30/04/2014

O Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado tem um clone

O clone do Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado, de 1571, é a estrela da exposição na Torre do Tombo, em Lisboa, para poder ver a muito elogiada cópia do pergaminho onde pela primeira vez aparece Macau e que é também o primeiro manuscrito em pergaminho submetido agora a estudos de pigmento.
Clones, cópias de alta qualidade de documentação histórica ou “obras-primas” conservadas nas bibliotecas e museus mundiais é o que faz o espanhol Manuel Moleiro, fundador da editora M. Moleiro. É responsável pela reprodução das 18 folhas do Atlas de Fernão Vaz Dourado, a obra maior do autor e descrita como uma das mais belas da cartografia renascentista europeia, numa edição única de 987 exemplares certificados. Nela são respeitadas desde as técnicas de pintura miniaturista renascentista que eram apanágio de Vaz Dourado até às marcas do tempo deixadas no pergaminho. São novos manuscritos a partir de manuscritos centenários. Esta é a primeira reprodução do atlas, que integra o acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e que agora passará não só a estar ao dispor (por um preço de cerca de 2000 euros) de quem o queira estudar, mas sobretudo manusear e folhear como até aqui era quase impossível. Os clientes da M. Moleiro são sobretudo e precisamente as universidades, bibliotecas, museus, mas também particulares entre os quais papas, reis, presidentes e, lê-se no portefólio da editora, prémios Nobel como Saramago. Foi Manuel Moleiro que, em 2006, abordou a Torre do Tombo para esta empreitada, que ao longo de anos e com um conjunto de peritos de várias faculdades e museus portugueses esmiuçou desde a biografia do próprio atlas até às suas cores, tintas e iconografia. Tal resultou numa outra publicação, um livro de 200 páginas que junta vários estudos com tradução em quatro línguas com “uma perspectiva inovadora, mas sem perder a própria memória da peça e do que ela representa”, como descreveu Silvestre Lacerda, subdirector-geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, em conferência de imprensa. Não estando em risco nem em mau estado, explica, “era fundamental estabilizar o Atlas” original cuja “encadernação estava a criar algumas tensões no pergaminho e corria o risco de provocar desintegração de parte dos pigmentos” com o tempo. A exposição O Gabinete das Maravilhas: atlas e códices dos melhores arquivos e bibliotecas do mundo, na Torre do Tombo integra cópias de manuscritos que são talvez os mais importantes feitos na Europa. O manuscrito mais antigo é um tratado de medicina (Tratactus de Herbis, de 1440), e encerra com um manuscrito árabe de 1582, o Livro da Felicidade.
Inaugurada no dia 29 de abril, a exposição integra cerca de 30 obras. Com entrada livre, prolonga-se até 21 de Junho na Torre do Tombo, mostrando o resultado de dois anos de trabalho, das fotografias do atlas original por Luís Pavão à sua desencadernação, passando pela comparação com outros mapas da época. Este é um dos seis atlas conhecidos de Vaz Dourado, que trabalhava a partir de Goa, sendo que apenas dois estão em Portugal, este na Torre do Tombo e outro na Biblioteca Nacional. Esteve na Cartuxa de Évora desde o princípio do séc. XVII, até chegar ao Tombo nos anos 1930.
O professor da Universidade do Porto João Carlos Garcia foi o coordenador científico do livro e se inicialmente estava renitente em debruçar-se sobre o atlas por se tratar de mais um exemplar da “época áurea da cartografia portuguesa”, amplamente estudada, o “romance policial” que foi este novo estudo crítico levou-o e à equipa a outras abordagens que não a “leitura nacionalista da cartografia portuguesa”. “Um mapa é antes de mais uma construção cultural e, como um texto, tem leituras e abordagens diversas”, lembrou, porque “quem tem o melhor mapa ganha a guerra”. Descobriu-se que a encadernação do atlas foi feita em quatro momentos entre o século XVI e o século XX, que há cores e pigmentos típicos do românico português (como o verde-garrafa) que indicam que a obra usou de facto tecnologia portuguesa. Também se destaca que a paleta do Atlas inclui dos mais ricos e duradouros pigmentos da época. Defende-se a tese, corroborada pela análise aos pigmentos, de que Vaz Dourado, sobre cuja misteriosa biografia pouco se descobriu, seria antes de mais um iluminador-cartógrafo e não o contrário.
E ali está então um mapa que “é Tordesilhas”, diz João Carlos Garcia, dominado por Portugal e Castela, com aparições tímidas dos vizinhos europeus e de chineses e árabes, com “uns autocolantes”, brinca sobre as cartelas e brasões que decoram o atlas, “para tapar a ignorância”. O mapa mostra também os vazios – “o que ainda não se sabe, o miolo" de muitos continentes e grandes extensões das suas costas.
Trata-se também de um atlas especial por ser “uma obra de aparato”, como descreve Silvestre Lacerda, e por isso resistiu até hoje - ainda que com duas páginas em falta, uma das quais o frontispício, mas de que sobreviveram reproduções e descrições. “São presentes de Natal, obras de luxo, não era com eles debaixo do braço que iam à Índia ou ao Brasil”, sorri João Carlos Garcia na apresentação aos jornalistas, lembrando que a insistência na manufactura e nas técnicas plásticas renascentistas e a resistência à impressão e consequente reprodução tornaram os atlas de Vaz Dourado em obras preciosas.
Os custos de todo o trabalho e da exposição foram suportados pelo editor espanhol. A exposição inclui outros três atlas portugueses “quase-originais” - o Atlas Miller, de 1519, o Atlas Vallard, de 1547, e o Atlas Universal de Diogo Homem, de 1565, todos em colecções no estrangeiro, da Rússia à Califórnia.
Pormenor do Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado, 1571

Capela de Maria Pia no Palácio da Ajuda

Não se pode dizer que o Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa, ganhou uma capela, quando esta sempre lá esteve. Mas a verdade é que foi mesmo isso que aconteceu. Até agora fechada ao público e transformada em sala de arrumos, a capela privada da rainha Maria Pia, a princesa de Sabóia que casou com o rei D. Luís e fez do Palácio da Ajuda a sua casa, foi restaurada e está pela primeira vez, desde 1910, à vista do público. E como se isso não bastasse, a capela guarda no seu interior um tesouro: o único El Greco nas mãos do Estado. Encomendada pela própria Maria Pia (1847-1911), a capela que data de finais do século XIX é uma obra de Miguel Ventura Terra, o arquitecto a quem se deve a reconversão do edifício do Parlamento ou os projectos para a Maternidade Alfredo da Costa e os Liceus Camões e Pedro Nunes, todos em Lisboa. Com paredes pontuadas de estrelas douradas, tecto de madeira e umas portas enormes com ferragens elegantes, a capela, que fica exactamente na zona dos aposentos da família real, está, como na altura, dividida em três partes: uma câmara de entrada, o corpo da capela e a sacristia.
A intervenção, de 70 mil euros, custeada pela Fundação Millennium BCP, não só vem realçar os detalhes da época – as estrelas nas paredes têm agora todas o mesmo tom dourado, por exemplo – como vem permitir que neste espaço sejam expostas obras que até agora estavam longe da vista do público.
É isso mesmo que destaca o director do palácio, explicando que houve uma preocupação com a organização do espaço para que se pudessem ir buscar novas peças. “Procurámos obras que nunca tinham saído das reservas, quisemos dar também à capela uma solução museológica”, acrescenta José Alberto Ribeiro, classificando as obras aqui expostas como de “carácter devocional mais privado”.
Entre estas obras o destaque vai exactamente para o óleo, do primeiro quartel do século XVII, a Santa Face de Cristo, de El Greco. “É a única obra deste pintor em Portugal”, aponta José Alberto Ribeiro, que tem como objectivo passar a mostrar algumas das obras de cariz religioso que fazem parte da colecção do palácio nesta capela, onde se podem ver ainda alguns santos da devoção da rainha Maria Pia como Santa Rita de Cássia, S. Francisco Xavier, S. Carlos Borromeo e a Virgem de Paris. José Alberto Ribeiro lembra que, apesar do pouco que se sabe, esta capela seria um local muito procurado pela rainha, existindo aqui uma carga emocional associada. A rainha usava-a depois da morte de D. Luís (1838-1889) e fez questão que tivesse nos vitrais as armas de Sabóia e de Portugal.
Palácio Nacional da Ajuda
Capela de Maria Pia no Palácio da Ajuda

