22/03/2016

Cartazes sobre a história da promoção das condições de trabalho

Mensagens diretas, direcionadas para a protecção individual, algumas moralistas, com o bem e o mal ilustrados sem rodeios e com um grafismo neo-realista muito marcante. Eram assim os cartazes produzidos para uma das primeiras campanhas nacionais de prevenção de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, promovida pelo Ministério das Corporações e Previdência Social, no final dos anos 1950.
Estes e outros cartazes foram agora reunidos pela Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), por altura das comemorações do centenário do Ministério do Trabalho e da própria inspecção. Através deles é possível fazer uma viagem pela forma como tem sido tratada a segurança e saúde no trabalho desde meados do século XX e, inevitavelmente, pelos diversos organismos públicos que assumiram estas áreas.
Olhando para as quatro dezenas de cartazes que marcam o período entre 1959 e 1967, as preocupações estavam muito direccionadas para os comportamentos e para a protecção individual dos trabalhadores.
“Os primeiros cartazes ilustram a fase de desenvolvimento económico registada a partir de finais da década de 50 na sequência da adesão à Associação Europeia de Comércio Livre a (EFTA) e a fase de namoro com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), numa tentativa do Estado Novo contrariar o isolamento em que se encontrava.
Essa primeira campanha surge, precisamente, nos anos que antecederam a adesão de Portugal à EFTA (1960) e a ratificação da Convenção 81 da OIT, relacionada com a inspecção do trabalho (1962).
O alvo das mensagens eram os trabalhadores da construção civil, dos caminhos-de-ferro, os operários, soldadores, mineiros e agricultores.
Muitos dos cartazes impressos na altura ilustravam de forma muito clara, e às vezes com humor, o lado negro dos comportamentos negligentes. “Use a cabeça para não a perder“, apela um dos cartazes. A imagem por si só diz tudo: um homem ao lado de uma carrinha, de fósforo aceso na mão, confirma se tem combustível no depósito; na parte inferior há uma campa onde se lê “Aqui jaz CUIZIKODY que acendeu um fósforo para ver se tinha gasolina no depósito… e tinha”. Outro pede aos mineiros que usem máscara e mostra, sem rodeios, o que acontece às vítimas de silicose. Há ainda outro que reproduz uma notícia de um jornal cujo título é “Operário ferido num desastre” para alertar: “Amanhã podes ser tu!”. Uma foice aparece, noutro exemplo, como um prenúncio da morte que espera os imprudentes.
As imagens usadas mostram também o enquadramento em que vivia a população portuguesa na época. Num dos cartazes um pé descalço arrisca picar-se num prego: “Pregos! Um perigo para os seus pés”. Outro cartaz alerta para a necessidade de proteger todos os trabalhadores sem excepção, dando a ideia de que as preocupações não eram iguais para todos: “Para o mesmo perigo a mesma protecção, os ajudantes precisam também de proteger os olhos e a pele”.
Havia uma grande preocupação com o sector da construção. É, de resto, em 1958 que é publicado o regulamento de segurança no trabalho nas obras de construção civil. Coincidindo com o êxodo dos campos para as grandes cidade e com a construção de bairros novos nas cidades de Lisboa e do Porto. Em 1962, coincidindo com a ratificação da convenção da OIT sobre a inspecção do trabalho, foi criado, no âmbito da Junta de Acção Social do Ministério das Corporações, o Gabinete de Higiene e Segurança do Trabalho.
Passados cinco anos, este gabinete lançou uma campanha de prevenção de riscos nas actividades rurais. O único cartaz identificado como sendo desta época é um marco importante na abordagem da segurança no ambiente rural que até aí não tinha sido ainda sensibilizado para a defesa da saúde e vida do seu trabalhador. Anos mais tarde, esta estrutura foi substituída pela Direcção de Serviços de Prevenção de Riscos Profissionais, responsável por desenvolver, até 1977, um conjunto de actividades de sensibilização. É também por essa altura que se começa a alertar os trabalhadores e as empresas para problemas que até então tinham tido pouco relevância, como o ruído.
