a comissária.
O filme de Christophe Fonseca, Amadeo de Souza-Cardoso: O Último Segredo da Arte Moderna pega na história do pintor que está a ser descoberto para agarrar o público. Há vários especialistas internacionais que entram na narrativa, que o realizador considera “arrebatadora”.
Exposição Amadeo no Grand Palais em Paris
Obras de Amadeo na exposição do Grand Palais.
Exposição Amadeo no Grand Palais em Paris
Obras de Amadeo na exposição do Grand Palais.
Exposição Amadeo no Grand Palais em Paris
Obras de Amadeo na exposição do Grand Palais.

08/04/2016

O enigma da rota de Aníbal pelos Alpes há mais de 2000 anos

Foi há mais de 2000 anos que o general cartaginês Aníbal Barca e o seu exército, com elefantes e cavalos, atravessou os Alpes e invadiu a Península Itálica, derrotando as forças romanas. Um dos maiores enigmas da história é a rota escolhida em 218 a.C. para a difícil travessia dos Alpes. Afinal, que caminho seguiu Aníbal? Um grupo de investigadores de vários países e várias áreas científicas anunciou esta semana uma descoberta que ajuda a responder a esta questão. Tão surpreendente (ou até mais) quanto a conclusão é a forma como conseguiram chegar até ela: foi através da análise do chão, onde se encontraram sinais dos dejectos dos milhares de animais que Aníbal levava com o seu exército, que se chegou ao rasto do general cartaginês nos Alpes. São as primeiras provas apresentadas e que apontam para uma rota a sul.
A história é apaixonante e resume-se assim: há muitos, muitos anos, um corajoso general cartaginês chamado Aníbal Barca iniciou uma difícil viagem que alguns diziam ser impossível. Com o seu exército de 30.000 soldados e com 15.000 cavalos e 37 elefantes partiu da Hispânia (nome dado pelos romanos à Península Ibérica) decidido a invadir a Itália. Pelo meio, havia a “impossível” travessia dos Alpes. Aníbal não só conseguiu atravessar os Alpes como entrou em Itália e conseguiu que a invencível força de Roma caísse derrotada a seus pés. E assim se fez História.
Porém, já se sabe, os investigadores nunca estão satisfeitos e querem também o impossível: ter todas as respostas, para todas as perguntas. Com eles, a história nunca acaba. Um dos maiores enigmas desta história é a rota que Aníbal escolheu por entre os Alpes. É imperioso saber isso, argumentam os investigadores, para identificar locais de interesse arqueológico e para os estudar. E, claro, para desvendar esse enigma.
A travessia de Aníbal remonta a 218 a.C., altura da Segunda Guerra Púnica. Cartago, na actual Tunísia, era o principal rival militar de Roma. Passados mais de 2000 anos, os historiadores, geólogos, arqueólogos e outros investigadores terão chegado a um consenso sobre três possíveis caminhos escolhidos por Aníbal. Agora, uma equipa de investigadores de vários países (incluindo o geólogo português Pedro Costa) encontrou provas que apontam para uma das rotas (a que está situada mais a sul) como a mais provável.
Estes investigadores, que publicaram dois artigos científicos na revista Archeometry, analisaram o chão de uma zona já considerada “suspeita”, um pântano numa planície próxima da Passagem da Traversette (Col de la Traversette, em francês) e relativamente perto do Monte Viso. O local desta pequena depressão que acumula água foi escolhido por garantir que estaria preservado, não teria sido vítima de derrocadas de pedras nem tinha sofrido grande alteração ao longo do tempo. A cerca de 3000 metros acima do nível do mar, os investigadores escavaram naquele. Camada por camada, foram usando a datação por radiocarbono para dar “uma idade” a cada fatia do chão. Chegaram à camada que correspondia a uma datação de há 2200 anos. Era um pedaço de terra mais escuro, mais denso. Tinha sinais de contaminação e vestígios de dejectos de animais, muito superiores aos que é provável encontrar num “chão normal”. Em vez de um limite máximo de 5% dos vestígios do ADN de um grupo de bactérias anaeróbicas (Clostridia) que é característica do estrume de cavalo, encontrou-se ali (e só naquela densa fatia de terra) mais do dobro, cerca de 12 %. Acima ou abaixo daquela camada, a presença de Clostridia caía significativamente. Mais: outros elementos da equipa olharam para química dos sedimentos e detectaram outros biomarcadores fecais (a molécula epicoprostanol, por exemplo) relativamente bem preservados que atingiam um máximo na fatia de terra com a data da travessia de Aníbal. Os resultados constituem a primeira prova química e biológica da passagem de uma elevado número de mamíferos, possivelmente indicando a rota do exército de Aníbal nesta altura.
Está desvendado o enigma da rota de Aníbal? Não, ainda não. Falta saber o resto do caminho que fez. Aparentemente, esta descoberta descarta a hipótese de uma das rotas, situada mais a norte dos Alpes. Porém, não afasta totalmente um outro caminho que passaria algures pelo meio. “Só” aponta para uma mais provável escolha de Aníbal pela rota mais a sul, proposta há meio século pelo biólogo britânico Gavin de Beer. Esta rota, aliás, era a aposta já conhecida do principal investigador desta equipa. William Mahaney, investigador do Departamento de Geografia da Universidade de York (em Toronto, no Canadá), é o primeiro autor dos dois artigos do grupo internacional de investigadores e já escreveu vários artigos e até romances científicos sobre o assunto.
Os artigos agora publicados colocam Mahaney e a equipa mais perto de um final feliz mas a história ainda não acabou. Para já, adianta Pedro Costa, Mahaney e alguns elementos da sua equipa terão sido desafiados a tentar fazer a mesma rota de Aníbal em 2017, acompanhados por uma equipa de uma cadeia de televisão. Falta agora fazer análises mais detalhadas aos sedimentos encontrados na camada do chão que guarda o rasto de Aníbal para poder dizer, com a maior certeza possível, que se trata de dejectos equinos e não humanos.
E o que aconteceu a Aníbal? Dizem que acabou, vários anos mais tarde, por ser traído e envenenado por um dos seus companheiros da histórica viagem e vitória. Afinal, o maior perigo para Aníbal não estava numa impossível travessia pelos Alpes, com elefantes e cavalos, nem na invencível força dos romanos.
Travessia dos Alpes por Aníbal
Cientistas nos Alpes à procura do rasto do exército de Aníbal.

