30/01/2015

Crânio pré-histórico encontrado na gruta de Manot (norte de Israel)

Um fragmento de crânio encontrado no Norte de Israel está a permitir perceber melhor uma fase crucial da história dos primeiros humanos na altura em que a nossa espécie saiu de África à conquista de outras partes do mundo, afirmam cientistas liderados pelo antropólogo Israel Hershkovitz, da Universidade de Telavive. Os seus resultados foram publicados na revista Nature com data de quinta-feira.
Trata-se da parte superior do crânio (ou seja, sem face nem maxilares) e foi desenterrada na gruta de Manot, na Galileia Ocidental. As técnicas de datação permitiram determinar que o crânio tem cerca de 55.000 anos de idade, ou seja que data de um período em que se pensa que elementos da nossa espécie estavam a emigrar de África.
Ainda segundo estes cientistas, as características do crânio sugerem que terá pertencido a um parente próximo dos primeiros Homo sapiens (que, mais tarde, colonizariam a Europa). Por isso, a equipa considera que o crânio representa a primeira prova concreta de que o Homo sapiens viveu naquela região ao mesmo tempo que os neandertais.
Para Hershkovitz, o crânio é “uma peça importante no puzzle da grande história da evolução humana”. Terá pertencido a uma mulher, embora não seja possível dizer ao certo.
Com base na genética, já se pensava que a nossa espécie e os neandertais terão procriado aproximadamente durante o período representado pelo crânio. É por isso que todas as populações de origem euroasiática ainda são portadoras, no seu genoma, de ADN de neandertal.
“Temos aqui a primeira prova fóssil directa de que os humanos modernos e os neandertais viveram na mesma área ao mesmo tempo”, diz o co-autor e paleontólogo Bruce Latimer, da Universidade Case Western Reserve (EUA). “A coexistência destas duas populações numa região geográfica confinada, aliada ao facto que os modelos genéticos indicarem que houve cruzamento entre as duas espécies, abona em favor da ideia de que esse cruzamento ocorreu no Levante”, diz Hershkovitz.
Os neandertais, robustos e de sobrolho maciço, prosperaram na Europa e na Ásia há uns 350.000 a 40.000 anos, tendo-se extinguido pouco depois da chegada dos Homo sapiens. Quanto à nossa espécie, os especialistas pensam que terá surgido há uns 200.000 anos em África, tendo mais tarde migrado para outros locais.
A gruta de Manot situa-se à beira da única rota terrestre que os antigos humanos poderiam ter percorrido para viajar de África até ao Médio Oriente, Europa e Ásia. Permaneceu vedada durante 300.000 anos e foi descoberta em 2008 durante a construção de canalizações de esgoto. Armas de caça, conchas perfuradas, talvez usadas como ornamentos, e ossos de animais já foram desenterrados na gruta juntamente com outras ossadas humanas.
Crânio pré-histórico de Manot
O crânio encontrado na gruta de Manot.

29/01/2015

Identidade histórica em mudança (I)

MIGUEL REAL, Público, 29/01/2015
Sociologicamente, a modernização europeia de Portugal entre 1980 e 2000 provocou uma profundíssima alteração nas suas instituições fundamentais:
1. – operou-se uma profundíssima alteração nos sectores produtivos da economia, com a terciarização desta a suplantar os sectores primário e secundário. A imagem representativa de Portugal abandonou a sua faceta rural e bucólica, carregada de pobreza, para se evidenciar como a de um país moderno, informatizado, europeu, turístico, de economia totalmente aberta ao exterior, acolhedora de imigrantes;
2. – operou-se uma profundíssima alteração na estrutura política do Estado com a passagem de um sistema hierárquico vertical e corporativista para um sistema de representação parlamentar democrática ao modo da Europa Ocidental;
3. – operou-se uma profundíssima alteração do lugar geográfico e estratégico internacional de Portugal, deslocando-se o ângulo de actuação e reacção do Atlântico (o Império) para a Europa; resta, dos tempos passados, ligando o passado ao presente e a história à identidade nacional, os vagos traços de uma incerta Lusofonia;
4. – operou-se uma profundíssima alteração dos vínculos sociais institucionais tradicionais da cultura e dos hábitos dos portugueses (como a antiga ligação umbilical à Igreja e o predomínio de uma família clássica), propiciada pela aceleradíssima laicização e até profanização dos costumes obviada pela avalanche de novos padrões comportamentais individualistas, relativistas e niilistas advindos da Europa e dos Estados Unidos da América;
5. – operou-se uma profundíssima alteração ética na hierarquia social com desvalimento das antigas profissões nobres, como a do professor, do político, do militar, do sacerdote e do intelectual, substituídas pelo técnico especialista em economia e em gestão, pelo técnico em aplicações de ciência experimental e pelo comentador televisivo, ora considerados de superior valia e utilidade.
De certo modo, estas cinco alterações profundas no tecido social e na mentalidade nacional constituíram-se como realizações factuais da modernização europeia de Portugal e, com elas, o país actualizou-se historicamente e europeizou-se socialmente.
Assim, na segunda década do século XXI, o retrato histórico de Portugal figura já o resultado do violentíssimo choque social e cultural entre duas forças motrizes de natureza social, bem como o efeito deste choque na consciência do cidadão português:
1. – Tempo longo – A primeira força social imparável que tem regido a sociedade portuguesa como um todo consiste na esforçada modernização europeia de Portugal desde 1980 (assinatura do tratado de pré-adesão de Portugal à Comunidade Europeia) até ao final do século, princípio do XXI, ambição colectiva desenhada desde o consulado do Marquês de Pombal e só realizada plenamente na actualidade. Esta primeira força, mais do que um movimento social, constituiu, verdadeiramente, uma autêntica vaga histórica que atravessou o Constitucionalismo Liberal, a Regeneração e a I República, foi bloqueada ao longo do Estado Novo por uma visão política rural, imperial e católica da sociedade, e apenas integralmente executada e efectivada de um modo global após 1980.
O movimento social de modernização europeia de Portugal, como cumprimento histórico, correspondeu à inspiração dos três “Dês” postulados pelo Movimento das Forças Armadas, “Descolonizar, Democratizar e Desenvolver”, assumindo um tempo social novo, destituído de Império, sem prevalência da religião sobre os comportamentos individuais e sociais, sem regime de condicionamento industrial, desenvolvendo uma intensa terciarização dos sectores produtivos e uma esperançosa legislação igualitarista, fundada na justiça social, e permitiu, por um lado, a criação e a consolidação de uma fortíssima classe média e, por outro, um tempo de inovação cultural e científico, ambos sem paralelo no Portugal do século XX. Constituiu o tempo de ouro ou o tempo luminoso (cerca de um quarto de século) de justiça social, de coesão e igualdade sociais, de fortíssima mobilidade social (filhos de operários e pequenos agricultores tornam-se professores, médicos, advogados, economistas), do impetuoso arranque de uma nova visão cultural e estética de Portugal, de uma intensíssima actualização de todos os sectores sociais, económicos, académicos, culturais, científicos, desportivos e religiosos. Desde a Regeneração de Fontes Pereira de Melo que não se viveu tão bem nem tão “modernamente” ou “europeiamente” em Portugal como no período entre 1980 e o final do século. De certo modo, em quase todos os indicadores de qualidade de vida, atingiram-se desempenhos que nos colocavam, no princípio do século XXI, numa posição mediana nas estatísticas europeias, tendo Portugal partido em 1974, para a quase totalidade delas, de um lugar altamente subalterno, mesmo terceiro-mundista.
2. – Tempo conjuntural – A segunda força social opõe-se à primeira e deriva directamente, não da sociedade civil e das aspirações culturais e históricas de tempo longo, mas da recente administração do Estado, evidenciando uma regulação social que tem apenas em conta – e apenas – a saúde orçamental das finanças públicas e as aspirações tecnocráticas por que a elite político-administrativa, quebrando a mobilidade social e restaurando o tradicional estado de coisas hierárquico em Portugal, fortemente dividido entre “senhores” e subordinados, intenta reduzir a maioria da população à luz de uma visão burocrata, monetarista e tecnocrata da Europa. Este segundo movimento social inicia-se com o discurso da “tanga” de Durão Barroso (2002), opõe-se frontalmente às dinâmicas históricas criadas pelo primeiro movimento e prolonga-se até aos dias de hoje, deixando, porém e de novo, o país de “tanga”, agora não o Estado, mas a quase totalidade da população e das empresas de pequena dimensão (a maioria). O segundo movimento social, ao contrário do primeiro, que perfazia parte integrante do processo histórico europeu, há muito realizado na maior parte dos países seus constituintes e de certo modo constitutivo de um “desígnio” nacional (apenas o Partido Comunista votou contra a adesão de Portugal à Comunidade Europeia), é artificial, criado por problemas financeiros do Estado (crise da dívida soberana) e foi enfrentado, em Portugal, por uma fanática política de austeridade (dizemos “fanática” porque ultrapassou as metas de austeridade impostas pelo memorando de entendimento, subordinando todas as actividades e sectores do Estado e da sociedade a uma obstinação encarniçada de poupança orçamental e de brutal aumento do impostos) que empobreceu a maioria da população, privilegiou o sector financeiro e, paradoxo dos paradoxos, não concedeu um excedente de saúde contabilística ao Estado.
De um modo muito claro, tão explícito como nunca houvera em Portugal, propõe-se a adesão a um neoliberalismo global que deposita o país nas mãos de um mercado financeiro (quase) totalmente desregulado e de uma economia concorrencial de cunho selvagem (a tal que mata, segundo o Papa Francisco).
Identidade histórica de portugal contemporâneo
Miguel Real.