Os cartazes perdem o grafismo neo-realista, as mensagens passam a ser mais simples, mas continuam muito direccionadas para a protecção pessoal: “Protege os ouvidos”, “Cuidado, a electricidade é perigosa!” ou “Proteja os seus pés!”. Os destinatários continuam a ser, sobretudo, os trabalhadores da construção civil, da agricultura e da indústria.
Em 1978, com a reorganização do Ministério do Trabalho, é criada a Direcção-Geral de Higiene e Segurança do Trabalho (DGHST). Esta estrutura vem dar um carácter mais institucional à intervenção do Estado nos domínios da higiene, segurança e prevenção de riscos. Continuaram a desenvolver-se acções de sensibilização e informação, mas agora de forma mais sistematizada.
Foram editados mais de uma centena cartazes originais e algumas reproduções do Institut National de Recherche et de Sécurité (França), considerado um organismo de referência e com o qual havia uma grande proximidade.
O grafismo vai-se depurando e a abordagem do problema da segurança no trabalho começa a ser mais sistematizada e integrada. Além das mensagens relacionadas com a protecção individual, começam a surgir outras. “Que fazer para o salvar? Tirar o curso de socorrismo do trabalho”, alerta um cartaz em que um trabalhador está deitado no chão.
O centro das preocupações continuam a ser os sectores da construção, da agricultura e da indústria. Em linha com o quadro legal vigente, o comércio, os serviços e os transportes estavam fora do campo de intervenção da DGHST.
A grande viragem na forma como se aborda a prevenção ocorre em meados dos anos 1980, já muito influenciada pelo período de pré-adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE).
A década de 1980, referem, iniciou-se com uma crise económica e financeira que levou a um pedido de auxílio ao Fundo Monetário Internacional e com o objectivo político de aderir à CEE. E este segundo aspecto teve reflexo “em todo um conjunto de medidas de modernização do quadro legal e institucional”. O domínio da segurança, higiene e saúde no trabalho não foi excepção. Em 1985/86 foram aprovados regulamentos para as Minas da Panasqueira e para os estabelecimentos comerciais, de escritórios e de serviços e foram ratificadas várias convenções da OIT, relacionadas com a poluição do ar e ruído no local de trabalho ou peso máximo de cargas a transportar pelos trabalhadores, num esforço que se prolongou até aos anos 1980.
Os cartazes mostram essas preocupações, com apelos dirigidos a esses riscos. “Faça calar o ruído” ou “Use máscara adequada”, eram algumas das mensagens que passavam. Surgem também por esta altura as sinalizações dentro do local de trabalho a alertar para a queda de objectos ou para o uso de luvas.
A sociedade continuava a evidenciar outros problemas que influenciavam a segurança no trabalho. Um cartaz de 1982 representava uma fábrica dentro de uma garrafa e um trabalhador embriagado: “Entra com álcool… sai com acidente”, lê-se.
A partir dos anos 1990 as campanhas passam a focar-se em sectores específicos e em problemas muito concretos. Ao longo dos anos 1990, o Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho (IDICT) – organismo que absorveu a DGHST, a inspecção do trabalho e a direcção-geral das relações de trabalho – lançou várias campanhas de prevenção de riscos profissionais na construção, agricultura e têxtil.
Em 1993 foi lançada uma campanha contra o trabalho infantil. O problema era sentido sobretudo no têxtil e calçado, além dos sectores onde o problema era “endémico”, como era o caso da agricultura. “Na minha idade o trabalho é na escola”, lia-se num cartaz da altura.
Contudo, esta parte da história ainda não está disponível para consulta no site da ACT. A intenção é continuar a traçar a história da promoção das condições de trabalho ao longo do ano, com a disponibilização dos restantes cartazes.
Cartaz relacionado com os trabalhadores agrícolas.

