30/09/2015

"El Greco, nova contribuição biográfica, crítica e médica ao estudo do pintor Doménico Theotocópuli", artigo de Ricardo Jorge de 1913

E o que se imagina no caso do pintor de Creta e Toledo, defendia Ricardo Jorge num ensaio publicado em 1913 numa separata da Revista da Universidade de Coimbra ("El Greco, nova contribuição biográfica, crítica e médica ao estudo do pintor Doménico Theotocópuli"), podia muito bem ser produto de paranóia. O médico português que muito escreveu sobre arte, literatura e história lembra neste ensaio que o regresso à primitividade e o grotesco, características que encontra nas “figuras deformadas contra natura e contra razão” de El Greco, são próprias da arte feita nos manicómios por “alienados”. No texto, carregado de informação retirada de fontes da época e de historiadores contemporâneos de Ricardo Jorge, reconhece-se mérito na sua pintura, mas faz-se um retrato pouco abonatório do homem. Escreve o médico português que vivia num “pardieiro”, entre o “fausto” e a “penúria”, carregado de dívidas, trabalhando para “igrejas de pouca renda e fidalgos de meia tijela”. Pintor, levava até à megalomania o conceito das suas faculdades artísticas; a sua craveira excedia a dos mais grados, o seu pincel não tinha preço. Um génio deveras complexivo e rico de dotes, afectado de uma hiperestesia de personalidade, levada até ao delírio”, continua Ricardo Jorge, sublinhando que, na época em que escreve, o mundo da arte vivia já uma verdadeira “grecofilia”, transformado que estava o “o solitário de Toledo” em “glória mundial”. Ricardo Jorge vai buscar uma das mais aclamadas pinturas do artista para ilustrar esta coincidência de “génio” e “delírio”, descrevendo a cena inferior de O Enterro do Conde de Orgaz como um “soberbo trecho de pintura” e a superior, a do “reino da glória” – o conde recebido no paraíso –, como “a coisa mais desengraçada e clownesca que pode ver-se; ou antes que confrange ver, como borrão que é numa obra-prima”. Loucura; quem pode subtrair-se à ideia de que em telas assim se espelha o espírito de um doido?
A crítica, e desde logo a do romantismo, reconhece o médico, teve dificuldade em lidar com a obra de El Greco, atribuindo a sua originalidade a uma “enfermidade cerebral”. “Os desabrimentos e desequilíbrios da sua pintura que haviam de ser senão da mão dum doido?”, interrogavam-se os especialistas do século XIX.
O Grego, precisa neste ensaio de 50 páginas, “alonga o corpo e apequena a cabeça”, “amachuca os panejamentos”, “ilumina e modela as figuras de um modo singular” e exagera a assimetria dos rostos “até à carantonha”. “Nos últimos tempos”, diz ainda o médico-historiador, “não há cara que não esteja torta; nem o menino Jesus escapa”. Depois de uma análise atenta de todos os erros e exageros do pintor na representação do corpo humano, Ricardo Jorge, que não espera da pintura uma “simples execução da anatomia” e dá até como exemplo “o efeito delicioso” que as três vértebras a mais dão à Odalisca de Ingres, passa à análise das semelhanças que existem entre a arte do pintor de Toledo e a que é feita por doentes mentais.
Ricardo Jorge vai buscar as obras A Visão de S. João e A Ceia em Casa de Simeão para falar das suas “almas penadas”, de um “mostruário de horrores e de grotescos”, de “gente desfeita por todas as misérias físicas e morais”, perguntando em seguida: “Loucura; quem pode subtrair-se à ideia de que em telas assim se espelha o espírito de um doido?”
Doido ou não, o médico reconhece, apesar de tudo, que a sua obra é singular: “[…] a luminosidade é um dos predicados do artista; inimigo do escuro, a sua pintura nada em luz. Traço algum de macabro ou pavoroso, nem martírios, nem torturas, nem negruras; abertas radiantes de glória, figuras celestiais e angélicas, animado tudo de um misticismo ingénuo e fervente, que seria o de São João da Cruz e de Santa Teresa de Jesus, se não fora o dele mesmo.”
A sua pintura, lembra Fernando Marías, um dos mais influentes historiadores de arte da actualidade, comissário da mais importante das exposições que em 2014 assinalaram os 400 anos da morte de El Greco e autor de uma importante monografia sobre o artista (Biografia de um Pintor Extravagante, 1997), convoca emoções. Marías, que escolheu a Sagrada Família com Santa Ana que se pode ver no Museu de Arte Antiga até 10 de Janeiro (é o "comissário" desta exposição de um quadro só), explica que essa emoção se deve, em parte, ao magnífico jogo de mãos que a composição guarda. Desse jogo que atrai faz parte uma Virgem que abraça e um São João Baptista que, de início, El Greco quis ver a apontar para Jesus e que, por fim, pintou a pedir-nos silêncio.
A Visão de S. João ou O Quinto Selo, 1608-1614.

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