El Greco
Santa face de Cristo, de El Greco

29/04/2014

A Escola Básica 2/3 Dr. António Chora Barroso comemorou o quadragésimo aniversário do 25 de abril de 1974

A Escola Básica Dr. António Chora Barroso assinalou os 40 anos do 25 de abril com a organização de uma exposição na Biblioteca Escolar entre os dias 23 e 30 de abril e uma palestra com a presença de três convidados que decorreu no auditório da Escola no dia 24 de abril.
A exposição foi constituída por trabalhos realizados pelos alunos do 6.º ano de escolaridade e por diversos materiais cedidos pelo Centro de Documentação 25 de Abril, sedeado em Coimbra. Salientaram-se na referida exposição as capas de vários periódicos coevos que noticiavam a revolução de abril de 1974: “Diário de Lisboa”, “República”; “A Capital”, “Diário Popular” “O Século” e “Diário de Notícias” e foram apresentados cartazes e imagens diversas alusivas a este fraturante acontecimento histórico.
O momento mais significativo desta atividade decorreu na manhã do dia 24 de abril, em que os alunos das turmas dos 6.º e 9.º anos participaram numa palestra que contou com a presença da Senhora Maria Luísa, do Dr. António Rodrigues Canelas e do Coronel de Infantaria Armando Borges. Os alunos escutaram atentamente os diversos relatos dos convidados em três sessões que decorreram entre as 9.25h e as 12.20h.
A senhora Maria Luísa descreveu a sua experiência em Angola, para onde se deslocou ainda na década de 60, e o seu regresso em 1975. De forma muito impressiva relatou a dramática viagem de retorno a Portugal no decurso da ponte aérea Luanda – Lisboa no verão de 1975, oferecendo aos alunos um olhar, na primeira pessoa, relativo ao processo de descolonização que se seguiu à revolução do 25 de abril de 1974.
O Dr. António Rodrigues Canelas apresentou o seu percurso de resistência ao Estado Novo, com a integração no Movimento de Unidade Democrática Juvenil (MUDJ), organismo do qual faziam parte figuras como Mário Soares, Octávio Pato, Salgado Zenha, Júlio Pomar, Rui Grácio e muitos outros. Narrou a experiência vivida nas prisões políticas do fascismo, tendo sido encarcerado em duas ocasiões (em 1952 e 1970), descrevendo a atuação dos instrumentos repressivos do regime, nomeadamente os métodos da Polícia Política (PIDE). Transmitiu aos alunos algumas das linhas fundamentais da atmosfera política, social, cultural e económica que se vivia em Portugal nas décadas de 50 a 70 do século XX. De grande interesse também foi a descrição da sua presença na Assembleia Constituinte, eleita por sufrágio universal direto a 25 de Abril de 1975, com o objetivo específico de elaborar uma nova constituição para a República Portuguesa.
O Coronel Armando Borges historiou a sua experiência na guerra colonial (1961-1974). De forma detalhada apresentou várias vivências no teatro de operações militares e descreveu aspetos técnicos do armamento utilizado pelas forças portuguesas e pelos movimentos de libertação. Explicou a importância da ação dos militares para a queda do regime salazarista/marcelista em 1974.
Os convidados enfatizaram junto dos alunos a importância de valores como a democracia e a liberdade de expressão, que foram conquistados com a revolução de abril e que devem ser preservados pelas novas gerações.
António Rodrigues Canelas
Intervenção do Dr. António Rodrigues Canelas com a presença na mesa do
Coronel Armando Borges e do professor António Ribeiro (da esquerda para a direita).