18/03/2016

câmaras secretas junto ao túmulo de Tutankhamon

Parece agora quase seguro que sempre existem duas câmaras secretas por trás do túmulo de Tutankhamon, no Vale dos Reis. Esta convicção surge reforçada pela informação de que dentro dessas câmaras existirão matérias metálicas e orgânicas. É isso que dizem as imagens do exame de radar realizado no final de 2015 pelo especialista japonês Hirokatsu Watanabe, sob a direcção do egiptólogo Nicholas Reeves. Existem duas salas por detrás das paredes oeste e norte da câmara funerária de Tutankhamon.
Estes resultados vêm dar mais força à hipótese avançada por Reeves de que as citadas câmaras guardam o túmulo de Nefertiti, a bela esposa de Akhenaton, pai de Tutankhamon, mas não necessariamente a mãe do faraó-menino que morreu com apenas 19 anos, em 1324 a.C. O egiptólogo tem defendido que a morte prematura de Tutankhamon obrigou os sacerdotes a improvisar um túmulo, o que terá sido feito naquele que, uma década antes, tinha sido destinado a Nefertiti. Daí a subdivisão do espaço em várias câmaras funerárias, com tamanhos e características diferentes dos túmulos dos restantes faraós. Mais comedido é al-Damati, ministro das Antiguidades egípcio, que admite que nas referidas câmaras funerárias poderá estar o túmulo de Kia, outra esposa de Akhenaton (e mãe de Tutankhamon), ou mesmo o de uma das suas filhas.