05/04/2016

Centenário do Milagre de Tancos

O Centro Cultural de Vila Nova da Barquinha acolhe, no dia 9 de Abril - dia em que se assinala a passagem dos 98 anos da batalha de La Lys, durante a Primeira Guerra Mundial - o congresso comemorativo do Milagre de Tancos que pretende reflectir sobre o acontecimento mais marcante no que respeita à preparação militar do Corpo Expedicionário Português (CEP) antes de, em janeiro de 1917, ter embarcado para a Flandres para lutar ao lado dos Aliados.
Após a declaração de Guerra a Portugal emitida pela Alemanha a 9 de Março de 1916, seguida de uma instrução militar dispersa, o polígono de Tancos concentrou a preparação militar do CEP. Entre Abril e Junho ali se reuniram cerca de 20 mil soldados numa cidade improvisada de "Paulona".
A esta instrução se deu o nome de "Milagre de Tancos" ministrada sob o comando do General Norton de Matos, secundado pelo general Tamagnini de Abreu.
Os trabalhos pretendem, entre outos aspectos, fazer uma caracterização do contexto político, económico e social português em 1916, justificar a participação de Portugal na 1.ª Guerra Mundial bem como avaliar as consequências desta participação e, por fim, avaliar o carácter "milagroso" da preparação militar de Tancos.
A iniciativa pertence ao Agrupamento de Escolas de Vila Nova da Barquinha, município de Vila Nova da Barquinha e da Liga dos Combatentes. Os trabalhos decorrerão durante todo o dia, com o seguinte programa:
09.30h - 10.00h - Sessão de boas vindas - Centro Cultural de Vila Nova da Barquinha
10.00h - 10.30h - Prof.ª Lia Ribeiro, AEVNB, "1916 - O ano do milagre"
10.30h - 11.15h - Coronel Carlos Matos Gomes, "O imaginário português e a I Grande Guerra"
11.15h - 11.30h - Intervalo
11.30h - 12.15h - Coronel Luís Alves de Fraga, UAL, "Roberto Baptista: Da Divisão de Instrução ao CEP"
12.15h - 13.00h - Coronel Aniceto Afonso, IHC - UNL e Coronel Jorge Costa Dias, "As comunicações em campanha - Da Divisão de Instrução à instalação do CEP"
13.00h - 14.30h - Almoço livre
14.30h - 15.00h - Inauguração da "exposição iconográfica sobre o Milagre de Tancos" e Exposição Fotográfica "Alusiva ao 1.º centenário da I Grande Guerra" - Galeria Santo António
15.00h - 17.30h - Visita ao polígono militar de Tancos dirigida pelo Diretor do Museu Militar de Lisboa, Coronel Inf., Luís Albuquerque
Militares do CEP em exercícios de tiro em Tancos.

