14/09/2018

O desenho mais antigo do mundo tem 70 mil anos

Três linhas cruzadas por seis linhas, todas vermelhas, num pequeno fragmento de rocha. O desenho mais antigo do mundo tem cerca de 73 mil anos, superando assim em 30 mil anos as descobertas anteriores.
O desenho foi encontrado na gruta de Blombons, a 300 quilómetros leste da Cidade do Cabo (África do Sul). Nesta caverna já tinham sido encontrados nas últimas décadas milhares de artefactos datados entre 70 e 100 mil anos.
Os arqueólogos defendem que o pedaço de rocha foi intencionalmente marcado com as linhas. O fragmento fazia parte de uma superfície maior que, provavelmente, continha um padrão mais complexo. Esta descoberta evidencia que o Homem já era capaz de ter pensamentos abstratos antes do que até aqui era estimado. Os arqueólogos estavam convencidos que os símbolos não ambíguos apareceram pela primeira vez quando o Homo Sapiens entrou na Europa (c. 40 mil anos).
A capacidade de desenhar símbolos é um marco na evolução o ser humano. Esta capacidade permitiu, mais tarde, o desenvolvimento da escrita.
desenho 70 mil anos
Fragmento de rocha com linhas vermelhas que podem ser datadas de 70 mil anos (gruta Blombons, África do Sul).

19/08/2018

Em julho de 1139 ocorreu a batalha de Ourique. Mas, em que local?


