16/07/2014

Arqueólogo de Foz Côa co-edita livro sobre arte rupestre para a conceituada Routledge

O coordenador do programa de conservação de arte rupestre no Parque Arqueológico do Vale do Côa, António Pedro Batarda Fernandes, é o co-editor de um volume sobre conservação de arte rupestre ao ar livre que a editora Routledge, líder mundial em publicações académicas de ciências sociais, acaba de publicar. O livro de 278 páginas Open-Air Rock-Art Conservation and Management: State of the Art and Future Perspectives (“Conservação e Gestão de Arte Rupestre ao Ar Livre: O Estado da Arte e Perspectivas Futuras”, numa tradução literal) reúne as contribuições de diversos investigadores internacionais especialistas em conservação de arte rupestre ao ar livre. Este campo específico, de estudos sobre arte rupestre ao ar livre, tem recebido relativamente pouca atenção, em contraste com a extensa pesquisa que tem sido desenvolvida sobre a preservação de arte rupestre em ambientes protegidos como cavernas e abrigos rochosos. António Batarda, que co-edita o volume com Timothy Darvill, arqueólogo e professor da Bournemouth University, em Inglaterra, nota ao PÚBLICO que os sítios arqueológicos de arte rupestre ao ar livre eram até há pouco tidos como “o patinho feio”. “É muito pouca a literatura que existe sobre conservação de arte rupestre ao ar livre. Quando cheguei ao Parque Arqueológico do Vale do Côa, em 2000, ela estava reduzida a newsletters e fóruns de discussão mais ou menos obscuros”, diz. O volume agora publicado corresponde a uma vontade de “trazer para o mainstream” esta área de estudos e resultou de uma proposta feita pelos dois co-editores à Routledge que teve como ponto de partida os papers apresentados numa sessão por eles organizada durante o Congresso da Associação Europeia de Arqueólogos de 2010. O livro apresenta quase duas dezenas de casos, da Austrália aos Estados Unidos. Um dos capítulos, assinado por António Batarda Fernandes, é dedicado ao Vale do Côa – um dos dois sítios arqueológicos de arte rupestre ao ar livre no mundo onde se está a estudar a relação entre as variáveis meteorológicas (radiação solar, precipitação, humidade, etc) e o grau de degradação nas rochas gravadas consoante a sua orientação cardial (painéis expostos a norte ou a sul). Os métodos e filosofias de conservação de arte rupestre ao ar livre continuam a ser matéria de amplo debate, por vezes, até entre arqueólogos que trabalham no mesmo local. O Vale do Côa é “O santuário de arte rupestre ao ar livre na Europa, com O maiúsculo”, diz António Batarda Fernandes ao PÚBLICO, pela quantidade ímpar de gravuras e rochas gravadas que sobreviveram – cerca de mil rochas gravadas, metade das quais datam do Paleolítico Superior. O arqueólogo nota que quando as gravuras de Foz Côa foram descobertas, em 1994, apenas existiam “um ou dois sítios” de arte rupestre ao ar livre desse mesmo período pré-histórico. Actualmente, existe já uma dezena.
Vale do Côa
Gravura rupestre do Vale do Côa

15/07/2014

Projecto para a construção do Museu do Megalitismo em Mora

A Câmara de Mora está a recuperar a antiga estação de caminhos-de-ferro da vila para ali instalar o futuro Museu do Megalitismo. O projecto, que representa um investimento de 2,5 milhões de euros, visa reforçar a oferta turística deste concelho alentejano.
Em comunicado, a autarquia diz que o projecto “privilegia a interactividade entre o visitante e todo o meio envolvente”, dando-lhe a conhecer a história da vila e o espólio relativo à presença humana naquele território desde a pré-história até à actualidade. Uma das principais atracções será um holograma de um homem das cavernas, adiantou Luís Simão. Está prevista também a instalação de uma biblioteca e de um espaço para acesso à Internet, com uma área para exposições temporárias.
Além das antigas instalações da estação, o museu vai ocupar um edifício que está a ser construído de raiz num espaço contíguo. Os trabalhos já arrancaram no terreno e que estão a decorrer em "bom ritmo".
Mora
Antiga estação de caminhos-de-ferro de Mora