27/01/2015

Auschwitz: Da libertação à construção do Holocausto

CLARA BARATA, Público, 27/01/2015
O Exército Vermelho não estava preparado para libertar Auschwitz. Nos seus mapas, de antes da guerra, nem sequer constava este extenso campo de morte e de trabalhos forçados do regime nazi. “Demos por acaso com o campo de extermínio”, recordou o tenente Vasili Gromadski, da 100.ª Divisão de Atiradores, que participava na ofensiva do Vístula-Oder, que havia de chegar a Berlim no fim de Abril de 1945.
Quando entraram em Auschwitz, a 27 de Janeiro de 1945, encontraram um local onde foram mortas 1,5 milhões de pessoas e que se tornou num testemunho da crueldade nazi, mas que só ao longo dos anos se transformou num símbolo do Holocausto dos judeus.
“Vi muitas coisas horríveis e de pesadelo nesta guerra, mas o que testemunhei em Auschwitz ultrapassa a imaginação”, escreveu o militar soviético Georgi Elisavestski numa carta à mulher, quando já era comandante do campo, depois do Exército Vermelho ter assumido o controlo. “Imagina um complexo prisional, rodeado por campos mais pequenos, com capacidade para 60 mil a 80 mil pessoas, vindas de toda a parte do mundo. Ver o estado das pessoas que aqui ficaram – e compreender o que se passou aqui – é suficiente para perder o juízo”, confessava Elisavestski, citado no livro Total War – From Stalingrad to Berlin, de Michael Jones (John Murray, 2011). “Encontrámos as ruínas de quatro fornos crematórios, com capacidade para queimar milhares de pessoas diariamente”, relatava o oficial. “Traziam os prisioneiros para o que chamavam ‘descontaminação.’ Forçavam-nos a despir-se e a ir para uma sala na cave, onde havia chuveiros. Quando estava cheia, fechavam as portas e lançavam gás. Após 10-15 minutos, traziam os cadáveres para os crematórios."
O que o Exército Vermelho encontrou ao entrar em Auschwitz, após enfrentar feroz resistência nazi – o campo era secreto, e era segredo de Estado o que o regime estava a fazer aos judeus –, chocou soldados que pensavam já não poder ser surpreendidos. Além de pessoas que eram apenas esqueletos, crianças usadas para experiências científicas, descobriram toneladas de cabelo humano – para usar na indústria têxtil – e de roupa, sapatos e objectos pessoais em ouro, que incluíam dentes, que seriam enviados para a Alemanha. Eram coisas que punham os soldados a chorar. “Tinha visto pessoas enforcadas, pessoas queimadas. Mesmo assim não estava preparado para Auschwitz…”, recordou Anatoli Shapiro, comandante do 1085.º Regimento do Exército Vermelho, o primeiro a entrar no campo. “Vimos logo as fileiras de casernas. Abri a porta de uma. O fedor era insuportável. Era uma caserna feminina, e havia poças de sangue congeladas no chão, e cadáveres no chão. E lá pelo meio havia ainda pessoas vivas, seminuas, vestidas só com roupa interior fina – em Janeiro! Os meus soldados recuaram, horrorizados. Um deles disse: ‘Não consigo suportar isto. Vamos sair daqui. Isto é inacreditável!’”. Mas os soldados insistiram, continuaram a abrir as casernas e a descobrir “pessoas emaciadas, brutalmente torturadas”, na descrição do tenente Ivan Martinushkin. “Já não pareciam pessoas”, disse o sargento Genri Koptev. “Tinham uma pele tão fina que se podia ver as veias e os olhos estavam salientes, porque os tecidos à volta tinham desaparecido. Quando esticavam as mãos, podia-se ver cada osso, cada tendão e articulação. Sentimo-nos tomados pelo terror. Ninguém nos tinha preparado para isto.”
Na verdade, ninguém estava preparado para Auschwitz. Estaline, o líder soviético, teria informação sobre o que ali se passava desde o ano anterior, quando o Exército Vermelho tomou o campo de extermínio de Madjanek, um dos locais onde começou a ser posta em prática, em 1942, a “solução final” para a “questão judaica. Este eufemismo designa o extermínio, puro e simples, de todos os judeus. Mas o líder comunista não disse nada sobre Auschwitz ao marechal Ivan Konev, que liderava a I Frente Ucraniana, o exército que tomou o campo. A narrativa oficial da história soviética da II Guerra impunha o dogma de que a nação russa fora a mais sacrificada, a maior vítima e a maior vencedora, no seio da URSS, afirma o historiador norte-americano Timothy Snyder no livro Terra Sangrenta – A Europa entre Hitler e Estaline (Bertrand, 2011).
O resto dos Aliados e os líderes mundiais olhavam a guerra como um todo. As informações sobre os campos de concentração eram escassas e classificadas ao nível de boatos. As chancelarias e a imprensa estavam de pé atrás por causa dos abusos da propaganda na I Guerra Mundial. A imprensa também não destacava o massacre dos judeus. Laurel Leff, investigadora da Northeastern University (Boston), analisou a cobertura do New York Times sobre o Holocausto no livro Burried by the Times e, em tom acusatório, concluiu que o jornal arrumou as notícias nas últimas páginas, com pouco destaque e pouca análise. Só seis vezes em quase seis anos é que uma notícia sobre este assunto teve chamada de primeira página e apenas uma vez foi tema de editorial. O resultado foi a falta de consciência nos países aliados da gravidade dos massacres de que eram alvo os judeus.
Mas o anti-semitismo não era exclusivo dos nazis. “Muita gente, e não apenas na Alemanha, via os judeus como uma influência maligna e queria destruir o seu poder, ou pensava que formavam grupos poderosos que geriam os grandes negócios”, explicou o historiador britânico e biógrafo de Hitler Ian Kershaw, numa entrevista disponível no site http://ww2history.com/, criado por Laurence Rees, autor de documentários sobre a II Guerra para a BBC.
Em meados de 1942, chegou aos Aliados o relatório, então anónimo, de um empresário alemão, Gerhard Riegner, que falava de uma campanha de assassínio em massa nos territórios conquistados no Leste da Europa. Mas com avisos quanto à sua veracidade: dizia também que os judeus estavam a ser transformados em sabão.