As hipóteses ou meras suposições persistem em manter a famosa batalha de Ourique como um dos pontos mais incertos da história de Portugal, realça Jorge Alarcão, no ensaio Ourique – O Lugar Controverso.
A história regista que o confronto militar entre os cristãos liderados por Afonso Henriques e os muçulmanos, que alguns investigadores referem terem sido comandadas por Esmar, governador de Córdova, Granada e de todo o al-Andaluz, terá ocorrido no dia 25 de julho de 1139, mas subsistem, nos dias de hoje, dúvidas sobre o sítio exato onde decorreu o combate. Poderá ter tido lugar em Castro Verde, no distrito de Beja; em Campo de Ourique, perto de Leiria; Chão de Ourique, em Penela; Vila Chã de Ourique, no Cartaxo ou, ainda, em Campo de Ourique junto a Campolide, Lisboa. O concelho de Ourique, no Baixo Alentejo, é a localização tradicionalmente aceite, mas o documento mais antigo que se reporta a esta localidade do distrito de Beja, a sua carta de foral, concedida por D. Dinis em 1290, nada refere sobre a batalha.
A maioria dos historiadores, a começar em Alexandre Herculano, sempre defendeu que a batalha teria ocorrido na povoação de Ourique, no Baixo Alentejo, mas também há os que insistem em realçar a incoerência e os factos não provados na referida localização.
José Mattoso admite que «Ourique parece ser, de facto, a primeira grande batalha de Afonso Henriques com os Almorávidas, e que o confronto terá ocorrido em julho de 1139». Relativamente ao local da batalha, José Mattoso também não avança certezas. «Podemos apenas admitir que, durante o Verão de 1139, Afonso Henriques dirigiu um fossado (incursão rápida em terras ocupadas pelo inimigo) constituído por forças bastante mais numerosas do que o habitual e que, apesar de ter sido atacado ou de atacar ele próprio um exército considerável, regressou cheio de glória ao território cristão. Ourique foi a sua primeira grande vitória contra os mouros».
Os indícios históricos e arqueológicos mais plausíveis sugerem que a batalha terá sido travada no concelho vizinho, Castro Verde, no lugar de S. Pedro das Cabeças, numa pequena elevação de terreno com 245 metros de altura. Conta uma das lendas, provavelmente inspirada na tradição oral, que o confronto militar decorreu nos dias 24 e 25 de julho, do ano de 1139, e que «a mortandade foi tanta que as águas da ribeira de Cobres se tingiram de vermelho».
No entanto, o ensaio publicado pelo professor Jorge de Alarcão pretende mostrar, contra a tendência maioritária, que talvez a batalha se não tenha travado no Baixo Alentejo, considerando «a situação político-militar de cristãos e muçulmanos em 1139», é «mais verosímil» que o cenário do confronto se deva localizar «na região de Leiria». Alarcão procura demonstrar que, tendo sido a cidade de Leiria reconquistada pelos muçulmanos em 1137, «não parece despropositado» que Afonso Henriques tenha «de imediato encarado a hipótese de vingar essa tomada» encarando a batalha (de Campo de Ourique) como «um episódio da reconquista de Leiria». E reforça esta hipótese com a referência a um achamento, no local, por volta de 1870, de numerosos esqueletos de indivíduos que teriam sido enterrados verticalmente e sem armas, as quais terão ficado na posse dos cristãos.
Deixando de lado o significado ideológico que alimenta as discussões acerca do lugar onde a batalha se realizou, sabe-se, hoje, que o evento bélico foi revestido – sobretudo a partir do século XV – de elementos simbólicos com destaque para o mito fundacional da nação portuguesa. José Mattoso faz referência à necessidade de «imaginar uma intervenção divina que demonstrasse o seu sentido transcendente e que sublimasse a função de Afonso Henriques como enviado por Deus para esmagar os inimigos da fé». O aparecimento de Cristo a Afonso Henriques na véspera da batalha revelava a propensão para mitificar o acontecimento ligando-o à fundação da nacionalidade e à aclamação de Afonso Henriques como rei, depois de ter derrotado cinco reis mouros, outra das lendas associada à batalha de Ourique. No entanto, sobre a batalha real não há qualquer alusão tanto na historiografia peninsular não-portuguesa como nas fontes árabes.
Outras versões relacionadas com lendas e narrativas são reveladoras da desproporção numérica das forças cristãs, sempre em muito menor número que o dos combatentes do Islão: 1000 cavaleiros e 10.000 peões cristãos contra 400.000 ou mesmo 900.000 muçulmanos.
Camões não esqueceu o feito heroico dos cristãos e exaltou-o no Canto III d‘Os Lusíadas: «Cinco reis mouros são os inimigos,/ dos quais o principal Ismar se chama/ todos experimentados nos perigos / da guerra, onde se alcança a ilustre fama».
A lenda sobre a fundação que subordinava Portugal à proteção divina, assim como os contornos míticos da batalha, foi posta em causa, a partir de meados do século XIX, pelo historiador Alexandre Herculano. O escrutínio sobre o acontecimento de Ourique levantou forte polémica sobre a historicidade e a validade da tradição da aparição de Cristo a Afonso Henriques nos alvores da nacionalidade, analisa a historiadora Ana Isabel Buescu. A crítica com que Herculano se envolveu no combate à «questão da tradição fundadora» veio alimentar um «violento antagonismo entre o historiador e parte do clero». Veio também demonstrar que «a tradição fundadora, longe de se apresentar meramente como pretexto de controvérsia, correspondia ainda a uma representação das origens» e surgia «fortemente ideologizada». Incisivo, Alexandre Herculano argumentava: «A grande religiosidade da Idade Média foi um dos fatores para o desenvolvimento do carácter místico atribuído à batalha de Ourique – na crença que havia na existência de milagres interventivos na vida dos povos e neste caso colocando Portugal como país amparado pela vontade de Deus».
A controvérsia sobre a famosa batalha de Ourique não terminou. Os aspetos míticos projetados por relatos maravilhosos  permanecem no imaginário dos portugueses e o seu significado simbólico mereceu, em 2016, uma menção do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, no seu discurso de tomada de posse: «Aqui se criaram e sempre viverão comigo aqueles sentimentos que não sabemos definir, mas que nos ligam a todos os portugueses. Amor à terra, saudade, doçura no falar, comunhão no vibrar, generosidade na inclusão, crença em milagres de Ourique, heroísmo nos instantes decisivos».
E a força ideológica do evento histórico estende-se a vários dos concelhos onde se encontram lugares com o nome Ourique. No concelho de Ourique ergue-se uma estátua a Afonso Henriques e um monumento evocativo da Batalha de Ourique. «A expressão maior da força dos guerreiros de uma Nação emergente ou do Milagre de Ourique» é a mensagem que o município local quer presente no imaginário dos habitantes e dos que visitam a terra. No concelho vizinho de Castro Verde, um monumento evocativo simboliza o local da batalha em S. Pedro das Cabeças e um obelisco na sede do concelho reforça a convicção que o confronto entre cristãos e muçulmanos teve ali lugar. Em 2014, a Escola de Belas-Artes do Porto e duas jovens de Castro Verde pintaram um painel com 12 metros de comprimento em S. Pedro das Cabeças que simboliza o confronto guerreiro. Para lá do Tejo, na freguesia de Vila Chã de Ourique, no concelho do Cartaxo, foi inaugurado em 1932 um monumento alusivo à Batalha de Ourique. Convicta, a comunidade afirma que, «apesar de existirem opiniões divergentes, se acredita que tenha acontecido nas terras desta freguesia, entre D. Afonso Henriques e os muçulmanos, em 1139».
Batalha de Ourique, painel de azulejos de Jorge Colaço (1868-1942) no Centro Cultural Rodrigues Faria (Esposende).
Monumento evocativo da batalha de Ourique (S. Pedro das Cabeças, Castro Verde).
Monumento evocativo da batalha de Ourique (Vila Chã de Ourique, Cartaxo, 1932).
Monumento evocativo da batalha de Ourique, (Castro Verde, c. 1989).
Monumento evocativo da batalha de Ourique, autoria de Helena Passos e Miguel Rego (Ourique, 2008).