Vitória de Samotrácia volta a estar exposta no Louvre

Depois de dez meses de um restauro, que custou quatro milhões, em parte financiado por cidadãos, a Vitória de Samotrácia, uma das jóias do Museu do Louvre, em Paris, voltou ao seu lugar de destaque ao cimo da escadaria que dá as boas-vindas aos visitantes do museu. É uma das peças-chave do Louvre, a figura em mármore da deusa grega alada Nike, descoberta em 1863 nas ruínas do Santuário dos Grandes Deuses na ilha grega de Samotrácia, há muito que tinha perdido a sua cor e a sua estrutura também estava a precisar de ser retocada. De acordo com os peritos responsáveis pelo restauro, esta escultura com 5,57 metros de altura e que pesa cerca de 30 toneladas não estava em risco mas era preciso recuperar algumas das suas características, visto que com os anos ganhou um tom acastanhado. Além de que a cor da escultura e da base é diferente mas com o passar do tempo já nem esta diferença era notória.
A intervenção avançou em Setembro com uma equipa de oito pessoas que trabalhou meticulosamente a peça grega do período helénico que representa a deusa da vitória, cuja feitura remonta a cerca de 190 anos antes de Cristo e que assenta numa base em forma de proa de navio. No que à limpeza diz respeito, o objectivo era recuperar "o contraste entre o mármore branco de Paros da estátua e o mármore cinzento da sua base em forma de barco", como tinha explicado o director do Museu do Louvre, Jean-Luc Martinez, na altura em que foi anunciada a intervenção. Antes do restauro, a obra apresentava ainda "alguns problemas de estrutura", que não tinham sido solucionados por um outro restauro, que já remonta a 1934. Segundo Jean-Luc Martinez, a base moderna em betão estava ligeiramente fissurada. Além disso, a equipa de especialistas, apoiados por peritos internacionais, corrigiram ainda umas pequenas falhas que a mármore apresentava já na asa esquerda. Segundo o Wall Street Journal, estas correcções não se conseguem perceber a olho nu mas fazem toda a diferença na estrutura da estátua.
Sendo esta uma das peças mais importantes do Museu do Louvre, visitado em Paris anualmente por cerca de dez milhões de pessoas, esta foi a primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial que a Vitória de Samotrácia foi mexida e a primeira vez que foi restaurada desde que foi instalada na escadaria principal do museu, que está também a ser alvo de um restauro, que deverá ficar concluído em 2015. Ao longo dos dez meses que durou esta operação, os arqueólogos detectaram correcções à estátua que terão sido feitas quando esta foi descoberta no século XIX e que actualmente não seriam permitidas por serem inadequadas como por exemplo um acrescento em gesso na asa direita. No entanto, a equipa optou por não lhes mexer, como um exemplo do gosto naquela época, como explicou ao Le Fígaro, Ludovic Laugier, responsável pelo departamento de antiguidades do Museu do Louvre.
A Vitória de Samotrácia está assim de volta ao seu lugar de destaque no museu mais visitado no mundo mais limpa, mais branca e mais completa.
Museu do Louvre
Vitória de Samotrácia, c. 190 a.C. (Museu do Louvre)