O relatório Riegner alertava na verdade para a operação Reinhardt, lançada quando Hitler deu luz verde à “solução final”, face à entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial. “Os judeus arcavam agora com a culpa pelo desastre indizível que se aproximava”, escreve Timothy Snyder em Terra Sangrenta. O objectivo era acabar de vez com os judeus que viviam nos territórios ocupados pelos nazis, em especial na Polónia, onde vivia a maior comunidade. “Todos acreditavam, caso aceitassem o ponto de vista de Hitler, que na última guerra mundial a Alemanha não tinha sido derrotada no campo de batalha mas, em vez disso, derrubada por ‘uma ‘facada nas costas’, uma conspiração de judeus e outros inimigos internos. Agora os judeus também arcavam com as culpas pela aliança americano-britânico-soviética. Uma tal ‘frente comum’ de capitalistas e comunistas, prosseguia o raciocínio de Hitler, só podia ter sido realizada graças às cabalas judaicas”, descreve o historiador.
A ordem era para que tudo se passasse no maior segredo. Em vários campos de extermínio – Treblinka, Sobibor, Madjanek, Chelmo, Belzec – foram mortos a partir de meados de 1942 cerca de 1,5 milhões de judeus. Eram verdadeiras fábricas de morte, onde em apenas duas horas as pessoas podiam ser liquidadas, utilizando monóxido de carbono. Só em Treblinka terão morrido 780.863 pessoas. Mas deixaram de funcionar antes de Auschwitz se transformar em local de extermínio, onde se usava um gás à base de cianeto, desenvolvido pela empresa IG Farben, que tinha fábricas junto ao campo, onde beneficiava do trabalho escravo.
No entanto, quando se iniciou a operação Reinhardt, já mais de 1,5 milhões de judeus tinham sido mortos por balas na Polónia e em territórios da União Soviética, como a Bielorrússia e os países bálticos, sublinha Timothy Snyder. O mais conhecido é o da ravina de Babi Yar, nos arredores de Kiev, na Ucrânia: em 29 e 30 de Setembro de 1941, mais de 33 mil judeus ucranianos foram ali fuzilados.
“Tendo entregado os seus valores e documentos, as pessoas foram obrigadas a despir-se, e depois empurradas, sob ameaças e tiros para o ar, em grupos de cerca de dez, para a beira da ravina”, recorda uma sobrevivente, Dina Pronicheva, citada por Snyder. “Eram obrigadas a deitar-se, de barriga para baixo, sobre os cadáveres que já jaziam sob elas, esperando pelos tiros que viria de cima. Depois vinha o grupo seguinte.”
Cerca de 5,5 milhões de judeus morreram durante a Segunda Guerra. Mas Auschwitz não viria em primeiro lugar, argumenta Snyder. “Uma visão correcta do Holocausto colocaria no centro da história a operação Reinhardt, o assassínio dos judeus polacos em 1942”, afirma. “A segunda parte mais importante do Holocausto é o assassínio em massa por balas na Polónia Oriental e na União Soviética. No final de 1941, os alemães tinham morto assim um milhão de judeus. Isso é o equivalente ao número total de judeus mortos em Auschwitz durante toda a guerra”, escreveu.
Auschwitz tornou-se um campo de extermínio nos últimos anos da guerra, para acabar sobretudo com os judeus da Europa Ocidental. Para ali foram enviados os 438 mil judeus húngaros deportados em massa em 1944, 70 mil franceses, 60 mil holandeses, 46 mil checos e da Morávia, 27 mil eslovacos, 25 mil belgas, 23 mil alemães e austríacos, 10 mil jugoslavos, 7500 italianos, e ainda mais 300 mil polacos, além de outras nacionalidades em menor número, entre as quais portugueses. Não judeus também foram enviados para Auschwitz, como os ciganos. E Auschwitz era também um campo de trabalhos forçados, por isso houve sobreviventes para contar o que lá passaram. Muitos eram da Europa Ocidental, e influenciaram o desenrolar da visão histórica do que hoje chamamos Holocausto.
Na Rússia, já não foi assim. “A propaganda soviética designava os mortos de Auschwitz colectivamente como ‘vítimas do fascismo”, e apresentava os campos de extermínio como o exemplo extremo de fábricas capitalistas, onde os trabalhadores eram mortos quando deixavam de ser úteis”, escreveu no jornal The Guardian o historiador britânico Anthony Beevor, para defender que o Presidente russo, Vladimir Putin, deveria estar presente em Auschwitz na comemoração dos 70 anos de libertação do campo (não estará, porque não foi convidado pela Polónia).
Mas os Aliados também levaram algum tempo a ultrapassar a atitude de não diferenciação dos judeus como vítimas primordiais dos nazis. “Houve um período em que os exércitos aliados não estavam preparados para lidar com os sobreviventes judeus do Holocausto. Nem sequer era claro para eles que os sobreviventes eram sobretudo judeus”, afirmou William Hitchcock, da Universidade da Virgínia, autor do livro The Bitter Road to Freedom: A New History of the Liberation of Europe (Simon and Shuster, 2008), numa entrevista disponível no site http://ww2history.com/.
Não eram vistos como vítimas de genocídio. “O facto de terem uma identidade judaica não era um princípio organizador: eram encarados como prisioneiros políticos, polacos, gregos, franceses ou jugoslavos, mas não como sobreviventes judeus do Holocausto, nem esse termo era usado da forma que o usamos hoje.”
Apesar de muito se ter passado até então, só em 1961, quando o julgamento em Israel de Adolf Eichman, o especialista em judeus do regime nazi capturado pela Mossad na Argentina, foi transmitido pela televisão para todo o mundo, é que o Holocausto ganhou as dimensões modernas. Os julgamentos militares de Nuremberga, logo a seguir à guerra, não tiveram esse efeito. O desfile de uma centena de testemunhas de acusação contra um só homem, Eichman, pelo papel que desempenhou na organização da “solução final”, teve um enorme impacto na consciência pública. “Homens e mulheres foram testemunhar honradamente. Não eram ‘judeus do gueto’, não eram gente fracassada; eram pessoas que tinham estado no sítio errado na hora errada”, afirmou numa entrevista ao jornal israelita Ha’aretz em 2011 a historiadora Deborah Lipstadt, da Universidade de Emory (EUA). “O julgamento de Eichman personalizou o Holocausto”, sublinhou Lipstadt. “Ouviram-se histórias pessoais. Isso mudou tudo.”
Holocausto
À chegada ao campo de Auschwitz, em comboios, os nazis seleccionavam
quem iria morrer logo e quem ia para os trabalhos forçados.