24/04/2014

Quando o mundo veio a Portugal ver como se faz uma revolução

Em Abril de 1974, dois jornalistas da rádio suíça francesa são enviados a Portugal para fazer uma reportagem “positiva” sobre a ajuda helvética a um país “subdesenvolvido, mas simpático”. Os jornalistas entediam-se na província portuguesa quando, subitamente, a revolução dos cravos faz acelerar a sua carrinha Volkswagen em direcção a Lisboa. E, numa noite, produzem a reportagem das suas vidas.
Um filme conta como foi, com todos os adereços de época, de calças à boca de sino para cima: As Ondas de Abril, do suíço Lionel Baier, é exibido esta sexta-feira às 19h no Festival IndieLisboa, e estreia em sala a 8 de Maio. É uma farsa – o realizador achou que ninguém levaria a mal se fizesse uma comédia sobre “uma revolução onde tudo correu bem” – mas só porque a história não é verdadeira, não quer dizer que não tenha acontecido. Numa cena, o repórter de guerra Joseph Cauvin é aclamado pelo povo enquanto discursa, apesar de ninguém entender o que diz. Esse momento, conta Lionel Baier ao Ípsilon, emocionou um português que, ao ver o filme na Suíça, se lembrou de ter tido uma experiência semelhante durante a revolução. “À época muitos sindicalistas de toda a Europa vieram a Portugal e ele lembrava-se de uma discussão uma noite num café de Lisboa onde um sindicalista tomou da palavra e falou em francês durante duas horas, sem que ninguém percebesse nada. Esse senhor disse-me: ‘Mas eu estava tão feliz com o direito de reunir e de falar livremente e, mais do que isso, com o facto de os franceses falarem de nós. Pela primeira vez em muito tempo, os franceses, os alemães, e outros falavam de nós. Tivemos a impressão de que nos estávamos a juntar ao resto do mundo, finalmente.”
Não houve, de facto, muitos momentos assim, em que o resto do mundo convergiu para Portugal. Literalmente: “De repente, toda a gente olhou para Portugal como se isto fosse uma coisa do outro mundo”, diz José Rebelo, que foi correspondente do Le Monde em Lisboa a partir de Janeiro de 1975. “Eu andei a passear por Lisboa com o Sartre e a Simone de Beauvoir. Vinha cá toda a gente. Parece que tudo quanto era importante se passava ali entre o Rossio e os Restauradores.”
Agora que se completam 40 anos sobre a revolução portuguesa, esse olhar exterior, estrangeiro, está de novo a ser evocado, o que parece ter menos a ver com os deveres de uma efeméride (afinal, este não é o primeiro aniversário redondo de Abril) do que sinalizar uma qualquer crise de identidade.
Repórteres e enviados especiais que cobriram a revolução para a imprensa estrangeira foram convidados a participar de muitas das conferências e festividades que estão a ter lugar; um novo livro de Joaquim Vieira e Reto Monico, Nas Bocas do Mundo: O 25 de Abril e o PREC na Imprensa Internacional (ed. Tinta da China), reconstitui a forma como os jornais estrangeiros acompanharam o processo revolucionário português através dos seus textos de opinião e comentário; Lídia Jorge acaba de publicar um novo romance, Os Memoráveis, que tem no centro a realização de uma reportagem televisiva sobre a revolução portuguesa para a estação americana CBS (sobre essa questão de o olhar estrangeiro ser o catalisador deste regresso, a escritora explicou recentemente no Ípsilon que “no exterior avalia-se a revolução com mais frequência como uma coisa positiva”, seja porque os portugueses são “profundamente autopunitivos”, seja porque no exterior “talvez não se saiba do que veio a seguir”.)
O que levou Lionel Baier, um suíço de 38 anos, a fazer um filme sobre a revolução portuguesa, quando a Suíça não viveu nenhuma guerra nem grande crise no século XX?
“Quando era pequeno e ia à escola, no início dos anos 80, havia muitas crianças que eram filhas de imigrantes portugueses, eram quase 30% da minha turma. Quando havia festas de aniversário eu ia a casa delas e lembro-me de ver fotografias e de ouvir falar da revolução dos cravos. Quando somos pequenos e suíços temos a impressão que a democracia é uma coisa normal. As primeiras pessoas que me fizeram ter consciência do preço da democracia foram os portugueses. Dei-me conta de que tinham sido privados dela durante muito tempo e que a democracia era qualquer coisa frágil, que se podia perder”, explica. “Os portugueses têm qualquer coisa em comum com os suíços. São pessoas muito trabalhadoras, austeras, não muito alegres. Ao mesmo tempo, tiveram a força de fazer uma revolução, apesar de isso não fazer parte da sua natureza. Os franceses fazem revoluções o tempo todo, é uma coisa normal. Quando os portugueses se revoltam, é preciso um esforço suplementar. Creio que deram uma verdadeira lição de democracia aos suíços. Creio que é frequentemente o caso na Suíça: as vagas de imigrantes, quer sejam espanhóis, italianos ou portugueses, trazem com elas um certo peso do mundo que os suíços não conhecem.”
Existe nas personagens do filme uma certa condescendência em relação ao Portugal pré-revolucionário. Cauvin, o veterano, chega a relativizar uma ditadura patriarcal e arcaica, dizendo que as pessoas não parecem ter razões de queixa. Os jornalistas de As Ondas de Abril apercebem-se muito rapidamente de que a reportagem que lhes foi encomendada em Portugal não tem interesse, mas parecem demasiado ingénuos ou ter pouco brio profissional: apesar de se encontrarem numa das últimas ditaduras da Europa ocidental, nunca lhes ocorre fazer uma reportagem sobre isso. Ao mesmo tempo, há nesse retrato alguma verdade: de forma geral, a imprensa estrangeira ignorou Portugal durante a ditadura. O país não existia antes da revolução. “Tenho a impressão que os jornalistas estrangeiros não tinham consciência de que era uma ditadura tão esmagadora quanto era, na verdade”, sugere Lionel Baier.
Werner Herzog, um jornalista suíço (nenhuma relação com o cineasta alemão homónimo) que cobriu a revolução para jornais suíços e alemães, admite: “Quase ninguém escrevia sobre Portugal. Tínhamos dado como perdida a possibilidade de alcançar a democracia em Portugal. Esperava-se mais de Espanha. Portugal foi uma surpresa. Parecia que eram umas ditaduras que duravam, duravam, duravam. Espanha e Portugal estavam atrás dos Pirenéus. Essas montanhas pareciam ter dez mil metros de altura porque aí começava outro mundo, que não tinha nada a ver com o resto da Europa ocidental. 25 de Abril foi o dia em que Portugal foi colocado no mapa da Europa.” Falta dizer que tudo isto é dito originalmente em português – outro resultado, dizemos nós, do 25 de Abril.
“Se não tivesse havido o 25 de Abril, eu não teria vindo a Portugal”, diz o catalão Ramón Font, 62 anos, que veio ver a revolução portuguesa quando no seu país a ditadura de Franco perdurava. “Na minha geração, quando se fala de Portugal, há sempre alguém que pergunta: ‘E tu, em que dia chegaste a Portugal?’ Há uma competição para ver quem chegou antes. Porque, mais tarde ou mais cedo, nos primeiros dois anos viemos todos.”
Para um imenso número de jornalistas internacionais, o testemunho e a cobertura da revolução portuguesa correspondeu a um trampolim profissional: uma escola de aprendizagem ou um prenúncio da carreira futura. Muitos deles prosseguiram o seu trabalho noutras zonas do globo, em particular África, ou perseguiram outras revoluções (no Irão, no mundo árabe). As suas biografias mencionam quase sempre a passagem pela revolução portuguesa, como um factor de orgulho. As suas histórias davam um filme.
Há uma em particular que Dominique Pouchin, ex-repórter do Le Monde, contou vezes sem conta em cursos de jornalismo onde lhe pediam que partilhasse as suas experiências. Pouchin – que participa esta sexta-feira numa sessão no Museu do Oriente com Mário Soares e o ex-Presidente brasileiro Lula da Silva sobre “o 25 de Abril visto de fora” – costuma apresentá-la como “a história do scoop falhado”. Tinha terminado o seu estágio no Le Monde há pouco tempo quando, em Março de 1974, nas vésperas do levantamento militar falhado das Caldas da Rainha, o seu editor lhe perguntou se tinha medo de ir a Portugal. “Medo não, mas para fazer o quê?”, perguntou o jovem jornalista. A pasta sobre Portugal que existia nos arquivos do jornal era frugal. Havia sinais de descontentamento no interior do exército português – o alarme tinha soado duas ou três vezes em pouco tempo, explicaram-lhe. Não era forçoso que escrevesse alguma coisa, mas disseram-lhe para manter os olhos e os ouvidos abertos. Pouco depois, Pouchin deu consigo na parte de trás de uma mota, às voltas por Lisboa, sem saber onde estava. Tinha pedido ajuda a colegas portugueses, do jornal de oposição República. “Eu gostava de escrever sobre isto, mas se existe realmente um movimento de capitães preciso de falar com um deles.” O encontro produziu-se na sala mais recôndita de um restaurante do Bairro Alto – que, afinal, não ficava longe da sede do República, a mota limitara-se a andar às voltas para despistar suspeitas –, onde Pouchin se viu sentado diante de um militar de óculos escuros que lhe falou durante mais de duas horas. “Esse senhor fala-me da sua admiração por Amílcar Cabral, da longa marcha chinesa... Fico completamente aturdido.” O militar não correspondia às expectativas. “Tenho a impressão de estar perante um perito em acções militares, mas esquerdista”, ri-se hoje Dominique Pouchin, ao contar o episódio. O jornalista escreve um artigo curto, no qual cita vagamente o militar em questão, identificado como “Comandante R”. Após o golpe das Caldas de 16 de Março, tido como um ensaio para o 25 de Abril, regressa a Paris. Mas a revolução chama-o, pouco depois, de volta a Lisboa. Em de Julho de 1974, está no seu quarto no Hotel Mundial a folhear os jornais da manhã quando repara na fotografia de primeira página do Diário de Notícias. Era um retrato do militar que tinha encontrado em Março e que, percebia agora, veio a ter um papel crucial no movimento das forças armadas. “Dou-me conta de que o homem com tinha falado em Março, era o Major Melo Antunes. Ou seja, tinha encontrado Melo Antunes e não fiz nada, ou quase nada.” Entre Março de 1974 e Janeiro de 1976, Pouchin passou mais tempo em Lisboa do que em Paris. “Eu ia e vinha, dependendo da evolução dos acontecimentos durante o PREC – a palavra mais horrível que já ouvi. Como se pode baptizar uma revolução com um nome tão horrível? Sempre que havia um sobressalto, eu vinha.” Ao todo, foram 17 viagens a Lisboa, 40 blocos de notas.