08/07/2014

Hannah Arendt e a atualidade do seu pensamento político

Hannah Arendt (Hanôver, 1906 – Nova Iorque, 1975) foi uma filósofa política alemã de origem judaica.
A privação de direitos e perseguição na Alemanha de pessoas de origem judaica a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, conduziram-na ao exílio. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade americana em 1951. Trabalhou como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política. Arendt defendia um conceito de "pluralismo" no âmbito político. Graças ao pluralismo, o potencial de uma liberdade e igualdade política seria gerado entre as pessoas. Importante é a perspectiva da inclusão do Outro. Como resultado dessa teoria, Arendt situava de forma crítica a democracia representativa e preferia um sistema de conselhos ou formas de democracia direta.
O seu primeiro, intitulado O conceito do amor em Santo Agostinho: Ensaio de uma interpretação filosófica (1929)articula elementos da filosofia de Martin Heidegger com os de Karl Jaspers e já enfatiza a importância do nascimento, tanto para o indivíduo como para o seu próximo. Na obra As origens do totalitarismo (1951) consolida o seu prestígio como uma das figuras maiores do pensamento político ocidental. Arendt assemelha de forma polémica o nazismo e o estalinismo, como ideologias totalitárias, isto é, com uma explicação compreensiva da sociedade mas também da vida individual, e mostra como a via totalitária depende da banalização do terror, da manipulação das massas, do acriticismo face à mensagem do poder. Hitler e Estaline seriam duas faces da mesma moeda, tendo alcançado o poder por terem explorado a solidão organizada das massas. Sete anos depois publica A condição humana (1958) obra onde adota a clássica tripartição grega e enfatiza a importância da política como ação e como processo, dirigida à conquista da liberdade: «Com a expressão 'vita activa', pretendo designar três actividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação. (...) O labor é a actividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano (...). A condição humana do labor é a própria vida. O trabalho é a actividade correspondente ao artificialismo da existência humana (...). O trabalho produz um mundo "artificial" de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. A condição humana do trabalho é a mundanidade. A acção, única actividade que se exerce directamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao facto de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente 'a' condição (...) de toda a vida política.». Publica depois Sobre a Revolução (1963), onde examina a revolução francesa e a revolução americana, mostrando o que têm de comum e de diferente, defendendo que a preservação da liberdade só é possível se as instituições pós-revolucionárias interiorizarem e mantiverem vivas as ideias revolucionárias. Lembraria os seus concidadãos americanos (entretanto adquirira a nacionalidade americana) que se se distanciassem dos ideais que tinham inspirado a revolução americana perderiam o seu sentido de pertencer e identidade. Ainda, em 1963, lançaria Eichmann em Jerusalém, que reúne os cinco artigos que escreveu sobre o julgamento de Eichmann, que cobriu para a The New Yorker. Nesse livro Eichmann não é retratado como um demónio (como o descreviam os activistas judeus) mas alguém terrível e horrivelmente normal. Um típico burocrata que se limitara a cumprir ordens, com zelo, por amor ao dever, sem considerações acerca do bem e do mal. No livro, Arendt aponta ainda a cumplicidade das lideranças judaicas com os nazis. Esta perspectiva valer-lhe-ia críticas das organizações judaicas, além da ameaça de ser excluída da universidade.
Arendt
Hannah Arendt (1906-1975)

Museu George Orwell vai nascer na Índia

Depois de classificada pelo governo local em 2012, a casa onde George Orwell (1903-1950) nasceu, em Motihari, uma cidade indiana no estado de Bihar, vai ser transformada num museu dedicado a celebrar o autor de 1984 e de O Triunfo dos Porcos. O restauro do velho bungalow de três quartos, que chegou a correr risco de demolição, foi agora iniciado, segundo noticia o jornal The Guardian. Com a pequena casa, as autoridades decidiram também restaurar o antigo armazém onde o pai de Orwell, Richard W. Blair, trabalhou como funcionário colonial e controlador da recolha de ópio, que depois era exportado para a China.
Richard Blair faz parte do comité que superentende, na University College de Londres, o arquivo que possui a maior colecção de testemunhos relativos à vida e obra de Georges Orwell, com manuscritos, cartas, livros, fotografias, gravações pessoais – e os Diários, editados em Portugal, com a chancela da Dom Quixote. E está a contar com que os outros membros do comité aceitem acordar uma parceria com o futuro museu na Índia, que poderá passar pelo empréstimo ou reprodução de peças do espólio orwelliano.
Orwell
George Orwell (1903-1950)

07/07/2014

Entre o real e a aparência. Duas antológicas de Carlos Relvas e Ernesto de Sousa. A fotografia e a interrogação do real