Holocausto
O Exército Vermelho fotografou e filmou as condições dos prisioneiros nos primeiros dias após a libertação do campo.

Holocausto
Foram descobertas toneladas de cabelo, que era cortado às mulheres para ser usado na indústria têxtil alemã.

Holocausto
Os prisioneiros eram obrigados a despir-se: os seus objectos pessoais, como sapatos,
eram depois enviados para a Alemanha.

Holocausto
Cada prisioneiro era fotografado e numerado.

Holocausto
Fornos crematórios.

Holocausto
Sobreviventes na comemoração do 70º aniversário da libertação de Auschwitz pelo Exército Vermelho.

23/01/2015

Barba de Tutankhamon partida e colada à pressa

A barbicha da famosa máscara mortuária do faraó Tutankhamon, possivelmente o mais icónico dos tesouros conservados no Museu Egípcio do Cairo, terá sido partida por descuido durante uma rotineira operação de manutenção e posteriormente colada à pressa com uma dessas substâncias que as drogarias comercializam com a designação de “supercola”.
É verdade que a dita barbicha – a barba postiça era um ornamento tradicional da realeza faraónica – ainda não voltou a cair, mas o problema é que o remendo é demasiado visível. Entre o queixo do faraó e a barba nota-se agora uma substância amarelada e translúcida, e a máscara apresenta ainda algumas arranhadelas, alegadamente resultantes da tentativa de limpar o excesso de cola com uma espátula. Um conservador do museu que não quis identificar-se, alegando que receava ser despedido, contou à imprensa a sua versão dos acontecimentos, que não coincide com a que o actual director do Museu do Cairo, Mahmoud el-Halwagy, e o chefe do departamento de conservação, Elham Abdelrahman, assumiriam após o escândalo ter rebentado. O que aconteceu foi que uma noite, quando tentavam arranjar a luz da vitrina, pegaram mal na máscara e a barba quebrou-se”, garante o funcionário anónimo. Ainda de acordo com o seu testemunho, “tentaram arranjar a máscara durante a noite com o material errado, mas não ficou bem colada e voltaram a colá-la na manhã seguinte, muito cedo”. O desastre terá ocorrido no final do ano passado e, segundo este conservador, que não precisa a data nem nomeia os responsáveis, “o problema foi terem querido restaurar máscara “em meia hora, quando precisavam de dias”. Não menos problemático foi ter-se usado uma resina chamada epóxi, uma supercola usada para fixar irreversivelmente pedra e metal, e que, uma vez seca, não se deixa retirar nada facilmente dos materiais em que é aplicada. Nada apropriada, portanto, para uma delicada operação de restauro de um tesouro arqueológico de valor incalculável. As ordens para esta colagem expedita terão “vindo de cima”, a acreditar nesta versão, que o director do museu desmente. Mahmoud el-Halwagy garante que a barba nunca se quebrou e que nada aconteceu à máscara de Tutankhamon desde que ele próprio iniciou o seu mandato em Outubro passado. Não nega que o objecto tenha sofrido uma intervenção e reconhece que já tinha reparado nas marcas que esta deixara, mas diz que não se tratou de um arranjo, mas antes de uma espécie de medida preventiva. Num momento que não especificou, salvo para assegurar que foi “muito antes” de ter assumido funções como director, os conservadores do Museu do Cairo terão receado que a barba pudesse vir a soltar-se no futuro, e decidiram reforçá-la com um adesivo, devidamente autorizado pelo ministério egípcio das Antiguidades. “O problema é que é muito visível”, reconhece Mahmoud el-Halwagy.
O túmulo de Tutankhamon foi descoberto em 1922, no Vale dos Reis, pelo arqueólogo britânico Howard Carter. A câmara funerária, que só foi aberta em Fevereiro de 1923, revelou um sarcófago, no interior do qual Carter descobriu três caixões. Num deles, de ouro, estava a múmia de Tutankhamon, com a máscara mortuária sobre o rosto. A máscara, que mede 54 cm de altura e pesa mais de 10 quilos, figura Tutankhamon, que terá vivido entre 1341 e 1323 a. C. (pensa-se que subiu ao trono com nove anos e morreu precocemente aos 18), na sua dimensão divina de Osíris. É feita de folha de ouro e decorada com incrustações de vidro colorido, sendo os olhos formados por quartzos e obsidianas, com o rebordo traçado em lápis-lazúli. É a grande estrela do Museu Egípcio do Cairo, de modo que este escândalo, aparentemente revelado a partir da própria instituição, está a criar grande polémica, tanto mais que vem na sequência de outros alegados episódios de negligência na conservação do riquíssimo espólio do museu. A imprensa europeia não tem resistido a recordar, a propósito desta controvérsia, a famosa maldição de Tutankhamon, uma superstição criada após Lord Carnarvon, mecenas da expedição de Carter, ter morrido nas escavações, ao que parece de uma ferida infectada. “Será que a maldição real vai ser a supercola?”, ironiza, por exemplo, o diário espanhol El País. Fora de brincadeiras, o que é certo é que, a confirmar-se a versão de que a barba foi mesmo partida e colada às três pancadas, quer a gravidade do descuido, quer a atabalhoada tentativa de ocultar o acidente, só terão paralelo no tempo de Cleópatra, quando, como sabem todos os leitores de Goscinny e Uderzo, o visitante gaulês Obélix partiu sem querer o nariz da Esfinge e o enterrou na areia a ver se ninguém dava por ela.
A máscara de Tutankhamon.

22/01/2015

Documentos carbonizados há quase 2000 anos na cidade romana de Herculano foram “lidos” pela primeira vez