José Rebelo, que hoje é investigador e professor na área de sociologia da comunicação no ISCTE, nota que os jornalistas estrangeiros estavam distribuídos pelos hotéis de Lisboa de acordo com a nacionalidade. “Os americanos estavam quase todos no Sheraton. Os ingleses no Ritz.” Os franceses ocupavam o último andar do Hotel Mundial. Jornalistas de diferentes jornais, da esquerda e da direita. “Constituíamos uma verdadeira redacção. Jantávamos sempre juntos no restaurante panorâmico do hotel. Não havia concorrência. Havia tanta coisa que se passava todos os dias que cada um de nós era incapaz de cobrir tudo.”
O jornalista americano Steve Broening, então correspondente da Associated Press em Lisboa, é citado no livro de Joaquim Vieira e Reto Monico, dizendo que à excepção do Vietname, “nenhum outro acontecimento estrangeiro motivara tanta e tão longa atenção” por parte da agência quanto a revolução portuguesa. O que é que atrai tanto a atenção da imprensa internacional? “Estamos a falar de um período em que o cenário de guerra fria ainda existia, e os golpes de estado na altura eram de direita ou de extrema-direita, e eram feitos por generais e coronéis, sempre com tendências autoritárias e totalitárias, para endireitar um regime que eles achavam que estava a ser desviado por defeito dos políticos que estavam à frente dele. E este é o contrário”, contextualiza Joaquim Vieira. “Ainda para mais ocorrendo na Europa. Se fosse num país do Terceiro Mundo se calhar era diferente. Mas na Europa o que estava a acontecer era inédito desse ponto de vista. Tinha havido um golpe de estado na Grécia mas tinha sido feito por coronéis.”
Além disso, a mudança de regime não se produziu apenas em Portugal, mas em todas as extensões territoriais no ultramar. O que se estava a passar era maior do que um rectângulo no extremo ocidental da Europa. “O fim da guerra colonial e as independências africanas iam causar uma alteração profunda do ponto de vista geoestratégico. Muita gente começou a ver, a prazo, que a União Soviética podia ter influência nesse processo”, diz Joaquim Vieira. Que continua: “Depois do Maio de 68 em França, que durou só algumas semanas e não teve um grande resultado político, havia um processo revolucionário em Portugal que se prolongava com coisas concretas: ocupações de fábricas, de terras e tudo isso. A opinião pública estrangeira começou a estar muito atenta à evolução dos acontecimentos em Portugal, para ver o que é que isto ia dar. Muitos estrangeiros, herdeiros do Maio de 68 e outros, vinham aqui para Portugal. Havia uma ligação muito directa entre Portugal e as correntes estrangeiras mais de esquerda e extrema-esquerda.”
Inicialmente, pelo menos, a revolução é vista com simpatia pela imprensa internacional e saudada como positiva. “O que impressionou muito naquela fase foi que não houvesse violência”, diz Ramon Font, que se fixou como correspondente em Lisboa a partir de 1976, logo a seguir à aprovação da Constituição. “Não foi partido vidro nenhum. Há uma fotografia extraordinária que está no átrio da Universidade de Lisboa, onde se vê uma chaimite, dessas que estavam no Chiado, cheia de povo, sobrelotada, e, do lado direito, um senhor que devia ser funcionário de alguma repartição pública, vestido de fato e gravata, agarrando a chaimite como se fosse o seu guia. Como se dissesse: ‘Siga-me, siga-me que vou indicar-lhe o sítio.’ Tudo isso configurava um universo assombroso para quem, como nós, vinha de fora. E estávamos fascinados com os militares, que eram a antítese dos nossos militares [espanhóis]. De repente, aparecem à nossa frente tipos com os quais se podia tomar um copo num bar de Lisboa.” Numa visita a de Caxias, em Julho de 1974, Ramon Font fica impressionado com a forma como os novos prisioneiros – ex-agentes da polícia política do Estado Novo – são tratados. “Almoçámos no refeitório da prisão e nas mesas ao lado das nossas estavam os pides. Que nos diziam: ‘Estamos aqui como passarinhos, mas não vamos estar aqui muito tempo.’ Efectivamente, saíram pouco tempo depois. Isso causou-me um impacto brutal de uma sociedade diferente. Se os vencedores são capazes de tratar os vencidos com esta generosidade... Essa foi a imagem mais forte que levei de Lisboa. Lembro-me que no regresso a Espanha passamos pela Andaluzia e fomos ter com uns militares espanhóis, nossos conhecidos, a quem contámos esse episódio e eles não nos deram crédito. Pensavam que, à hora a que contávamos isto, depois do jantar, era consequência do que tínhamos bebido. Não era possível.”
Os estrangeiros não tinham necessariamente uma visão “turística” da revolução portuguesa. Portugal parecia-lhes menos um caso de exotismo do que um laboratório político que podia trazer respostas às questões que os inquietavam.
Zuenir Ventura, que veio cobrir a revolução para a revista brasileira Visão, chegou a Lisboa logo no dia 26 de Abril de 1974. “Fui o primeiro enviado especial do Brasil a chegar. Encontrei a cidade numa saudável confusão que me lembrou Carnaval, celebração desportiva e comício político. As pessoas, sem qualquer objectivo definido, pulavam, cantavam – e, sobretudo, falavam. Era quase como se tivessem descoberto a própria voz. Fiquei contagiado pela euforia do povo, uma espécie de embriaguez de liberdade. Como se fosse um prenúncio da nossa.” O Brasil vivia então sob uma ditadura militar, que acabara de completar uma década, em vésperas da revolução portuguesa. “Foi a cobertura mais alegre e surpreendente da minha vida. Porque eu olhava para aquilo pensando no Brasil. Menos em Portugal e mais no Brasil.” Até então, Portugal tinha sido uma referência no Brasil, mas irónica. “De repente, você queria ‘ser o imenso Portugal’, como na canção Fado tropical, de Chico Buarque.”
Outro brasileiro que veio para Lisboa nesse período, foi o realizador Glauber Rocha. “Ele conseguiu uma câmara emprestada e filmou o 1º de Maio. Filmou como se quisesse se preparar para fazer o mesmo no Brasil.”
A neutralidade não era possível. “Há idades em que é muito difícil resistir a certos cantos de sereia”, diz Ramon Font. “Com 22 anos, era difícil não me deixar arrastar [pela revolução]. Ninguém me pedia neutralidade. E se alguém tivesse pedido, eu teria dito: ‘Desculpe, não consigo.’ Ainda por cima, o país estava todo à esquerda. [Os de direita] Ou tinham fugido ou todos disfarçavam.”
Talvez espante ouvir dizer que a revolução, aqui, foi “exemplar” (a expressão é de Lionel Baier) quando 1975 em particular representa um período traumático para alguns sectores da sociedade portuguesa (as nacionalizações, as expropriações, a vaga de “retornados” das ex-colónias) e abriu dissidências político-partidárias que perduram até hoje que fazem com que a nossa forma de comemorar o 25 de Abril ainda não esteja normalizada (prova disso é a recente polémica sobre se os capitães de Abril deveriam ou não ter direito a discursar no Parlamento, nota Ramon Font). Talvez espante ouvir dizer que a revolução foi exemplar quando para boa parte da esquerda, ela representou o fim das ilusões revolucionárias dos soixante-huitards (“Usando linguagem teatral: o pano cai em 1975”, diz Dominique Pouchin, ex-trotskista cicatrizado). Talvez espante ouvir dizer que a revolução foi exemplar quando o modelo hoje seguido na Tunísia, um exemplo feliz da Primavera árabe, é a transição espanhola, onde não houve revolução e a mudança de regime foi um pacto negociado por mútuo acordo entre ex-franquistas e a esquerda (“A minha suspeita é que os tunisinos sabem muito mais sobre a transição espanhola e estão, de certa forma, a tentar seguir-lhe o exemplo. E não fazem ideia do que foi o processo português”, disse Philippe Schmitter, analista americano que presenciou a revolução portuguesa e escreveu sobre ela, na véspera de partir para a Tunísia. “Amanhã tiro as teimas!”). Talvez espante ouvir dizer que a revolução foi exemplar quando a crise parece confrontar-nos com as escolhas que foram feitas nesse período e com esse legado. Para as gerações que nasceram depois de 1974, talvez este seja o primeiro aniversário em que a revolução é mais do que uma efeméride. “Há uns anos tive a impressão que muitas pessoas nas novas gerações se tinham esquecido do que se passara. Isso surpreendeu-me. Os jovens não sabiam grande coisa porque para eles era algo que pertencia à história”, diz Lionel Baier. Mas em 2012, quando filmou As Ondas de Abril em Portugal, o realizador teve a sensação de que as pessoas começavam a ganhar uma nova consciência. “Grande parte da equipa do filme era portuguesa e eu fazia imensas perguntas. E pareceu-me que era como se falassem pela primeira vez em muito tempo da revolução. As pessoas parecem ter vontade de se lembrar desse espírito.” Por causa da crise? “Por causa da crise, sim.” Não por acaso, o filme de Baier termina com imagens actuais, dos graffiti anti-austeridade e anti-troika. “Parecia-me impossível fazer um filme com um tom meramente histórico. Todos os dias havia manifestações na rua, havia dias em que interrompíamos as filmagens para que os técnicos ou os figurantes pudessem ir manifestar-se. O filme devia dizer qualquer coisa sobre o presente.”
Alfredo Cunha
Foto de Alfredo Cunha

