11/03/2015

O Direito à Memória, ou quando “do alto destas pirâmides, 40 séculos de História nos contemplam!”

Por Paulo Mendes Pinto e Fernando Catarino
Quando por volta do século XXIII a.C. um novo monarca subiu ao trono da florescente cidade de Acad, teve a necessidade de se rebaptizar com o nome Sargão, “o rei legítimo”. Mais uma vez, entre tantas que não param de se suceder, um líder terá usurpado o poder matando quem antes o detinha, apresentando-se então como o legítimo, o correcto, o escolhido, dominando com um punho férreo, e destruindo tudo o que era memória de quem tinha reinado antes.
Muito mais tarde, no início do século VIII a.C, um novo Sargão, o II de seu nome, subia ao trono da Assíria, também através de um golpe palaciano, recorrendo ao mítico nome para se robustecer numa ascensão que era frágil. Seria ele o primeiro grande invasor de Jerusalém no ano 720 a.C., e o responsável pela que por muitos é considerada a primeira diáspora hebreia. São deste monarca algumas das estátuas que nestes dias temos visto a serem destruídas no Museu de Mossul pelos militantes do autoproclamado Estado Islâmico.
Entre silêncios cúmplices e gritos de revolta, estamos mais uma vez a ouvir a lamentação do Tempo no que de irrecuperável ele tem para a nossa identidade e memória. O património da humanidade no Médio Oriente está em acentuado processo de destruição. Em 2001 foram destruídos, por grupos fundamentalistas islâmicos, talibans, os Budas de Bamian. Em 2003, foi saqueado, por permissão ou demissão das tropas que lutavam contra esse mesmo fundamentalismo, o Museu de Bagdade.
De comum a estes actos trágicos contra a memória e a história da humanidade, encontra-se a brutalidade, o choque que nos foi transmitido pela falta de sensibilidade, pela irresponsabilidade perante tais tesouros. Tal como no caso do Museu de Bagdad, em 2003, o Museu de Mossul depositava muitas das peças mais importantes para a compreensão da génese da civilização, do caminho de toda a Humanidade.
Nestes últimos dias, depois de saques e destruições realizadas um pouco por todo o Iraque e Síria por essas gentes que tentam criar algo a que chamam Estado Islâmico, ouvimos e lemos a notícia do apelo à destruição das pirâmide e da esfinge do planalto de Guiza no Egipto.
Napoleão, há dois séculos, exprimia na frase que usei para o título deste texto a reverência e a admiração perante os magníficos monumentos da antiga civilização do Egipto, recolhendo para si o valor heróico de ter as tropas naquele local, contempladas pelas quase eternas pirâmides.
Muito do que foram algumas das principais revoluções da humanidade está directamente ligado a estes territórios: a agricultura, a roda, a cerâmica, a escrita e, obviamente, a própria noção de Deus e de Profeta que os monoteísmos apresentam hoje.
Quando o alvo são as heranças das culturas politeístas, é fácil a barbárie ir aos Textos Sagrados buscar exemplos em que Profetas destruíram ídolos e realizaram purificações.
Perante essa visão buçal de querer hoje repetir supostos gestos de tempos imemoriais de afirmação dos monoteísmos, quando alguns profetas destruíram ídolos, de nada parecem valer os apelos que mundo fora são regularmente feitos para que as destruições de museus e de sítios arqueológicos parem.
De nada serve que alguns líderes religiosos islâmicos tenham vindo já equiparar a arte pré-islâmica à arte islâmica, reforçando a obrigação de a conservar. E de nada serve porque a barbárie que vemos ser feita contra esta herança que nos é comum resulta de uma visão do mundo em que este suposto Estado Islâmico se apresenta como a quase primeira efectivação certa do Islão. Tudo o resto, sejam muçulmanos, ou não, está errado. Tudo é negado na sua eventual validade, desde que venha de fora dos seus líderes.
E é nessa visão do mundo que se deve olhar para esta barbárie. A destruição que alguns grupos radicais islâmicos vão fazendo regularmente nas últimas dezenas de anos parece fazer parte de uma estratégia de anulação da memória colectiva, como se ao fazerem isso estivessem a consolidar essa ideia peregrina de que são eles os primeiros a estarem certos, escolhidos que foram para uma missão verdadeiramente civilizadora, pretendendo apagar o passado. Parece ser uma interminável história, esta a de se matar o pai, qual complexo edipiano aplicado ao correr das civilizações.
É, de facto, uma afirmação verdadeiramente “sargónica” aquela que vemos ao serem destruídas as estátuas em Mossul, ou ao pretender-se destruir as pirâmides junto ao Cairo. Não se poderá dizer que repetem Maomé na Caaba porque nas salas desse museu não se cultuavam aquelas estátuas, elas eram simplesmente memória e arte.
A suposta repetição desse gesto atribuído ao Profeta não terá muito a ver com o medo de que essas estátuas, esses monumentos, façam perceber que há mundo para lá do que os dirigentes do suposto Estado Islâmico dizem? Matar o pai, renegar a genealogia cultural de onde se vem é a mais eficaz forma de desenraizamento.
Sim, porque a memória colectiva é o primeiro instrumento que nos faculta aceder à capacidade crítica. E esse é o medo dessa gente: que aqueles que são dominados olhem para as estátuas agora quebradas dessas salas de memória, e questionem a legitimidade de quem os pretende dominar.
Afinal, o único ídolo cultuado neste momento no Médio Oriente não é a vontade milenar repetidora de Sargão, com um pseudo-califa desejoso de impor o seu poder e de se tornar legítimo, lançando a uma damnatio memoriae tudo o que vê como inimigo?
civilização assíria
"Touro alado", escultura da civilização Assíria.

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