Uma equipa internacional de cientistas acaba de realizar uma autêntica façanha, decifrando, pela primeira vez, algumas sequências de letras e fragmentos de palavras contidas em rolos de papiro calcinado – algo até aqui considerado tecnicamente impossível. Os resultados abrem o caminho à leitura de textos antigos dos quais não existem cópias, com o potencial de “melhorar o nosso conhecimento da literatura e da filosofia da Grécia antiga”, escrevem os autores num artigo publicado na revista Nature Communications.
Os papiros que serviram para realizar esta inédita experiência provêm da única biblioteca da antiguidade clássica que chegou até nós com o seu recheio de centenas de rolos cuidadosamente distribuídos pelas suas prateleiras. Foram descobertos em 1754 na chamada Vila dos Papiros, uma casa senhorial em Herculano – uma das várias cidades destruídas em 79 d.C., juntamente com Pompeia, pela explosão do Monte Vesúvio. E alguns deles, que foi possível desenrolar parcialmente, são hoje atribuídos ao filósofo epicuriano e poeta Filodemo, que viveu no primeiro século antes da nossa era.
Os papiros estão em muito mau estado – como é fácil imaginar, considerando que foram soterrados por toneladas de cinzas vulcânicas ardentes. Vistos de fora, parecem bocados de carvão. E são também extremamente frágeis: não admira portanto que as tentativas que têm sido feitas ao longo de quase três séculos para os desenrolar se tenham saldado, essencialmente, pela sua destruição pura e simples, levando os especialistas a desistir dessa via. O que Daniel Delattre, do Instituto de Investigação e de História dos Textos, em Paris, e colegas em França e Itália conseguiram agora fazer foi justamente mostrar que é possível ler estes manuscritos sem quase lhes mexer. A própria natureza do material dos papiros e da tinta utilizada conspiram para aumentar a dificuldade da leitura dos papiros pelas mais avançadas técnicas não invasivas de obtenção de imagens, nomeadamente utilizando raios X. Os raios X são mais ou menos absorvidos pelos materiais que atravessam – e é esse contraste que é explorado para visualizar o interior do corpo humano através da tomografia computadorizada de raios X. E nos últimos anos, tem surgido uma variante dessa técnica – dita de tomografia de raios X por contraste de fase – que é muito mais eficaz do que a primeira na visualização em pormenor das estruturas dos tecidos moles do organismo, que absorvem menos radiação. Os autores do estudo pensaram que esta técnica poderia aplicar-se aos papiros de Herculano porque a fibra vegetal carbonizada dos papiros e a tinta de carvão utilizada na antiguidade são materiais demasiado semelhantes – e o contraste gerado pela absorção dos raios X é insuficiente para os distinguir. A técnica por eles utilizada aproveita de facto um outro tipo de diferença que pode ser detectada iluminando uma amostra com raios X: o facto de estes raios serem desviados de maneira diferente quando atravessam os diversos componentes do material em causa, independentemente da sua composição química. Todavia, essa técnica não poderia funcionar se os diversos componentes estivessem misturados – ou seja, se a tinta tivesse sido absorvida pelas fibras do papiro. Mas neste aspecto, os cientistas foram “ajudados” pelas características dos documentos em causa: a tinta de carvão não penetrava nas fibras de papiro, explicam os autores, o que fazia com que as letras ficassem como que pousadas no suporte vegetal. E foi precisamente esse ligeiríssimo relevo (da ordem dos 100 milésimos de milímetro!) que permitiu detectar as diferenças de fase dos raios X com o poderoso feixe gerado pelo ERSF – Sincrotrão Europeu, em Grenoble (que permite uma resolução precisamente dessa ordem). “As letras observadas no papiro, que têm dois a três milímetros, são completamente reveladas pelo processo de visualização”, escreve a equipa no seu artigo. Mesmo assim, dado o comprimento da folha de papiro (até 15 metros), a espessura ínfima de cada camada enrolada e o tamanho das letras – mais o facto de o esmagamento dos papiros ter sem dúvida distorcido a escrita –, nada garantia o resultado.
Mas a experiência foi um sucesso: numa amostra de um papiro de Herculano enrolado, os cientistas conseguiram detectar todas as letras (menos duas) do alfabeto grego. E até sequências de letras que poderão ser palavras que significam “cairia” ou “diria”. A precisão do resultado é tal que, devido a certas particularidades caligráficas, os cientistas pensam que o texto do papiro “revelado” terá sido escrito pelo próprio Filodemo. Chegaram a essa conclusão comparando essas letras com as de um outro papiro da mesma biblioteca (esse sim, desenrolado), intitulado Da crítica franca, estudado com outras técnicas e que se sabe ser daquele filósofo. “Algumas letras da [nossa amostra] apresentam, na parte esquerda da sua base, uma pequena ‘cauda’ decorativa, que está sempre presente [no papiro de Filodemo], mas não é frequente na caligrafia de outros papiros da colecção”, fazem notar nos autores.
Será possível um dia desemaranhar todas as letras escritas nas inúmeras camadas destes rolos, reconstituindo na íntegra o texto que escondem? “Sim, com tempo e com os recursos suficientes”, respondeu Vito Mocella, do Instituto de Microelectrónica e de Microssistemas de Nápoles. E não só será possível ler estes rolos, concluem os cientistas, mas também outros que ainda não foram descobertos – “incluindo, talvez, uma segunda biblioteca de papiros latinos, situada num nível inferior, ainda não escavado, da Vila [dos Papiros]".
Papiro carbonizado de Herculano
Todas as letras do alfabeto grego menos duas foram identificadas na experiência
(linha de cima de cada bloco de imagens).
Papiros carbonizados de Herculano
O papiro analisado tem 16 centímetros de comprimento.


18/01/2015

Convento de Santa Cruz do Buçaco

O Convento de Santa Cruz do Buçaco, ligado à prática eremítica dos Carmelitas Descalços e à ação reformadora (1562) de Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz, estimulou a criação de um dos mais originais Desertos da Ordem. A sua história inicia-se em 1628, quando o bispo de Coimbra D. João Manuel doa aos carmelitas da província portuguesa a mata do Buçaco para a construção do convento e retiro dos religiosos da Ordem. No apelo constante à solidão e ao afastamento do mundo, o Convento seria então o palco de uma experiência profunda de contemplação, oração e penitência. A partir da ação de frei Tomás de S. Cirilo, frei João Baptista e Alberto da Virgem, o essencial da construção da complexa estrutura conventual decorreu até 1639, altura em que foi sagrada a igreja dedicada a Santa Cruz. Aqui, aliou-se o sentido simbólico da planta centralizada à prática pouco comum da colocação do templo no meio dos espaços de circulação associados às estruturas claustrais, estabelecendo-se assim a aproximação ao arquétipo do Templo de Salomão, primeiro espaço verdadeiramente sagrado da Cidade Santa. No Convento do Buçaco, o discurso iconográfico do espaço, das formas, dos materiais e das técnicas vai ao encontro de uma espiritualidade que se constrói pela fé e pobreza. O emprego das cortiças e da técnica dos embrechados, os conteúdos da azulejaria ou a força da imaginária religiosa reforçam esse sentido de uma exemplaridade cristã vivida no isolamento. O Convento de Santa Cruz do Buçaco tinha outra dimensão que respondia às necessidades da vida conventual mas, apesar dos rigores de um quotidiano de silêncio e penitência, não deixou de ter um papel fundamental no acolhimento ao cenário de guerra da Batalha do Buçaco (1810) ou atrair um constante fluxo de religiosos que, em regime temporário ou perpétuo, escolhiam o Buçaco. Procurado e beneficiado por algumas das mais prestigiadas entidades eclesiásticas dos séculos XVII e XVIII, como D. Manuel de Saldanha, Reitor da Universidade, ou D. João de Melo, bispo de Coimbra, o Convento de Santa Cruz prosperou até 1834, data em que a extinção das Ordens Religiosas ditou o seu abandono. A partir de 1888, contudo, um novo impulso construtivo traria ao Buçaco o Palace-Hotel que, se implicou a destruição das estruturas conventuais anexas à igreja, ao corredor e pátios que hoje testemunham a existência do Convento, permitiu a sua inclusão num Buçaco romântico que permanece como um dos locais patrimonialmente mais ricos na sua diversidade compositiva.
António Ribeiro
António Ribeiro na Mata Nacional do Buçaco (janeiro de 2015).

Mata Nacional do Buçaco

A Mata Nacional do Buçaco é uma área protegida localizada na Serra do Buçaco (concelho da Mealhada). Foi plantada pela Ordem dos Carmelitas Descalços no primeiro quarto do século XVII, encontrando-se delimitada pelos murros erguidos pela ordem para limitar o acesso a mata. Os Carmelitas construíram também aí o Convento de Santa Cruz do Buçaco, destinado a albergar essa ordem monástica, que existiu entre 1628 e 1834, data da extinção das ordens religiosas em Portugal. Em 1888 foi iniciada a construção do Palácio Real (actualmente Palace Hotel do Buçaco) no local do convento, sendo este parcialmente demolido para o efeito. A Mata Nacional do Buçaco possui espécies vegetais do mundo inteiro importadas pela Ordem dos Carmelitas Descalços, incluindo o célebre cedro-do-buçaco.
Buçaco
A Constança e a Madalena na Mata Nacional do Buçaco (janeiro de 2015).