23/04/2014

O único troço colocado a descoberto da Muralha de D. Dinis

O único troço colocado a descoberto da Muralha de D. Dinis, mandada construir há mais de sete séculos para proteger a população de Lisboa dos ataques vindos do Tejo, pode ser visitado. Para ver de perto os 31 metros deste monumento nacional que foram musealizados, há que descer ao subsolo da sede do Banco de Portugal (BdP), no Largo de São Julião, em Lisboa.
Este troço da muralha foi encontrado em 2010, durante as obras de reabilitação do quarteirão que se estende entre aquele largo e a Rua do Ouro e que integra um conjunto de oito edifícios e a antiga Igreja de São Julião, todos propriedade do BdP. O objectivo inicial da intervenção era fazer o reforço estrutural do edificado, mas o seu âmbito acabou por ser alargado com a decisão de ali se instalar o Museu do Dinheiro e com as descobertas arqueológicas entretanto realizadas.
Para chegar ao Núcleo de Interpretação da Muralha de D. Dinis é preciso descer um lance de escadas e entrar numa zona à qual o projecto inicial de reabilitação não previa que os visitantes pudessem aceder. O director do Departamento de Serviços de Apoio do BdP, Eugénio Gaspar, sublinha que este foi um processo feito de “vários compromissos”, que permitiram “tornar compatível” a função actual do espaço com o acesso público a um monumento nacional.
Numa primeira área é possível ficar a conhecer, enquanto se ouvem músicas escritas e compostas por D. Dinis, o contexto em que foi mandada construir, em 1294, a muralha e alguns dos principais factos que marcaram o reinado do monarca. Depois disso, os visitantes são convidados a percorrer um corredor, com uma largura reduzida, no fim do qual surge finalmente o troço descoberto daquela construção.
Mas antes de lá chegar há 25 peças, de várias épocas, para conhecer, incluindo botões de punho do séc. XIX, estacas de madeira do séc. XVIII, um azulejo do séc. XVI, vários objectos do quotidiano da época islâmica e artefactos romanos ligados ao mar. O arqueólogo Artur Rocha sublinha que esta é apenas “uma pequena amostra” de tudo o que foi encontrado, e que “não chega a ser um milésimo do total”.
À escolha desta amostra, explicou o arqueólogo, presidiu a ideia de “dar uma visão diacrónica, da época romana até à actualidade”, mas também a de revelar a “ligação do rio à cidade”.
Quanto à muralha, Artur Rocha sublinha que esta foi “a primeira vez em que apareceu num ambiente de escavação arqueológica controlada cientificamente”. Nos anos 30, recorda, houve notícias da descoberta de um outro troço, que não foi conservado nem alvo de um registo fotográfico.
Nos trabalhos arqueológicos que se iniciaram no princípio de 2010 e se prolongaram por 11 meses, foi também encontrada “uma grande quantidade de materiais osteológicos, restos humanos”, acrescentou o arqueólogo, explicando que esses vestígios serão de “pelo menos 580 indivíduos”, enterrados no local “na primeira metade do séc. XIX”.
O acesso ao Núcleo de Interpretação da Muralha de D. Dinis é gratuito e pode ser feito de terça a sexta-feira, entre as 10 e as 18h. A responsável pelo espaço, Sara Barriga, anunciou que entre 17 de Maio e 4 de Setembro, período durante o qual haverá em simultâneo uma exposição de arte contemporânea com peças da colecção do Banco Europeu de Investimento, o local estará também aberto ao sábado.
O Museu do Dinheiro só abre em 2015. A sua inauguração chegou a ser anunciada para 2013, mas afinal o Museu do Dinheiro, que vai ficar instalado no espaço da antiga Igreja de São Julião, só deverá abrir as portas “no terceiro trimestre de 2015”. A nova data foi avançada pelo director do Departamento de Serviços de Apoio do Banco de Portugal, que explicou que esta “reprogramação” se deve ao facto de a instituição ter decidido “dar prioridade” ao Núcleo de Interpretação da Muralha de D. Dinis.
Ainda assim, “os dois primeiros núcleos” do futuro museu estão já acessíveis ao público, apresentando cada um deles uma figura que representa Hermes, o deus grego do comércio. Numa dessas figuras é possível assistir a uma animação que dá a conhecer o traçado urbanístico da zona da Baixa antes e depois do terramoto e noutra os visitantes podem, usando os seus bilhetes de entrada no espaço, simular acções de troca com Hermes e ficar a conhecer as várias formas que o dinheiro assumiu ao longo do tempo.
Muralha de D. Dinis (1294)
Troço da muralha de D. Dinis (1294)