Novos dados relativos ao Homo floresiensis

Numa nova reviravolta, o homem das Flores volta a surpreender-nos, ao ver agora a idade dos seus fósseis corrigida. Afinal, esta espécie humana não viveu até há 12 mil anos, o que significava que teria coexistido com a nossa própria espécie e terá mesmo desaparecido muito tempo antes disso. Uma nova datação dos ossos do homem das Flores e dos sedimentos onde se encontravam concluiu que os fósseis desta espécie humana — descobertos em 2003 na gruta de Liang Bua, na ilha das Flores, na Indonésia — têm afinal cerca de 60 mil anos. Esta revisão da idade dos exemplares do homem das Flores, apontando-lhe mais quase 40 mil anos do que se considerava antes, é publicada na revista Nature por uma equipa internacional de cientistas, que fez mais escavações arqueológicas na gruta de Liang Bua, entre 2007 e 2014. E vem baralhar de novo o quebra-cabeças da evolução humana. Porquê? Porque há cerca de 50 mil anos a nossa espécie, o Homo sapiens, que já tinha saído de África e estava a espalhar-se por todo o planeta, já se tinha aventurado até às ilhas do Sudeste asiático, onde se localiza a ilha das Flores, e estava mesmo a chegar à Austrália. Também se dirigia para a Europa, onde chegaria há aproximadamente 40 mil anos. Ora a correcção na idade dos fósseis do homem das Flores tem implicações na história das migrações humanas: as duas espécies (eles e nós) podem ter coexistido no tempo, mas será que chegaram a encontrar-se?
A descoberta do homem das Flores, em Agosto de 2003, foi uma surpresa e lançou confusão na árvore evolutiva humana, já de si confusa. Coordenada pelo arqueólogo Michael Morwood (já falecido), da Universidade de  Wollongong, na Austrália, essa equipa de cientistas australianos e indonésios encontrou os ossos de uma mulher — incluindo o seu crânio — no solo, a cerca de seis metros de profundidade, na gruta de Liang Bua. No ano seguinte, em Outubro, na revista Nature, a equipa anunciava a descoberta e defendia tratar-se de uma nova espécie de humanos. Começava aí a controvérsia, que tornou de imediato este achado mundialmente famoso. Antes de mais, porque até essa altura estávamos convencidos de que éramos, há muito mais tempo, os únicos humanos que restavam no planeta. Até aí, os neandertais eram considerados os nossos últimos companheiros, desaparecidos há cerca de 28 mil anos (e a Península Ibérica, depois de terem vivido por toda a Europa e Médio Oriente, foi o seu último refúgio). Ao fóssil da mulher que ocupou a gruta de Liang Bua atribuiu-se a idade de 18 mil anos. E, em camadas de sedimentos mais antigas e mais recentes, que então se pensava terem entre 95 mil e 12 mil anos, encontraram-se ainda restos fragmentados de outros indivíduos. Também havia ferramentas de pedra e ossos de animais já desaparecidos. Foram os ossos da mulher, em particular o crânio, que serviram de referência para identificar a nova espécie humana. O crânio era extremamente pequeno (cerca de 400 centímetros cúbicos de capacidade, idêntica à dos chimpanzés) e os ossos dos membros desta mulher, já adulta, revelavam que era muito baixa (1,06 metros). Em termos de aparência, recorda um comunicado da equipa que publica os novos resultados, ela assemelhava-se mais às espécies humanas que viveram em África e na Ásia entre há um e três milhões de anos. O nome da nova espécie: Homo floresiensis, ou homem das Flores. Como seriam indivíduos muito pequenos, os cientistas até consideraram atribuir-lhe o nome científico Homo hobbitus, numa alusão ao mundo imaginado por J.R.R. Tolkien em O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Informalmente, os membros da nova espécie são conhecidos por hobbits. No seu conjunto, os fósseis encontrados na gruta de Liang Bua permitiram aos cientistas dizer, na altura do anúncio da descoberta, que o homem das Flores teria surgido há cerca de 95 mil anos e que a sua existência se teria prolongado até há 12 mil anos, quando desapareceu. E, aí sim, teríamos ficado sozinhos, como espécie humana, no planeta. Mas na comunidade científica muitos duvidaram de que se trataria de uma nova espécie