Um, Carlos Relvas, viveu e trabalhou no século XIX, a sua obra dando hoje a ver-se simultaneamente como apropriação do mundo e de uma nova técnica, a fotografia; o outro, Ernesto de Sousa, foi uma das personagens mais fascinantes do século XX português, multifacetado investigador, curador e, como ele próprio dizia, “operador estético” que encarou a fotografia como instrumento documental, ainda que submetido a imperativos artísticos. Cronologicamente muito distantes entre si, os dois artistas são os grandes temas das novas exposições do Centro Internacional de Artes José de Guimarães (CIAJG), Carlos Relvas / Um Homem Tem Duas Sombras: Paisagens, (Auto)Retratos, Objectos e Animais e Ernesto de Sousa e a Arte Popular: Em torno da exposição Barristas e Imaginários — ambas abertas até 6 de Julho em Guimarães.
Nuno Faria, director artístico do CIAJG, salienta os pontos de contacto entre estas duas obras e a de José de Guimarães: em todas encontramos abertura a diferentes formas artísticas. A fotografia, técnica novíssima de que Carlos Relvas é um dos pioneiros em Portugal, e a escultura popular, que nunca até meados do século XX tinha sido considerada arte e que Ernesto de Sousa inventaria exaustivamente, encontram paralelo nas múltiplas colecções que José de Guimarães tem reunido ao longo dos tempos e que encontraram lugar no CIAJG. Das máscaras africanas à arqueologia oriental, da arte contemporânea portuguesa a escolhidos artistas de épocas passadas, a criatividade e os interesses do pintor português desdobram-se em múltiplas direcções que parecem alimentar e interrogar a sua obra plástica. A montagem da colecção permanente do museu, de resto, associa objectos de artesanato à escultura de Rui Sanches ou aos trabalhos de muito jovens artistas como Francisco Queimadela e Mariana Caló. E é com este objectivo de alargar os sentidos possíveis de leitura de uma obra de arte que tanto Carlos Relvas como Ernesto de Sousa ou os escultores tradicionais do Norte têm, aqui, cabimento.
A história de Carlos Relvas tem contornos de novela camiliana. Há nela um pouco de tudo: talento, fortuna, uma filha renegada, a suspeita de um crime de honra, um filho (o republicano José Relvas) que se zanga com o pai e, dizem na Golegã, sua terra natal, uma maldição que se perpetua de geração em geração. Como sempre sucede nestes casos, não se sabe bem hoje o que releva da verdade histórica e o que não passa de ficção. Certo é que Carlos Relvas se apaixonou pela fotografia muitos poucos anos depois da sua invenção, não se poupando a esforços nem a despesas para se munir dos mais modernos aparelhos para a época. A Casa-Estúdio Carlos Relvas é ainda hoje exemplo magnífico de um estúdio fotográfico do século XIX. Aproveitando as então recentes tecnologias do ferro e do vidro, possuía as melhores condições de iluminação e espaço para a prática da fotografia. E Carlos Relvas tirou centenas e centenas de fotografias. As obras que vemos em Carlos Relvas/Um Homem Tem Duas Sombras: Paisagens, (Auto)Retratos, Objectos e Animais são, na sua maioria, impressões recentes das chapas primitivas, completadas numa segunda sala com alguns originais, através dos quais é possível ver o trabalho de enquadramento que Relvas realizava antes da tiragem definitiva. Mais interessante ainda é a selecção que os comissários, Nuno Faria e Luís Pavão, realizaram. Agrupando as imagens em quatro núcleos, transportam-nos para aquilo que a fotografia dá a ver para além do visível: a encenação, o adereço, o cenário, tudo aquilo, enfim, que pretende dar a ilusão do real. Há nesta exposição uma fotografia magnífica que nos mostra Carlos Relvas a cavalo, de perfil, montado em frente a um muro sobre o qual está representada uma paisagem exótica. A imagem destinava-se sem dúvida a um enquadramento posterior que destacasse animal e cavaleiro, e que retirasse dela tudo o que deixasse ver a encenação forçada. A fotografia faz-se aqui documento do real, é certo, mas também modo de o transformar, deixando perceber a qualidade fantasmática da sua concretização. O mesmo sucede nas dezenas de retratos em que conseguimos vislumbrar os espectros dos assistentes que seguravam a tela de fundo sobre a qual os retratados se imobilizavam, provavelmente tremendo-a para que a imagem daí resultante se aproximasse mais da abstracção do cinza puro do que da impressão de um qualquer tecido. São estes efeitos que hoje nos parecem significantes à luz da nossa condição contemporânea, e que possibilitam a aproximação ao trabalho de Ernesto de Sousa aqui recriado.
Não foi Ernesto de Sousa descobriu os barristas tradicionais portugueses. Geralmente, aponta-se o nome do pintor António Quadros, que se encantou com o trabalho de Rosa Ramalho, Mistério, Franklin Vilas Boas e Quintino Vilas Boas Neto ressalvando a sua originalidade no seio dos códigos estritos da prática artesã. A exposição do CIAJG, que revisita uma outra, de 1961 — Barristas e Imaginários, na Galeria Divulgação, em Lisboa —, actualiza não só a obra destes quatro autores como a investigação levada a cabo por Ernesto de Sousa em torno da expressão artística “ingénua”, como preferia chamar-lhe. Nesta investigação, a fotografia adquire um lugar de primazia. Tal como com Carlos Relvas, Nuno Faria preferiu reproduzir as imagens originais com a indicação dos cortes a efectuar, em vez da simples reprodução da imagem já impressa. A obra destes quatro artistas, presente na exposição graças à colaboração de diversas instituições públicas e privadas, possui com efeito características próprias que a aproximam, aos olhos do erudito, da Arte Bruta ou das expressões artísticas africanas, que, recordemos, José de Guimarães colecciona. Numa das peças de Franklin, inclusive, Ernesto de Sousa consegue realizar uma aproximação a uma escultura africana só possível através da fotografia. Noutras, esculpidas em madeira recolhida na praia, é apenas graças à fotografia que podemos distinguir o pormenor, a ausência de expressão, a semelhança com o nosso muito privado museu imaginário. Há também aqui a possibilidade de rever a originalíssima e muito copiada obra destes quatro autores. E de perceber, à distância que o tempo criou, como a sua obra se insere provocatoriamente num meio artístico ainda marginal, como o era o português de inícios da década de 60, mas já suficientemente sofisticado para procurar a autenticidade noutras paragens. Ernesto de Sousa, com o seu leque de interesses diversificado que não encontrou paralelo no país, tanto abordava o cinema como a fotografia ou a escrita: recorde-se o filme que assinaria no ano seguinte, Dom Roberto, que dava continuidade, em certa medida, ao universo das expressões artísticas populares. O filme chegou a ganhar uma menção especial do júri em Cannes, em 1963, embora o seu realizador não a tivesse podido receber pessoalmente por se encontrar preso. Para as gerações que se seguiram, Ernesto de Sousa foi sobretudo o magistral organizador da Alternativa Zero, a grande exposição de arte portuguesa contemporânea, feita em 1977, que incidiu sobre a “arte conceptual”. E a fotografia, com o texto, foi também o grande médium desta última vanguarda, ponto final no espírito moderno.
História da Fotografia
(Auto)Retrato. Carlos Relvas (1838-1894)