Os tons da Paixão: a singularidade portuguesa nas coleções da BNP

Em sintonia com a quadra pascal, a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) promove durante o mês de Abril uma série de iniciativas em torno da tradição portuguesa do canto da Paixão, conforme era praticada no século XVI. Até 30 de Abril estará patente na Sala de Referência a mostra Os tons da Paixão: a singularidade portuguesa nas coleções da BNP. Neste âmbito será apresentado o livro O Passionário Polifónico de Guimarães. Trata-se de imponente edição fac-similada, editada pela Sociedade Martins Sarmento, acompanhada por um estudo aprofundado (em português e inglês) e pela transcrição musical de Pedrosa Cardoso. A publicação é acompanhada por um DVD com a interpretação do conteúdo musical pelo grupo Voces Caelestes (dirigido por Sérgio Fontão), que também estará presente na BNP para um momento musical ilustrativo. Os passionários eram livros litúrgicos que continham a música para os textos da Paixão de Cristo, que se cantavam na Semana Santa. A BNP possui alguns exemplares valiosos, tanto impressos como manuscritos, que podem ser vistos na mostra. Além do conteúdo musical, são obras de grande valor estético também do ponto de vista visual pelo que a visita se aconselha também aos não especialistas. Entre as obras expostas encontra-se, por exemplo, o Passionarium secundum ritum capelle regis Lustania (Lisboa, 1543), um dos primeiros livros de música impressa em Portugal em que o próprio autor, Diogo Fernandes Formoso, declara ter seguido ordem do rei no sentido de unificar o canto da Paixão segundo códices vigentes. Foi também neste acervo que se descobriu o primeiro vestígio do que viria a ser considerado o tom português do canto da Paixão, distinto do que era praticado nos restantes países de tradição cristã, temática que foi objecto de estudo da tese de doutoramento de José Maria Pedrosa Cardoso, publicada em 2006 pela Imprensa da Universidade de Coimbra. De acordo com este musicólogo, “evidências do modelo português podem ainda ser encontradas em mais dois impressos quinhentistas, de autores como o padre Manuel Cardoso e frei Estêvão de Cristo, e vários manuais litúrgicos do séc. XVII comprovam a prática uniforme do canto da Paixão em Portugal antes da importação dos modelos do cantochão romano realizada por ordem de D. João V”. Uma fonte crucial neste contexto é um passionário proveniente do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (c. 1580), do qual existe um exemplar na Biblioteca da Universidade de Coimbra e outro na Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães. Este último serviu de base à edição fac-similada, publicada na sequência da Capital Europeia da Cultura 2012 – Guimarães, que vai ser apresentada na BNP com a presença de Pedrosa Cardoso, de Eduardo Magalhães (responsável pela musicografia), do musicólogo Manuel Pedro Ferreira e de Paulo Vieira de Castro. Como já foi referido, será também possível ouvir alguns exemplos musicais, interpretados pelo grupo Voces Caelestes.
O manuscrito original do Passionário de Guimarães é decorado com capitulares a ouro, com motivos fitomórficos e vegetais. Além do cantochão das Paixões segundo S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. João, do pregão pascal e também das lições de matinas, na versão tradicional portuguesa apresenta algumas frases em polifonia. “Trata-se de um documento singular com particularidades assinaláveis”, refere Pedrosa Cardoso. “A primeira é a existência de alguns versículos a três vozes, especialmente alguns ditos de Cristo, que são assim enfatizados, quando o habitual era serem entoados em cantochão. A segunda é a existência de um canto monódico claramente mensuralizado, isto é, submetido a regras de ritmo muito diferenciado.”
Pedrosa Cardoso explica ainda que, a partir do século XVI, o texto do Evangelho era confiado a três diáconos cantores. “Além de executarem a três vozes os versos em polifonia, repartiam entre si o drama da Paixão, cantando em diferentes níveis de recitativo os papéis de narrador, de Cristo e dos restantes personagens do relato evangélico.” No Passionário proveniente de Santa Cruz de Coimbra, o uso da polifonia nas palavras de Jesus assume um carácter simbólico e estético, indo ao encontro das qualidades musicais dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, responsáveis por um florescente centro de actividade musical nos séculos XVI e XVII.
Passionário século XVI
Exemplo de um Passionário do século XVI

William Shakespeare (1564-1616) nos 450 anos do seu nascimento

Será William Shakespeare (1564-1616) nosso contemporâneo? Quando se comemoram 450 anos do seu nascimento – crê-se que terá nascido a 23 de Abril, tendo sido baptizado a 26 de Abril – e se celebra a sua obra, que nunca deixou de ser encenada e admirada, o autor de Hamlet está em toda a parte.
“Shakespeare é omnipresente. Quase não se pode falar inglês sem o citar. Ele acrescentou mais de 2000 palavras à língua inglesa. Palavras e expressões como ‘incarnadine’ (colorir de encarnado), ‘assassination’ (assassínio), ‘sea change’ (mudança de marés), ‘lily livered’ (assustadiço), ‘aerial’ (aéreo), ‘bedazzled’ (ofuscado), mas também palavras que usamos todos os dias, como ‘fashionable’ (na moda), ‘mortifying’ (humilhante, degradante), ‘quarrelsome’ (brigão), ‘reclusive’ (isolado) ou até ‘puke’ (vomitar)”, diz a editora britânica Gail Rebuck, directora executiva da Penguin Random House no Reino Unido.
Quando se fala hoje de Shakespeare, não estamos só a falar de literatura. Estamos a falar de cultura em sentido lato e a realçar a sua universalidade, já que a sua obra atrai todas as culturas e tem sido recontada de inúmeras maneiras em diversas línguas. “A maioria das pessoas sabe frases de Shakespeare, mesmo que não saiba quem as escreveu. Os seus versos são lidos em funerais e casamentos. Os seus sonetos aparecem em cartões de S. Valentim...” Os políticos roubam-lhe frases, os escritores fazem títulos a partir dele, mas, lembra a editora, também foi evocado por um britânico que matou um prisioneiro no Afeganistão. “Para o bem ou para o mal, habita a nossa mente colectiva”, diz Gail Rebuck, lembrando que cada geração se foi inspirando no trabalho do Bardo. “Shakespeare tanto pode inspirar novas peças de teatro como novos livros”, conclui.
E por isso nasceu o projecto editorial The Hogarth Shakespeare, da Hogarth Press, chancela da Penguin Random House: uma série de romances que vão recontar as peças de Shakespeare. “O primeiro destes livros será publicado em 2016, no aniversário da morte de Shakespeare. Vamos ter O Mercador de Veneza repensado por Howard Jacobson. Não podia ter arranjado um par melhor — é uma ‘dream-team’. Aquela que é uma peça de teatro ambivalente e perturbadora, com o seu anti-herói judeu, foi escrita por Shakespeare antes do termo anti-semitismo existir. Vê-la ser examinada por um romancista fantástico como Howard, que fez do anti-semitismo um dos seus temas constantes, vai ser revelador”, diz Gail Rebuck.
Howard Jacobson, o escritor britânico que recebeu o prémio Man Booker em 2010 pelo romance A Questão Finkler (ed. Porto Editora), contou ao PÚBLICO que quando foi convidado para contribuir para o The Hogarth Shakespeare disse logo que lhe parecia um projecto entusiasmante e ficava muito feliz por participar. “Posso, por favor, escolher a peça Hamlet?”, perguntou-lhes. Responderam-lhe que sim, mas que preferiam que fizesse O Mercador de Veneza. Jacobson achou que era “um pouco previsível”, porque é judeu e muitos dos temas dos seus romances estão relacionados com isso: “Lá vamos nós, estou a ficar estereotipado!” Mas chegou à conclusão de que seria um óptimo desafio. “O Mercador de Veneza é uma peça que levanta questões interessantes sobre o anti-semitismo que Shakespeare via à sua volta e que era um lugar-comum na Europa, particularmente em Inglaterra, onde escreveu. Não considero que seja uma peça anti-semita. É impossível imaginar que Shakespeare tenha sido anti-semita, porque o anti-semitismo é uma forma de estupidez e ele não era estúpido em relação a nada”, disse Jacobson ao PÚBLICO.
Shakespeare
William Shakespeare (1564-1616) 

08/04/2014

Museu de Arte Antiga renova parceria com Everything Is New para exposição "Os Saboias. Reis e Mecenas".