humana, sobretudo devido ao facto de o crânio ser muito pequeno, e esta questão esteve no centro da controvérsia. Houve quem considerasse que eram indivíduos da nossa espécie, o homem moderno — mas enquanto para alguns cientistas eles tinham microcefalia, um problema neurológico caracterizado por um crânio e um cérebro muito pequenos e deficiências mentais, para outros eram apenas pigmeus, uma vez que ainda hoje existem nas Flores populações de baixa estatura. Outros puseram ainda a hipótese de ser um Homo sapiens com síndrome de Down. Para a equipa da altura, porém, a ausência de queixo — uma característica única da nossa espécie — era uma prova de que os fósseis do homem das Flores não eram nem de um Homo sapiens microcéfalo nem muito baixo, mas sim de uma outra espécie. Vários estudos reforçaram esta tese, comparando, por exemplo, a forma do cérebro do homem das Flores com a de indivíduos da nossa espécie microcéfalos e saudáveis. Esta discussão parece estar um pouco mais calma nos últimos tempos.
Agora, Thomas Sutikna (da Universidade de Wollongong e do Centro Nacional de Investigação para a Arqueologia, na Indonésia) e os colegas, incluindo muitos da equipa original, regressaram ao homem das Flores com outro artigo. Desta vez, relatam que os últimos oito anos de escavações puseram a descoberto uma organização das camadas de sedimentos da gruta mais complexa do que se pensava. O que permitiu corrigir a idade dos fósseis. “Durante as nossas escavações originais não nos apercebemos de que os depósitos do hobbit perto da parede leste da gruta tinham uma idade semelhante aos do centro da gruta, que tínhamos datado com cerca de 74 mil anos”, explica Thomas Sutikna, no comunicado de imprensa. “À medida que todos os anos alargávamos a escavação original, tornou-se cada vez mais claro de que havia um grande ‘pedestal’ de depósitos mais antigos que tinha sido separado [dos outros sedimentos] por erosão da superfície e que estava bastante inclinado em direcção à entrada da gruta.” Acontece que aquela superfície erodida da gruta foi coberta por sedimentos mais recentes, nos últimos 20 mil anos. “Infelizmente, no início pensava-se que as idades desses sedimentos sobrepostos se aplicava aos restos do hobbit, mas a continuação das nossas escavações e análises revelou que esse não era o caso”, diz outro dos autores do trabalho, Wahyu Saptomo, do Centro Nacional de Investigação para a Arqueologia indonésio.
O retrato aperfeiçoado das camadas de sedimentos da gruta de Liang Bua, que revela que os depósitos não estão distribuídos de forma uniforme, bem como datações dos vestígios arqueológicos, por vários métodos, vêm assim contar uma nova história. “Datámos carvão, sedimentos, mantos estalagmíticos, cinzas vulcânicas e mesmo os ossos do Homo floresiensis, utilizando os métodos científicos mais avançados disponíveis”, acrescenta o investigador que na equipa supervisionou as datações, Richard Roberts, da Universidade de Wollongong. “Na última década, melhorámos bastante o conhecimento sobre os depósitos acumulados em Liang Bua e o que isso significa para a idade dos ossos do hobbit e das ferramentas de pedra.”
Resultado: as datações de todos os restos ósseos do Homo floresiensis concluíram que, afinal, têm entre 100 mil e 60 mil anos, e que as ferramentas de pedra cujo fabrico é atribuído a esta espécie vão até aos 50 mil anos. “Se o Homo floresiensis sobreviveu de há 50 mil anos para cá — encontrando potencialmente outros humanos modernos nas Flores ou outros hominíneos que se espalhavam pelo Sudeste da Ásia, como os denisovanos [descobertos só em 2008 na gruta Denisova, nos montes Altai, na Sibéria, e que viveram até há 30 mil anos] — é uma questão em aberto”, lê-se no artigo científico.
Com quem se cruzou e quando é que nos deixou exactamente são agora perguntas que ficam para os próximos capítulos da incrível história da evolução humana.
Últimos trabalhos arqueológicos, entre 2007 e 2014, na gruta de Liang Bua, na ilha das Flores.
Crânio da mulher encontrada na ilha das Flores, que serviu de
referência à identificação da nova espécie Homo floresiensis.