16/08/2018

O mundo de livros científicos das instituições religiosas nos séculos XVIII e XIX


Em 1764, a biblioteca dos Oratorianos das Necessidades, em Lisboa, contava com uma coleção de 20.000 volumes que valia cerca de 100.000 cruzados. Os antigos códices manuscritos do Mosteiro de Alcobaça da Ordem de Cister eram frequentemente procurados pela sua raridade e pedidos emprestados nas bibliotecas mais célebres da Europa para serem diligentemente copiados. Os religiosos portugueses tinham celas cheias de livros, não obstante os votos de pobreza e as proibições determinadas pela Santa Obediência. Nas instituições religiosas havia lugares alternativos de conservação dos livros que formavam «constelações» de bibliotecas mais especializadas. Um exemplo é o Convento de Nossa Senhora de Jesus de Lisboa dos Franciscanos Terceiros, atualmente a Academia das Ciências, que além da sua magnífica biblioteca existia também a «Bibliotheca pequena», que reunia mais de 2000 «Livros escolhidos», essenciais para o aproveitamento das aulas e dos estudos.
Para as congregações religiosas, qualquer atividade cultural era impensável sem livros. Desenvolver um sistema de apetrechamento das bibliotecas bem articulado e orgânico tornou-se, desde muito cedo, uma das principais necessidades. As congregações religiosas destacaram-se pela grandiosidade das suas coleções, pela regularidade de compra de livros e pela internacionalidade da rede de fornecedores. Portugal contava com mais de 500 instituições religiosas nos séculos XVIII e XIX e cada uma destas instituições representava um verdadeiro mundo de livros.
Nas casas religiosas, também o livro científico encontrou um contínuo e habitual canal de circulação. A existência de livros científicos entre os regulares portugueses nunca foi deixada ao acaso. Cada livro que chegava a um convento, por as mais variadas circunstâncias (compra, herança, doação, etc.), era objeto de um processo de seleção rigoroso que avaliava a sua utilidade e pertinência. Um livro desatualizado ou considerado inútil, na maioria dos casos, era revendido para fora do convento. Em Portugal, nunca faltaram os melhores autores, as edições mais recentes e as obras de conteúdos científicos complexos. Muitos destes livros de ciência chegaram ao país nos baús dos eclesiásticos das mais diferentes ordens religiosas.
Frei João lia, na língua original, a Óptica de Newton de 1730 à luz de vela na sua cela do Mosteiro dos Jerónimos. Frei Caetano, do Mosteiro Beneditino de Paço de Sousa, desejava comprar livros de matemática para satisfazer a sua ávida sede de conhecimento. Mestre Pedro aconselhava o padre bibliotecário do Colégio de Santo Agostinho de Coimbra a comprar obras científicas sofisticadas, entre as quais várias de Arquimedes, para usá-las nas aulas.
O Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa dos Eremitas de Santo Agostinho possuía uma biblioteca de 30.000 volumes em que 9% eram livros científicos. O convento feminino de Santo Alberto das Carmelitas Descalças de Lisboa tinha interesse em possuir livros de medicina e cirurgia. Os padres do Mosteiro de São Bento da Saúde, em 1789, procuravam o Tratado Elementar de Química de Lavoisier para a biblioteca da sua botica. Existiam nas bibliotecas eclesiásticas portuguesas globos, planetários e até máquinas elétricas. As bibliotecas institucionais das congregações religiosas podiam estar abertas a leitores seculares e os próprios mercadores de livros compravam uma grande quantidade de obras aos conventos para revendê-los nas suas lojas.
Durante séculos, cristalizou-se uma imagem bem diferente aos olhos da erudita intelligentsia europeia sobre o mundo ibérico e as raízes religiosas da sua cultura: bibliotecas cheias de pó, edições desatualizadas, monges ignorantes. Quando, ao contrário, para o bibliotecário da Congregação do Oratório do Porto, assim como para muitos outros, incentivar as compras de «livros modernos, produzidos pelos progressos das Sciencias» constituía uma verdadeira missão. No silêncio dos mosteiros, as teorias novas e as ideias inovadoras chegavam sob a forma de livros, convertendo-se em hábitos científicos e criando comunidades de praticantes anónimos e pouco conhecidos.
Pormenor de desenho da Biblioteca do Mosteiro de Alcobaça do catálogo de 1701 (Biblioteca Nacional).
Planta da Biblioteca do Mosteiro de Alcobaça do catálogo de 1684 (Biblioteca Nacional).
Exemplar de De Re Aedificatoria Libri Decem (Estrasburgo 1541), de Leo Baptista Alberti, com marca de posse manuscrita e carimbo da biblioteca do Mosteiro de S. Vicente de Fora (Biblioteca Nacional).