Tutankhamon
Túmulo de Tutankhamon (esquema).

15/03/2016

Primeiros neandertais viveram na Península Ibérica há 430.000 anos

O complexo quebra-cabeças da evolução humana acaba de ganhar mais uma peça vinda de Sima de los Huesos, na serra de Atapuerca, em Espanha. Neste poço natural com 13 metros de profundidade estão ossadas de 28 humanos que viveram há 430.000 anos. Uma nova sequenciação do ADN de ossos de dois humanos permitiu concluir que os indivíduos daquela população podem ser considerados os “primeiros neandertais”, segundo um estudo publicado ontem na revista científica Nature. “Eles são os primeiros neandertais (ou os mais velhos) ‘certificados’ pela análise do ADN”, explica Matthias Meyer, da equipa de Svante Pääbo, o famoso biólogo que se especializou em genética aplicada à evolução humana, do Instituto Max Planck, em Leipzig (Alemanha).
Nos últimos anos, tem-se debatido a espécie a que pertenciam os humanos de Sima de los Huesos. Primeiro, pensava-se que eram representantes do Homo heidelbergensis, um suposto antepassado directo dos neandertais. Parte da morfologia do crânio e os dentes desta população de Espanha já eram idênticos aos dos neandertais. Mas em 2013, a equipa de Svante Pääbo veio baralhar aquela ideia. Os cientistas fizeram a sequenciação mais antiga de sempre de ADN humano, neste caso de ADN mitocondrial — o material genético que existe nas mitocôndrias, as baterias das células, que se herda pela via materna. E a sequenciação indicava que aqueles humanos estavam mais próximos dos denisovanos (uma espécie descoberta na Sibéria, que em 2010 veio tornar a evolução humana mais complexa) do que dos neandertais.
Os resultados eram surpreendentes. “O facto de o ADN mitocondrial do homem primitivo de Sima de los Huesos partilhar um antepassado comum com os denisovanos e não com os neandertais é inesperado, uma vez que o seu esqueleto tem características derivadas dos neandertais”, disse na altura Matthias Meyer, que participou no estudo.
Há ossadas e vestígios na Europa e Ásia associados à anatomia e à cultura tipicamente neandertais com idades entre os 40.000 e os 300.000 anos. Por outro lado, os humanos modernos (a nossa espécie), que evoluíram em África, migraram para a Europa e Ásia há menos de 80.000 anos, reproduzindo-se com os humanos que existiam naqueles continentes, mas sobretudo substituindo-os. Há 28.000 anos os neandertais extinguiram-se. Finalmente, a genética mostrou que, há 50.000 anos, existia outra população humana na Ásia, os denisovanos. Conhecem-se só dois dentes e um pedaço de falange, pelo que a sua anatomia é um mistério.
Assim, há muitas questões que estão por responder. Quando se deu a separação dos antepassados dos humanos modernos, dos neandertais e dos denisovanos? Qual o lugar dos humanos de Sima de los Huesos nesta árvore evolutiva? E como integrar informações que aparentemente se contradizem, como é o caso de os humanos de Sima de los Huesos terem uma anatomia semelhante à dos neandertais e um ADN mitocondrial mais perto do dos denisovanos?
Os novos resultados dão algumas respostas. A equipa de Svante Pääbo conseguiu obter ADN nuclear (no núcleo das células e menos frequente do que o ADN mitocondrial, já que cada célula só tem um núcleo mas milhares de mitocôndrias) a partir de um dente incisivo e de um fémur de dois indivíduos diferentes. Mesmo assim, a quantidade de ADN nuclear obtida foi apenas 0,07% do genoma humano total, mas permitiu compará-lo com o genoma das outras espécies humanas. “As sequências [genéticas] assemelham-se mais com as dos neandertais do que com a dos denisovanos, mostrando que os humanos de Sima de los Huesos estavam relacionados com os neandertais e não com os denisovanos”, explica-nos Matthias Meyer.
Os novos dados são compatíveis com a estimativa da separação da linhagem dos neandertais e a dos denisovanos “entre há 381.000 e 473.000 anos”, explica-se no artigo. Este cálculo foi feito com base na comparação dos genomas dos dois tipos de humanos, que permitiu estimar o momento da divergência entre ambos, ao ter-se em conta o número de mutações genéticas que vão surgindo ao longo do tempo nas populações humanas. “Este rácio de mutações também sugere que a separação entre os humanos arcaicos [que deram origem aos neandertais e denisovanos] e os humanos modernos ocorreu entre há 550.000 e 765.000 anos”, segundo o artigo.
Mas mantém-se uma pergunta. Por que é que o ADN das mitocôndrias dos primeiros neandertais de Sima de los Huesos tem mais semelhanças com o ADN mitocondrial dos denisovanos e menos com o ADN mitocondrial dos neandertais que apareceram mais tarde? Uma hipótese avançada no artigo é que o ADN mitocondrial dos neandertais que depois povoaram a Europa — portanto, descendentes dos neandertais de Sima de los Huesos — seja fruto de cruzamentos que entretanto aconteceram com uma população desconhecida de humanos, vinda de África.
“Não há provas genéticas de uma migração vinda de África ocorrida entre a altura dos humanos de Sima de los Huesos (há 430.000 anos) e a chegada dos humanos modernos (entre há 40.000 e 80.000 anos)”, diz Matthias Meyer. “Poderemos testar essa hipótese se obtivermos mais informação do ADN nuclear dos humanos de Sima de los Huesos e a compararmos com o ADN dos neandertais mais recentes.”
Sima de los Huesos
Arqueólogos escavam em Sima de los Huesos.
Atapuerca
Um esqueleto dos 28 indivíduos cujos os ossos foram encontrados no poço de Sima de los Huesos, em Atapuerca.
Atapuerca
Ilustração dos primeiros neandertais que viviam em Atapuerca, perto de Burgos, Espanha, há mais de 400.000 anos.