O Museu Nacional de Arte Antiga anunciou que renovou a parceria com a produtora Everything Is New para apresentar, em Maio, a exposição Os Saboias, composta por mais de uma centena de obras de arte do século XVIII. A nova exposição, que abre ao público a 17 de Maio, vai dar seguimento à parceria com a empresa privada,
A próxima grande exposição que o MNAA vai acolher intitula-se Os Saboias. Reis e Mecenas (Turim, 1730-1750), será uma embaixada notável do estilo rococó italiano. Concebida especificamente para o MNAA pelo Museo Civico d’Arte Antica-Palazzo Madama, de Turim, Itália, a exposição é o resultado de uma parceria estabelecida entre o museu de Lisboa e o museu italiano.
A nova exposição, evoca o papel da cidade de Turim na primeira metade do século XVIII enquanto capital do Reino do Piemonte e dos grandes artistas italianos e internacionais ao serviço das estratégias de poder da Casa de Saboia.
O percurso expositivo vai estar organizado em seis núcleos temáticos: A Corte dos Saboias: Reis e Mecenas, com os mecenas retratados por artistas de renome, como Clementina ou Duprà; As Artes em Concerto: Arquitectura, Escultura, Artes Decorativas, com as obras dos principais responsáveis pela revolução no gosto da época, como o arquitecto Filippo Juvarra, o escultor e ourives Francesco Ladatte e o ebanista Pietro Piffetti. O Teatro vai ser outro dos núcleos da exposição, apresentando a importância desta arte nos espectáculos de corte, através das obras de Giovanni Michele Graneri ou dos esboços para cenas do Teatro Régio de Turim, pintadas por Crosato e pelos irmãos Galliari. Outros núcleos são A Pintura, com obras dos artistas chamados a Turim para decorarem as residências reais, como Crosato, Nepote, Ricci, Giaquinto, Mura, Rapous, Cignaroli e Beaumont, Fontes e Modelos, com gravuras e desenhos, e O Triunfo do Ornamento, que apresenta uma carruagem de jardim.
MNAA
Museu Nacional de Arte Antiga

Quadros roubados de Gauguin e Bonnard estiveram 40 anos na cozinha de trabalhador da Fiat

A polícia italiana anunciou a inesperada descoberta de dois quadros desaparecidos dos pintores franceses Paul Gauguin (1848-1903) e Pierre Bonnard (1867-1947), que tinham sido roubados em Londres, em 1970, de casa de uma rica família britânica. Foi revelada a recuperação de Fruits sur une table ou nature au petit chien, que Gauguin pintou em 1889, dedicado à condessa N(imal), e de La femme aux deux fauteuils, de Bonnard, sem data.
A primeira pintura foi avaliada entre 15 e 35 milhões de euros. Para a segunda, o jornal La Reppublica avança uma verba próxima dos 600 mil euros.
As duas telas foram recuperadas há cerca de dois meses, na Sicília, na cozinha de um operário reformado da Fiat. Segunda a descrição desta história, que a polícia italiana classificou como “rocambolesca”, este trabalhador, um “apaixonado por arte”, comprou os dois quadros num leilão anónimo em Turim, quando aí ainda viva, em 1975, tendo pago por ambos a quantia ridícula de 45 mil liras (o correspondente, no câmbio actual, a 23 euros). Naturalmente desconhecendo o valor (e a identidade dos autores) das obras. O operário pendurou-os na parede da sua cozinha, primeiro em Turim, depois na Sicília, quando se reformou, e onde estiveram durante 40 anos até terem sido recuperados.
O percurso que a polícia italiana conseguiu reconstituir das obras diz que elas foram abandonadas, após o roubo em Londres, numa viagem de comboio Paris-Turim, tendo depois ido parar à secção “Perdidos & Achados” da estação de caminhos-de-ferro desta cidade italiana. Foi daí que chegaram depois, anonimamente, ao leilão de 1975.
Sabe-se que os quadros de Gauguin e Bonnard eram propriedade da família londrina Mark-Kennedy e os herdeiros poderão, a partir de agora, reivindicar a propriedade das obras.
Bonnard Gauguin
Os quadros de Gauguin e Bonnard

Obras de arte saqueadas por nazis

Se ao fim de um ano não aparecerem os proprietários legítimos das muitas centenas de obras de arte que terão sido roubadas por nazis e que Cornelius Gurlitt escondia em duas casas, as mesmas serão devolvidas a Gurlitt. É este o acordo feito entre os advogados do homem que mantinha em segredo na sua posse mais de mil obras de arte de artistas como Pablo Picasso, Claude Monet ou Henri Matisse e as autoridades alemãs. Cornelius Gurlitt, como já tinha anunciado antes, trabalhará em conjunto com a polícia e os investigadores para ajudar a determinar quais das obras da sua colecção é que foram realmente roubadas por nazis durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, este acordo tem uma duração: um ano. Ao fim de um ano, as obras que não foram reclamadas são devolvidas a Cornelius Gurlitt, de 81 anos, filho de Hildebrand Gurlitt, um negociante de arte que ajudou o regime nazi a vender no estrangeiro a arte confiscada aos museus europeus e extorquida aos coleccionadores judeus. Numa nota publicada no site que o alemão criou em Fevereiro, com o apoio do seu advogado, para contar a história destas obras e para de alguma forma facilitar que os possíveis lesados possam encontrar os trabalhos que lhes foram tirados, lê-se que assim que um pedido de restituição é feito, as obras em causa ficam em “custódia fiduciária”, mesmo que um ano tenha passado. A Gurlitt só serão devolvidas as obras que não tenham sido reclamadas de todo. A colecção, na qual se destacam trabalhos de Henri Matisse, Marc Chagall, Paul Klee, Pablo Picasso, Otto Dix, Emil Nolde, Albrecht Dürer, Pierre-Auguste Renoir e Canalletto, está avaliada, segundo a BBC, em 989 milhões de euros.
arte roubada por nazis
Algumas das obras em casa de Cornelius Gurlitt

03/04/2014

Agrupamento de Escolas Artur Gonçalves comemora os 40 anos do 25 de abril

O Agrupamento de Escolas Artur Gonçalves vai comemorar os 40 anos do 25 de abril com exposições dos trabalhos dos alunos e documentos do Centro de Documentação 25 de abril, palestras com a presença do Coronel Armando Borges e projecção de documentários alusivos à Revolução dos Cravos.
Agrupamento de Escolas Artur Gonçalves
Cartaz da atividade da autoria da Professora Sílvia Filipe

In memoriam a Jacques Le Goff (Toulon, 1924 - Paris, 2014)