Museu Militar do Buçaco

O Museu Militar do Buçaco foi inaugurado em 27 de Setembro de 1910, por ocasião do 1.º centenário da Batalha do Buçaco, que sintetiza a valentia e a acção heróica do exército anglo-luso durante o período da Guerra Peninsular. Ampliado e remodelado em 1962, dispõe de valiosas colecções de armas, uniformes e equipamentos utilizados na Batalha, de que se destaca uma peça de artilharia com a respectiva guarnição. Em painéis, aludindo aos brilhantes feitos de armas praticados, recorda-se com emoção e gratidão o comportamento corajoso e determinado de todas as Unidades portuguesas que tomaram parte na Guerra Peninsular (1808-1814).
Buçaco
A Constança e a Madalena na visita ao Museu Militar em janeiro de 2015.

Caso do Caravaggio que pode não ser um Caravaggio

O caso começou em 2006, quando o coleccionador Lancelot William Thwaytes pediu à Sotheby’s que leiloasse uma obra que pertencia ao acervo da sua família desde o início da década de 1960. Avaliada a obra, a leiloeira levou-a à praça como sendo uma pintura de um seguidor de Caravaggio (1571-1610), o mestre do barroco italiano, que executou um quadro com o mesmo tema – Jogadores de Cartas (c. 1594), também traduzido como Os Batoteiros – que hoje pertence ao Museu de Arte de Kimbell, no Texas, que tem uma importante colecção de pintura italiana e francesa. Ora acontece que, depois de arrematada por John Denis Mahon (1910-2011), importante coleccionador e historiador de arte especializado no barroco, por 42 mil libras (55 mil euros), a obra foi reanalisada e considerada, afinal, um Caravaggio autêntico. Depois de classificada por Mahon, académico respeitado, e por outros historiadores, como Mina Gregori, foi avaliada em 10 milhões de libras (13 milhões de euros). Considerando que a leiloeira não tinha feito correctamente o seu trabalho no que toca a investigação da autoria da obra, Thwaytes queixou-se ao Supremo Tribunal de Londres em Janeiro de 2013, procurando ser ressarcido, dada a diferença entre o valor atingido em 2006 e o que a pintura passou a ter depois de reatribuída por Mahon a Caravaggio. Agora, o tribunal londrino veio dar razão à leiloeira. Segundo a decisão da juíza, a Sotheby’s “não foi negligente na sua avaliação da pintura” e “tinha todo o direito em confiar no conhecimento e experiência dos seus peritos do departamento de mestres da pintura antiga no que toca à avaliação da qualidade da pintura”. Os especialistas deste departamento decidiram, por unanimidade, que se tratava de uma cópia, e continuam a defender ainda hoje que a pintura que pertencia a Thwaytes não tem a mão de Caravaggio. Neste momento, a pintura está emprestada ao Museu da Ordem de São João, em Clerkenwell, Londres.
Caravaggio
A obra atribuída a Caravaggio pelo historiador de arte Denis Mahon.

16/01/2015

Nova polémica relativa aos mármores de Elgin

Têm décadas as tensões entre o Reino Unido e a Grécia por causa dos polémicos mármores de Elgin. Apesar delas, o Museu Britânico e o Museu de Arte Cicládica (MAC), um dos mais importantes de Atenas, vinham mantendo boas relações. Com o radicalizar de posições dos últimos meses, no entanto, o braço-de-ferro institucional parece instalado: a três meses da inauguração da exposição Defining Beauty: the Body in Ancient Greek Art, o MAC ainda não decidiu se emprestará ao Museu Britânico uma peça-chave. O impasse é consequência directa do polémico empréstimo que o Museu Britânico fez ao Museu Hermitage de São Petersburgo, onde desde o princípio de Dezembro está em exposição uma escultura do deus Ilissos, um dos mármores de Elgin, o conhecido conjunto da Acrópole de Atenas, chegado a Inglaterra no arranque do século XIX e por cuja restituição a Grécia se vem batendo internacionalmente desde a década de 1980. Os gregos, aliás, recusam chamar-lhes "mármores de Elgin", optando pelas designações "mármores da Acrópole" ou "mármores do Pártenon", o mais importante dos edifícios da colina ateniense. Esse empréstimo, o primeiro de sempre que o Museu Britânico fez de uma das centenas de peças que em 1816 o Parlamento britânico comprou ao aristocrata escocês Thomas Bruce, sétimo conde de Elgin, foi feito como uma forma de Londres se juntar às comemorações dos 250 anos do mais importante museu russo. Acabou, no entanto, submerso numa onda de indignação liderada pelas mais altas figuras do Estado grego. O empréstimo foi “uma afronta ao povo grego", denunciou o primeiro-ministro Antonis Samaras. "O Pártenon foi objecto de uma pilhagem. Nós, os gregos, identificamo-nos com a nossa história e a nossa cultura. Estas esculturas não podem em caso algum ser separadas, emprestadas ou dadas!”, fez saber Samaras num comunicado replicado depois pelo ministro da Cultura KonstantinosTasoulas Depois de apenas três meses antes – em Agosto – a Grécia ter lançado a campanha “Revolver, Restaurar, Recomeçar”, impulsionada por Marianna Vardinoyannis, embaixadora da boa vontade da UNESCO e de – em Outubro – Samaras ter reunido com a advogada Amal Alamuddin e ter admitido recorrer aos tribunais internacionais caso Atenas não consiga um acordo extra-judicial com a Grã-Bretanha, Dimitris Pandermalis, o director do Museu da Acrópole, veio também a público recordar as negativas que Londres deu a pedidos seus semelhantes de empréstimo. mCom 24 peças do Museu Britânico em território nacional – empréstimo ao mesmo MAC –, a Grécia mantém-se em silêncio em relação à viagem da obra que lhe foi pedida. Para Defining Beauty: the Body in Ancient Greek Art, o Museu Britânico deslocará pela primeira vez alguns dos mármores do Pártenon do seu espaço de exposição permanente para uma sala de exposições temporárias, um núcleo de peças em que se incluirá a escultura decapitada do deus Ilissos.
A estátua do deus Illissos no Hermitage.