14/03/2016

Descoberta a nau Esmeralda que fazia parte da armada da segunda viagem à Índia liderada por Vasco da Gama

O Ministério do Património e da Cultura de Omã e a Blue Water Recoveries, empresa britânica que trabalha na recuperação de embarcações naufragadas, anunciaram ter descoberto ao largo de uma das ilhas do sultanato, Al Hallaniyah, uma nau da segunda armada de Vasco da Gama, que partiu de Lisboa em 1502. A notícia informa que os investigadores envolvidos no projecto acreditam que se trata da nau Esmeralda, comandada por Vicente Sodré, tio materno de Vasco da Gama, o grande navegador da Rota do Cabo. O ministério omanense e a empresa britânica de salvados garantem que “este é o mais antigo navio da idade europeia das descobertas a ser encontrado e estudado cientificamente por uma equipa de arqueólogos e de outros especialistas”.
A nau naufragada, que não terá resistido a uma tempestade em Maio de 1503, foi localizada em 1998, precisamente o ano em que se festejava o quinto centenário da descoberta do caminho marítimo para a Índia passando pelo Cabo da Boa Esperança, mas só em 2013 começou a primeira campanha arqueológica, a que se seguiram mais duas, em 2014 e 2015. Omã e a Blue Water Recoveries (BWR) garantem, ainda no comunicado, que já resgataram 2800 artefactos.
Entre os objectos retirados dos destroços, na sua maioria armas, balas de ferro e de pedra e outras peças de artilharia, estão quatro que, de acordo com a equipa, ajudaram a identificar a nau: um disco de bronze com as armas de Portugal e a esfera armilar, iconografia ligada ao rei D. Manuel I, o monarca de quem Vasco da Gama recebe ordens; um sino de bronze com uma inscrição que sugere que a embarcação foi terminada em 1498; um cruzado de ouro cunhado em Lisboa entre 1495 e 1501; e um “índio”, moeda em prata “extraordinariamente rara (só se conhece outro exemplar no mundo)” e mandada fazer pelo monarca “especificamente para o comércio com a Índia”.
Dois académicos que têm dedicado boa parte dos seus estudos aos Descobrimentos, são bastante mais cautelosos em relação à idade e ao nome da embarcação. Ressalvando que não tiveram acesso a qualquer documentação científica sobre os trabalhos, Francisco Contente Domingues e Luís Adão da Fonseca defendem que é preciso estudar muitíssimo bem o espólio recuperado e cruzá-lo com documentação escrita relevante para tirar conclusões tão definitivas quanto possível. Os objectos não bastam. "Estas embarcações não se afundavam com uma chapinha com o nome lá escrito”, diz o primeiro, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. “Há uma margem de imponderabilidade imensa. Isto não significa que eu diga, à partida, que não é a Esmeralda, pode ser, mas é preciso que haja documentação a corroborá-lo, o que passados 500 anos não é fácil de encontrar.” Luís Adão da Fonseca, professor da Universidade do Porto, sublinha, de igual modo, a importância das fontes escritas, embora não lhe custe acreditar que a nau localizada é a Esmeralda. É que, explica, os historiadores têm hoje informação que lhes permite pensar que, ao regressar a Lisboa da segunda viagem, Vasco da Gama deixa ao seu tio Vicente – o outro tio materno do navegador, Brás, comandava também uma das naus da frota, a São Pedro – a tarefa de patrulhar aquelas águas no sul da Península Arábica. “Não temos uma carta com as instruções do Gama para o Vicente Sodré mas sabemos que, naquela altura, eles tinham já identificado o grande entrave ao projecto português – o facto de as comunicações no Índico estarem controladas pelos muçulmanos. A nau de Vicente Sodré fica para impedir que os muçulmanos dominem e actua quase como uma embarcação de corsários, que tinham uma actividade de alto risco – quando ganhavam, ganhavam muito, quando perdiam, às vezes perdiam tudo. E aqui, claramente, a coisa correu mal.” É preciso ver ainda, acrescenta o professor da Universidade do Porto, que esta segunda armada de Vasco da Gama “é muito mais complexa do que a primeira, que era de descoberta. Esta tem objectivos políticos, estratégicos. E é para ajudar a organizar a presença portuguesa no Oriente que Vicente Sodré fica”. Os dois académicos esperam agora os relatórios científicos. “Não quer dizer que a investigação nos faça saber mais, mas pode fazer-nos saber melhor. Não precisa de trazer novidades para ser relevante, basta que traga mais matizes ao que já conhecemos, que permita fundamentar teorias”, argumenta Adão da Fonseca, destacando entre os artefactos resgatados a moeda de prata, o “índio”, que D. Manuel I manda cunhar para festejar o regresso de Vasco da Gama da viagem inaugural. “Esta moeda é um instrumento de propaganda do poder de um rei que até acrescenta títulos ao seu nome depois de 1498 [passa a ser Senhor da Conquista, da Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia]”. Contente Domingues insiste: “É preciso esperar pelos estudos mais aprofundados para perceber até que ponto é relevante, embora qualquer embarcação dos séculos XV/XVI naquelas águas seja à partida interessante”.
O relatório preliminar da investigação deverá sair na publicação especializada The International Journal of Nautical Archaeology, com a assinatura de David L. Mearns, David Parham, da Universidade de Bournemouth (Reino Unido), e Bruno Frohlich, do Museu de História Natural da Smithsonian Institution (Estados Unidos). É feito com base no trabalho desenvolvido por uma equipa internacional que integra investigadores do Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova e do Museu Geológico do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG). Uma dessas técnicas, Tânia Casimiro estudou as cerâmicas mas esteve incontactável. Miguel Magalhães Ramalho, director do museu do LNEG, e a colega Luísa Duarte estudaram duas balas a pedido da BWR. O objectivo era determinar a origem da pedra de que eram feitas, explica Magalhães Ramalho: “A primeira, que a Luísa estudou, é de rocha escura, magmática, provavelmente da região de Abrantes. A que eu estudei, e que levanta mais dúvidas, é de calcário que terá saído de uma das pedreiras dos arredores de Lisboa.” Em ambos os casos a origem dos materiais aponta para Portugal, defende.
Vasco da Gama navegador
Vasco da Gama