O historiador francês que revolucionou a historiografia moderna e reabilitou a imagem da Idade Média europeia, mostrando-a como um período bastante mais dinâmico do que o humanismo renascentista quis fazer crer, morreu, em Paris, aos 90 anos.
Além de centenas de artigos, Jacques Le Goff tinha mais de 40 livros publicados, desde Os Intelectuais na Idade Média e Mercadores e Banqueiros na Idade Média, ambos de 1957, até ao recente À la recherche du temps sacré, Jacques de Voragine et la Légende Dorée, de 2011.
Bernardo Vasconcelos e Sousa diz que Le Goff “é um dos historiadores mais importantes da segunda metade do século XX à escala mundial, sem dúvida e sem favor nenhum”. Com George Duby, outro grande historiador francês falecido em 1996, “mudou de forma radical e muito profunda a maneira de ver a Idade Média ocidental”.
O historiador francês pertencia à terceira geração de historiadores da escola dita dos Annales. A sua concepção de antropologia histórica e o seu interesse pela história da cultura e das mentalidades, de O Nascimento do Purgatório à monumental biografia do rei São Luís, distinguem-no dos modelos de interpretação social e económica de Fernand Braudel, representando um modo criativo de retomar o legado da revista fundada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre.
Sucessor de Braudel na direcção da École des Hautes Études en Sciences Sociales, publica, em 1964, A Civilização do Ocidente Medieval, uma obra que toma como objecto de estudo um vasto âmbito geográfico e um período de tempo longo e nos dá, diz Bernardo Vasconcelos e Sousa, uma nova Idade Média “combatendo quer a visão negra de uma Idade Média de ‘feios, porcos e maus’, que ainda hoje tem uma representação no discurso político ou jornalístico, quer uma imagem dourada e cor-de-rosa”, alimentada pelo romantismo. Na Idade Média que construiu, juntamente com a sua geração, “estudam-se as estruturas, as mentalidades, os valores, as representações do quotidiano”.
Se tivesse de escolher uma obra para um leitor leigo, Vasconcelos e Sousa destacaria A Civilização do Ocidente Medieval, “um livro de carácter científico que se lê como um bom romance”, um manual de história geral onde Le Goff defende a existência “de uma civilização do Ocidente medieval”, uma civilização que sucede à Antiguidade Greco-Romana e antecede o mundo moderno.
O historiador da Universidade Nova de Lisboa cita também O Nascimento do Purgatório (a obra que o próprio Le Goff preferia entre as outras) como “um livro magistral”, onde se analisa a criação, a invenção, do Purgatório, sobretudo a partir do século XII, como lugar intermédio entre o Céu e o Inferno: “Mesmo que não se esteja em condições de aceder de imediato à harmonia celestial, há uma lugar intermédio, de esperança, que possibilita que se venha a aceder ao Céu. É uma sociedade que se está a diversificar, a complexificar, e isso teve consequência na estruturação do pensamento e da devoção cristãos.”
Na obra Para Um Novo Conceito da Idade Média, onde junta vários pequenos estudos, Vasconcelos e Sousa destaca um intitulado “O tempo da Igreja e o tempo do mercador”, em que o historiador francês compara e contrapõe uma representação da vivência do tempo por parte da Igreja, de um tempo cíclico das horas litúrgicas, dos ciclos naturais, a um tempo quantificado dos mercadores, um tempo linear, um tempo que é dinheiro: “Esse tempo começa a fazer a sua afirmação a partir dos séculos XIII e XIV, passando pela sua materialização, quantificado já não pela sucessão das horas diárias, pelo bater do sino das igrejas, mas pelo relógio mecânico que começa a surgir precisamente nas cidades ao longo do século XIV.”
Na sua abordagem antropólogica, na sua ambição de abarcar o homem em todas as suas dimensões, Le Goff construiu uma história das mentalidades medievais em que mostrou como estavam então interligados domínios aparentemente tão distantes como a teologia ou o comércio. Esta diversificação dos temas, que abriu muitas linhas de investigação, dá uma ideia, diz Vasconcelos e Sousa, “da revolução que houve nos estudos medievais, de que Le Goff e Duby foram mais directamente responsáveis”.
Nos anos 70, coordena duas obras colectivas de grande envergadura que se tornarão as referências teóricas da Nouvelle Histoire, a corrente historiográfica que funda com Pierre Nora, e que procurará levar mais longe a herança dos Annales: os três volumes de Fazer História (1974), e A Nova História, em colaboração com Jacques Revel (1978).
André Burguière defende a tese de que, tal como os alemães têm de ter, em cada época, um grande filósofo, os franceses “querem ter um grande historiador que o mundo inteiro lhes inveje”. E acrescenta que desde a morte de Fernand Braudel esse historiador era Jacques Le Goff. Burguière lembra que Le Goff sempre se reclamou da lição de Marc Bloch, co-fundador da revista Annales e pioneiro em contrapor à historiografia convencional do feudalismo uma abordagem sociológica. Mas as investigações de Bloch e dos seus discípulos focavam-se essencialmente na história rural e agrícola. Caberá a Le Goff propor uma história da cidade medieval, já anunciada nos títulos dos seus primeiros livros, que evocam, com um sabor deliberadamente anacrónico, os intelectuais e banqueiros da Idade Média. Le Goff, diz Burguière, “combate o lugar-comum que identifica a herança da Idade Média com o mundo rural”.
Quando recebeu, em 2004, o prestigiado prémio Dr. A. H. Heineken de História, atribuído pela Academia Real das Artes e Ciências dos Países Baixos, a declaração do júri dizia que Le Goff “mudou a nossa percepção da Idade Média”. Le Goff punha mesmo em causa as cronologias tradicionais, defendendo que a Idade Média correspondia a todo o período durante o qual a Igreja e a respectiva doutrina tinham sido consideradas como a fonte da verdade, um estado de coisas que só teria verdadeiramente sido posto em causa, na esfera económica, com a revolução industrial iniciada em Inglaterra em meados do século XVIII, e também, na ordem das mentalidades, com a Revolução Francesa. Ou seja, teríamos uma Idade Média que se estenderia até à primeira metade do século XVIII e que, desde o século IV, teria tido, diz Le Goff numa entrevista ao mesmo André Burguière, “várias fases de progresso que se podem qualificar como renascenças”, do desenvolvimento das cidades à criação das universidades. Le Goff crê ainda que uma das mais fundas dívidas do sujeito moderno ao cristianismo medieval é o reconhecimento da “noção de interioridade”, que este favoreceu.
Filho de um professor de inglês, Jacques Le Goff nasceu no dia 1 de Janeiro de 1924 em Toulon, onde fez os estudos liceais e teve como professor o historiador Henri Michel, que depois se tornaria um especialista na história da Segunda Guerra. Le Goff referir-se-ia sempre com veneração a Henri Michel, cujo magistério terá contribuído para que se tornasse historiador. Mas Toulon, dirá mais tarde Le Goff, era uma cidade profundamente racista, e o estudante ficou satisfeito quando teve de se mudar para a mais cosmopolita Marselha, com o seu porto de mar e a sua população multiétnica. Frequenta em Marselha os estudos preparatórios de acesso ao ensino superior, mas vai pouco às aulas. Convocado para o “serviço de trabalho obrigatório”, vulgo STO, imposto pela Alemanha nazi ao Governo de Vichy, foge e junta-se à Resistência. Leitor compulsivo e omnívoro, devora os romances históricos de Walter Scott, como Ivanhoe, cuja influência na sua decisão de se tornar medievalista ele próprio não descartará. No pós-guerra, estuda literatura, mas acabará por se licenciar em História. Em 1947, prossegue os seus estudos na Universidade de Praga. Da invasão soviética que porá fim, em 1968, à Primavera de Praga, dirá depois Le Goff que foi a “vacina” que o imunizou definitivamente contra o comunismo. Concluídas as provas de agregação em 1950, torna-se professor e começa por dar aulas num liceu de Amiens, vai depois para a Universidade de Oxford como bolseiro e, em 1954, assume funções docentes na Universidade de Lille. Em 1958 conhece o historiador Maurice Lombard, especialista no islão medieval, um encontro que se revelará decisivo. Le Goff dirá sempre que foi com Lombard que mais aprendeu, e foi também ele que o apresentou a Braudel, que após ter lido as primeiras obras do jovem historiador lhe arranja um lugar de assistente na prestigiada VI Secção (ciências económicas e sociais) da École Pratique d’Hautes Études, que então dirigia. Em 1969, Le Goff torna-se co-director da revista Annales e, em 1972, sucede a Braudel na presidência da VI Secção da École Pratique d’Hautes Études. Grande comunicador, estreia-se em 1968 no programa radiofónico Les Lundis de l’Histoire, que ainda hoje é emitido pela France Culture, e com o qual Le Goff colaborou até ao final da vida.
Le Goff
Jacques Le Goff