A fénix do património colonial

Texto de Walter Rossa
Público 15/01/2015
Quem há 40 anos veio das colónias para a metrópole no âmbito dos processos de descolonização, deixou para trás edifícios herdados, adquiridos, por si erguidos ou feitos erguer. Habitações próprias ou de rendimento, locais comerciais, armazéns, escritórios, fábricas, etc. que corporizavam os espaços do quotidiano familiar, de trabalho e convívio, as suas fortunas, trabalhos e rendimentos. Eram expressão de um profundo enraizamento, paradoxal face à quase súbita decisão de abandono perante sérias ameaças à integridade física. Quem hoje os visita percebe como bairros e cidades foram e estavam a ser construídos por quem nunca pensara “retornar”, mas na esmagadora maioria dos casos o fez numa demonstração cabal da sua situação de colono. A maioria desses patrimónios imobiliários assim subitamente legado aos países que então adquiriam soberania, surgiu em contextos urbanos servidos por processos de planeamento, desenho ou gestão urbana qualificados, e por equipamentos bem concebidos e executados, muitos de elevado nível arquitectónico, adoptando desenho, técnicas e materiais de vanguarda. O ordenamento do território e o planeamento das cidades do 2.º Império Português fez-se com recursos consideráveis sobre espaços com poucas condicionantes edificadas, numa época em que os bons exemplos abundavam e o conhecimento beneficiava de um grande desenvolvimento. Fez-se também segregando, ou mesmo dando como inexistente, a presença esmagadora do “outro”. O Estado Português promoveu as acções de colonização também com a mobilização de técnicos qualificados, criando estruturas de enquadramento e desenvolvimento, provendo a formação adaptada àquelas realidades, etc. Entre a maior liberdade criativa e experimental das iniciativas privadas e uma maior contenção formal da encomenda pública, a arquitectura modernista acabaria por ali atingir um desenvolvimento e especificidades insuspeitas na metrópole e, em alguns aspetos, até na Europa. Compreensivelmente a utopia do Movimento Moderno encontrou ali campo de ação mais livre e fértil. Era, claro, uma utopia para a minoria branca.
De há uns anos para cá tudo isso tem despertado a atenção de grupos de investigadores portugueses, de que apenas refiro quatro responsáveis por trabalhos de equipa: José Manuel Fernandes (pioneiro com vários títulos no âmbito da história da arquitectura), a quem coube coordenar a parte relativa à África Subsariana da “enciclopédia” da Fundação Calouste Gulbenkian Património de Origem Portuguesa no Mundo: arquitectura e urbanismo, dirigida por José Mattoso (2010); Ana Tostões, responsável pelo projecto de que resultou o livro Arquitectura Moderna em África: Angola e Moçambique (2013); Ana Vaz Milheiro, que, além dos textos reunidos em Nos trópicos sem Le Corbusier… (2012), concluiu com a exposição África: visões do Gabinete de Urbanização Colonial (2014) um outro projecto; antes de tudo isso Maria Clara Mendes (a pioneira no que diz respeito ao urbanismo) coordenou um projecto que deu conta d’Os Planos de Urbanização nas Antigas Províncias Ultramarinas, 1934/1974. Entre os resultados mais interessantes destes projectos relevem-se a formação de investigadores e o suscitar da atenção, pois potenciam o desenvolvimento dos estudos.
De um ponto de vista eurocêntrico, o que acima se delimitou é património (cultural) de matriz, origem ou influência portuguesa. Não vale a pena discutir essas três asserções de significados, abrangências e princípios éticos completamente diversos, pois basta-nos a questão do “português”. Faz todo o sentido que as culturas arquitectónica e urbanística portuguesas ali se vejam representadas e desenvolvidas, e que isso seja enaltecido. O que necessariamente desafia sentimentos de perda mal resolvidos, que ganham expressão de cada vez que se verifica a sua destruição, transformação ou mera negligência na sua manutenção. É aí que a “autoridade” crítica encontra obstáculos éticos, pois choca com outros parâmetros da equação que possa classificar esses itens como património cultural. A esmagadora maioria dos naturais não colonos desses territórios viram formar-se todo esse património deliberadamente à margem das suas vidas, mesmo aqueles que foram usados como recursos para a sua concretização, uma vez que depois eram, salvo raras exceções, excluídos da sua fruição. Nuns casos ser-lhes-á indiferente, noutros lembrará um passado de subjugação que não querem lembrar. Raros serão os que nele se revêem nas suas expressões originais. Qualquer uma dessas posições é respeitável e, também ela, património cultural, pois este é, em muito, memória. É por isso que património cultural implica reconhecimento, ou seja, que quem como tal o considere tenha de nele se rever, de o ter integrado no seu mundo com estima. Em última análise o não reconhecimento pelos naturais do valor cultural daqueles bens é, também ele, um legado colonial e por isso deve entrar na equação da sua patrimonialização. Tanto quanto o legado de estruturas urbanas com mecanismos e desenho de segregação racial, grande parte desse edificado subsiste, incluindo alguns majestosos esqueletos de construções que em 1975 estavam em curso. O que não desapareceu durante 40 anos de independência transformou-se por processos muito diversos, de forma desregulada e até anárquica. Foram tempos muito difíceis, de guerra, profundas transições políticas e, essencialmente, sociais. Há já alguns anos que esses processos de adaptação tendem para a estabilização e normalização. No seu seio despontam, reclamando atenção, as estruturas, infraestruturas e equipamentos urbanos e o edificado em geral legados pelo colonialismo. Segundo uma perspectiva global não são, de forma alguma, o que eram; não poderiam ser nem podem voltar a sê-lo.
Legado colonial posteriormente potenciado pela guerra e por um desenvolvimento sem sustentação, são também os musseques ou (conforme o país) os caniços que, agora reconhecidamente, integram as cidades. Foram assentamentos informais desenvolvidos sob a indiferença assumida da governação colonial, mas são também resultado da fuga à guerra e à fome, da desestruturação da assistência pública, da desadaptação do rural ao urbano, das desigualdades, etc. É por tudo isso que, ao invés do património arquitectónico colonial, as comunidades reconhecem-nos como parte das suas identidades. Têm de ser considerados como integrando a cidade, com os seus problemas e características, e não algo à parte uma vez mais excluível na chave da sua equação para o desenvolvimento sustentável.
Como portugueses podemos considerar que, do ponto de vista do património urbanístico e arquitectónico, esse processo de 40 anos conduziu e continua a levar a perdas culturais irreparáveis, ou então que induz um potencial de valorização a explorar. Será, decerto, mais sensato e operativo enveredar pela segunda hipótese, e aceitar que só com a integração nesses bens de alterações decorrentes da sua utilização por uma nova sociedade, esta poderá gerar condições de neles se rever e de assim os aceitar como seu património cultural. No fundo é essa a lição da história de qualquer comunidade com identidade e soberanias consolidadas, é essa a lição da formação e desenvolvimento de Portugal no início e nos momentos mais críticos da sua história. São processos de antropofagia cultural que, quando bem sucedidos, acabam por se revelar integradores e enriquecedores.
Por muito que possa custar o facto em si, deve encarar-se com naturalidade a destruição, transformação ou adaptação de bens nos quais nos revemos, mas que de pleno direito são de outros que, por razões já aduzidas, não lhes têm estima. Nos casos em que tal possa estar ao alcance, isso deve estimular o desenvolvimento do conhecimento e a sua divulgação, por forma a que as decisões sejam enriquecidas e tudo o que se perde, bem como o respectivo processo, fique registado para memória futura. É ainda necessário levar em conta que entre os atores das transformações menos virtuosas estão interesses próximos, alguns deles de clara inspiração neocolonial. Estes processos nunca têm a origem, composição e consistência com que se apresentam…
Alberto Soeiro
Edifício TAP (ou Montepio de Moçambique), Maputo, arquitecto Alberto Soeiro, 1960.