05/03/2016

O Livro de Cozinha de Apício. Livro de receitas do império romano

Um livro de receitas cuja recolha inicial é atribuída a uma personagem lendária com uma identidade envolta em controvérsia: supostamente um romano de nome M. Gauius Apicius, nascido em 25 a.C. É a mais recente edição da obra De Re coquinaria, agora apresentada como O Livro de Cozinha de Apício - um breviário do gosto imperial, apresenta o retrato de uma civilização através da mesa. Apício é o criador de receitas de molhos a que corresponde o corpus inicial do livro. Tudo indica que teria sido um dos impulsionadores da censura culinarum, uma moda apostada em estabelecer critérios de qualidade para os produtos alimentares e aconselhar sobre as formas mais adequadas para cozinhá-los, que se intensificava no século I a.C.. Apício ter-se-ia rodeado por uma corte de jovens aristocratas, a quem industriava na arte de cozinhar, ócio que se afigurava prejudicial aos olhos de Séneca. Segundo a lenda, seria muito inventivo na cozinha e empenhava-se em criar iguarias exóticas como línguas de flamingo, rouxinol ou pavão, cristas de aves vivas ou calcanhares de camelos (embora nenhuma delas conste neste livro). É possível também que tenha sido o inventor de uma primeira versão de foie gras, pois engordava gansas com figos secos para lhes aproveitar os fígados. Mas, exotismos à parte, os romanos, pelo menos no início, eram um povo frugal, cuja alimentação se baseava nas papas, antepassadas do pão, feitas com grãos torrados e humedecidos e depois com farinha de trigo, e que eram cozidas em água e sal ou leite, por vezes melhoradas com leguminosas, sobretudo favas ou lentilhas ou hortaliças. O peixe era comido nas áreas costeiras. O consumo de sal era elevado e, mais tarde, o de condimentos e temperos também. A alimentação dos romanos só ganha sofisticação com o contacto com o mundo helénico depois da conquista do Mediterâneo Oriental. Na época imperial (27 a.C.) tudo converge para que Roma atinja o seu apogeu na arte da culinária. Na forma de estar à mesa, termina a tradição de atirar comida para o chão para a oferecer aos defuntos, passando-se a desenhá-la nos mosaicos, numa oferenda simbólica. Apesar do grande número de receitas apresentadas, em 90% delas está presente o molho de peixe fermentado, liquamen ou garum — o que parece indicar que mesmo pratos diferentes poderiam ter sabor semelhante. Peguemos então em algumas receitas mais surpreendentes do livro de Apício. Por exemplo, o poético vinho de rosas — os vinhos condimentados são uma das influências da sofisticação helénica. Diz-nos o autor para, “depois de extrair a unha branca”, enfiarmos “pétalas de rosas num fio, de modo a formar coroas” e mergulharmos o maior número possível, para estarem em vinho durante sete dias. Na “cozinha apiciana” os vinhos são quase sempre doces e de sabor forte. O vinho puro, amargo (sempre branco e geralmente cortado com água), raramente era usado como condimento. Recorria-se sobretudo ao mosto cozido, reduzido pela fervura e aos vinhos aromatizados com mel, frutas ou rosas. Apício recomenda que se “use rosas sem humidade do orvalho”. O livro ensina-nos ainda a preparar vinho branco a partir do tinto, a usar azeite da Hispânia fazendo-o passar por azeite da Libúrnia ou a conservar a carne sempre fresca sem a salgar. Mas vejamos mais duas receitas exóticas. Para o molho de flamingo, deve-se começar assim: “Depene, lave e prepare um flamingo, ponha-o numa panela, junte água sal e aneto e um pouco de vinagre”. O prato leva ainda, entre outras coisas, mosto cozido e tamâras de Cárias. E para quem tiver curiosidade sobre uma iguaria chamada “vulvas de porcas estéreis”, aqui fica a explicação: uma das partes da porca a que os romanos davam mais valor era a vulva, também entre nós regionalmente conhecida como ‘barrigueira’. Por porca estéril entenda-se virgem, a que não está em idade de cobrição, ou então castrada. Neste caso, punha-se o animal alguns dias de jejum e suspendia-se pelas patas dianteiras para lhe cortar a matriz ou fazer incisões na vulva que, ao cicatrizar, obstruía a entrada da vagina. Por muito distante que nos pareça esta culinária é imprescindível para compreendermos o que era a cozinha medieval na Península Ibérica. E, se as receitas nos chegam sem quantidades e algumas incompletas, a verdade é que já não somos os destinatários daqueles enunciados. Assim, a esta distância, resta-nos deduzir das palavras o paladar de uma civilização.
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Mosaico romano