Ernesto de Sousa (1921-1988) e os barristas


"Páginas Escolhidas" de Samuel Johnson (1709-1784)

Devido às características da colecção em que surge e às escolhas subjacentes, estas Páginas Escolhidas não incorporam o lexicógrafo, o “inofensivo mouro de trabalho” a que Samuel Johnson (1709-1784) se referiu; o biógrafo que nunca deixava de ser crítico (uma das obras que o imortalizaram chamava-se, no seu longo título, raramente referido, Prefaces, Biographical and Critical, to the Works of the English Poets); o exegeta e editor de Shakespeare, a quem devemos mais do que geralmente se presume; o autor de um vasto conjunto de poemas, alguns dos quais terão sobrevivido ao juízo do tempo, ainda que menos do que a sua prosa, sobretudo o ensaio; ou o ficcionista de Rasselas, que antecipa Shelley, ao descrever o poeta como “o intérprete da natureza e o legislador da humanidade”. Mas a antologia traduzida por Miguel de Castro Henriques permite uma visão razoável de uma obra que é, em mais do que um sentido, desmedida. As Páginas colhem o seu material nos textos, mais ou menos breves, que Samuel Johnson escreveu em periódicos como Literary Magazine, Gentleman’s Magazine, The Rambler (este, praticamente da sua exclusiva responsabilidade), ou The Adventurer. É certo que se pode lamentar a ausência de notas que reenviem para a origem dos textos, os comentem e esclareçam, bem como de uma introdução que ajude a compreender o autor e a reler criticamente a sua época. Não obstante, e tanto mais que poderiam adaptar-se ao próprio Johnson as palavras que ele escreveu em Life of Cowley — “O moralista, o político e o crítico misturam a sua influência” —, esta recolha revela algumas das mais importantes vertentes da produção johnsoniana. Desde logo, a crítica — “Existe uma contradição manifesta e notória entre a vida de um autor e os seus escritos” (p. 81) —, mas também a política — “A disputa Americana entre nós e os Franceses é, portanto, uma querela entre dois ladrões que disputam os bens de um viajante” (p. 108). Por outro lado, a religião — “Quando não encontramos socorro em nós mesmos, o que nos resta senão recorrer a um Poder superior e maior” (p. 142) –, sem esquecer certa digressão que se dispersava com gloriosa frequência — “Os assuntos que em si mesmos têm poucas consequências frequentemente tornam-se mais importantes devido às circunstâncias que os rodeiam” (p. 21) —, por vezes de maneira genial. Entre estas, contam-se algumas das zonas de maior tensão e premência da obra e da visão do mundo de Samuel Johnson. Homem do seu tempo, confundiu bastas vezes moral com juízo crítico, simpatia e aversão com mestria artística; no entanto, a sua obra ergue-o, não à dignidade de “pai da crítica inglesa”, título que reservou para Dryden, mas à de um dos mais vigorosos e interessantes praticantes daquela actividade, em qualquer época.
Johnson (1709-1784)

Capa do livro Páginas Escolhidas, antologia de textos de Samuel Johnson,
traduzidos por  Miguel de Castro Henriques.