O império colonial português foi tão excepcional como outro qualquer

O império colonial português depois da Segunda Guerra Mundial procurou modernizar-se. Não é um exclusivo seu, pelo contrário, mas aconteceu. Convocou as ciências sociais para a criação de novas práticas na administração dos territórios ultramarinos e tentou impor mudanças aos sectores económicos através da tecnologia. O período pós-1945 (1950, no caso português) corresponde ao chamado “colonialismo tardio”, tema a que se dedicou o primeiro painel do seminário O Ano do Fim. O Fim do Império Colonial Português no Instituto de Ciências Sociais (ICS), em Lisboa. Um período de transição, marcado por paradoxos aparentes, em que Portugal não está, definitivamente, sozinho.
Trata-se de uma fase em que os impérios procuram legitimação internacional, pondo em curso uma série de políticas de desenvolvimento económico e social capaz de lhes conferir um carácter “progressista”, explica Miguel Bandeira Jerónimo, historiador e organizador do seminário. “Trata-se de uma operação política, económica e ideológica das potências imperiais que, ao mesmo tempo que tentam justificar a sua existência, procuram reagir aos movimentos crescentes de contestação à presença do colonizador." Neste esforço “progressista”, a administração colonial portuguesa começa a dar um enquadramento antropológico e sociológico a algumas das suas práticas, à semelhança do que tinha já acontecido nos impérios britânico e francês. Mas isso não significa, defende Bandeira Jerónimo, que tenha sido menos repressiva. “Esta fase final do império é muito ambivalente, mas só aparentemente é paradoxal. Na realidade, o desenvolvimento científico e tecnológico está também ligado à repressão e, em muitos casos, torna-a mais eficaz. Sem compreender este desenvolvimento e a sua relação com o controlo das populações indígenas não se percebe a própria dinâmica política.”
Diogo Ramada Curto, historiador que esteve neste primeiro painel para abordar as estratégias de terror e controlo nas colónias portuguesas, concorda que não há um paradoxo entre a presença das ciências sociais na administração colonial e um reforço da repressão, mas contesta que a segunda dependa da primeira: “Não há sempre uma intencionalidade de usar as ciências para reprimir. O que há é uma tendência de modernização em que ciência e repressão coexistem e muitas vezes entram em choque.”
O que parece ser consensual é que o colonialismo tardio português assistiu, à semelhança do que aconteceu com outras potências coloniais no Congo, no Quénia ou na Argélia, a uma “repressão altamente eficaz”, com “episódios de extrema violência”, defende Bandeira Jerónimo. A experiência das outras potências não se reflectia apenas nos “massacres brutais”, reflectia-se também nos programas de reordenamento rural e de deslocação de populações. Se é verdade que as autoridades coloniais seguiram de perto a estratégia inglesa de repressão no Quénia, também é verdade que se interessaram pelos campos britânicos de reeducação dos africanos, cujo modelo, aliás, procuraram seguir. “Os problemas dos impérios eram semelhantes e, por isso, é muito complicado falar de excepcionalidade”, diz este investigador do ICS, organizador do volume O Império Colonial em Questão (sécs. XIX-XX), uma das obras que, segundo Ramada Curto, melhor analisam a questão do colonialismo tardio no caso português (as outras que destaca são Cidade e Império, org. de Nuno Domingos e Elsa Peralta e O Império da Visão, org. de Filipa Lowndes Vicente).
Miguel Bandeira Jerónimo rejeita a palavra “excepcionalidade” porque, diz, muitas vezes tem vindo a ser usada para, de alguma forma, “desculpar o império”: “O colonialismo português não é doce nem miscigenado, como defendeu o Estado Novo. A repressão foi muitas vezes descontrolada, só que os massacres não estão documentados, ao contrário do que acontece no império britânico, por exemplo.”
Para Ramada Curto, o discurso da “excepcionalidade” também é desajustado e absolutamente devedor das políticas justificativas da permanência em África defendidas pelo regime de António de Oliveira Salazar. “O império português foi tão diferente, quanto igual”, diz. “Foi tão excepcional, se quisermos, como os outros. Hoje, em que uma nova geração de historiadores, com formação internacional, está a produzir investigação, isso torna-se ainda mais evidente. Por comparação. A repressão é a mesma – nestas coisas ela não se mede contando as cabeças dos que morreram -, e o controlo das populações e possíveis insurreições também.” E é preciso analisar estas sociedades em toda a sua extensão – também económica, social e cultural – para as compreender, e não apostar apenas na leitura política e militar, como se fazia tradicionalmente, defende.
“No império português, por exemplo, teve sempre uma presença muito forte o trabalho escravo”, aspecto em que há uma enorme continuidade, do século XV ao XX (oficialmente, o trabalho obrigatório termina no início da década de 1960, mas na prática mantém-se), argumenta este académico da Universidade Nova. “Explorar o trabalho escravo é próprio de uma sociedade de Antigo Regime, que não se moderniza, que não é capaz de criar uma classe média e em que não há cidades intermédias. O Portugal colonial é assim.”
De onde veio, então, a ideia de que o império português foi diferente dos outros, menos violento, mais tolerante para com as culturas locais?
A ideia que a propaganda do Estado Novo se esforçou por veicular no pós-guerra de que o império português era o da miscigenação e não o da imposição é tão falsa como aquela que aponta para um país fechado sobre si mesmo, alheio a tudo o que se passa à sua volta. “Há entre os responsáveis pelas pastas dos Negócios Estrangeiros e das políticas ultramarinas uma enorme preocupação de acompanhar o que se diz sobre Portugal e as colónias internacionalmente”, diz Ramada Curto, assim como um grande interesse em monitorar o que vão produzindo os think tanks nos Estados Unidos e no resto da Europa a propósito dos territórios colonizados. No pós-II Guerra, lembra este historiador, “no pós-holocausto”, as noções de raça e de racismo eram alvo de intenso debate, promovido pelas Nações Unidas, órgão que ajudou a elevar a reputação de Gilberto Freyre (1900-1987) e dos seu luso-tropicalismo .
Este conceito do sociólogo brasileiro a quem se devem obras como Casa Grande & Senzala (1933) e O Mundo que o Português Criou (1940), foi usado pela propaganda do Estado Novo no seu esforço de legitimação do império. Na apropriação que faz da obra de Freyre – uma apropriação que “ignora toda a [sua] profundidade e complexidade”, diz Ramada Curto - o regime defende que o português se adapta naturalmente à vida nos trópicos porque é capaz de estabelecer uma empatia imediata com as populações locais e as suas culturas. Uma empatia que justificaria, mais do que os interesses políticos ou económicos, a sua permanência em África. “À falta de alternativa”, o luso-tropicalismo foi adoptado por Adriano Moreira, ministro do Ultramar entre 1961 e 1963, e o seu círculo, explica o historiador. Isto mesmo apesar de Freyre se ter tornado persona non grata ao regime depois de a sua viagem pelo império português o ter levado a escrever Aventura e Rotina (1953), obra em que chega a comparar o ambiente de trabalho da Diamang, a antiga diamantífera portuguesa em Angola, aos campos de concentração nazis. O discurso luso-tropicalista do Estado Novo insistia nas “solidariedades afectivas e linguísticas”, apresentando o colonialismo português “quase como um acidente da História”: “Ora, o luso-tropicalismo não explicava o império nessa altura e não pode explicar hoje o que somos, mas continua a persistir, de alguma forma, nos discursos oficiais que insistem no triângulo Atlântico [Portugal, Brasil, África] quando se trata, por exemplo, de falar da cooperação entre Portugal e o Brasil”, acrescenta Bandeira Jerónimo. “Como falar em excepcionalidade do império e em luso-tropicalismo quando havia trabalho forçado, quando a assimilação cultural era irrelevante e a educação das populações indígenas e os seus direitos sociais inexistentes?”, pergunta o historiador, defendendo que esta e outras questões estão ainda fora da esfera pública, confinadas à academia. “Está em curso uma luta pela memória do colonialismo tardio que passa também por contabilizar a morte, a repressão, mas essa luta precisa de mais debate.”
Marcelo Caetano
Marcello Caetano, o último presidente do conselho do Estado Novo, durante uma visita a Angola em 1969