02/12/2017

Monserrate Revisitado – A Colecção Cook em Portugal

A Sintra romântica dos escritores e poetas britânicos, sobretudo a de Lord Byron e de William Beckford, que chegou a arrendar o palacete de Monserrate que ali existia antes da chegada de Francis Cook (1817-1901), fascinava este homem de negócios que fez fortuna pegando na empresa do pai, que negociava em tecidos, e viajando pela Europa e pelo Médio Oriente. Os jardins eram também o cenário ideal para as festas em que os donos desta casa de Verão e os seus convidados se mascaravam, retirando para o interior do palacete quando a noite se aproximava, para jantar e passar o serão nas salas do bilhar ou da música, onde hoje já está montada a árvore de Natal, junto ao piano. É para celebrar os 200 anos do nascimento de Francis Cook, o inglês que comprou a quinta de Monserrate em 1856 e reformou o palacete onde Beckford tinha vivido, que abre hoje a exposição Monserrate Revisitado – A Colecção Cook em Portugal (até 31 de Maio). Reúne no pequeno palácio mais de 50 obras de arte (pintura, escultura, mobiliário, porcelana, têxteis ou ourivesaria) que pertenceram ao seu valioso recheio, disperso por uma série de colecções públicas e privadas na sequência de um grande leilão ali realizado em 1946.
Peças vindas de colecções particulares, do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), da Casa-Museu Medeiros e Almeida e da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, entre outros, ajudam a recriar o ambiente que ali se vivia nos quase cem anos em que o palácio pertenceu à família Cook, e que antecederam décadas de abandono (de 1949 ao início dos anos 2000), até que em 2005 a Parques de Sintra – Monte da Lua, a empresa criada para gerir o património do Estado na paisagem cultural de Sintra classificada como Património Mundial, começou a restaurá-lo.
Para isso, e com a orientação de Maria João Neto, tem nesta primeira exposição e no volumoso catálogo que a acompanha dois importantes marcos. A exposição e esta edição, que inclui estudos individuais das peças expostas e textos que contextualizam a evolução da quinta de Monserrate ou traçam o perfil de Francis Cook, são pontos de partida para um trabalho ainda mais ambicioso que quer devolver às salas do andar nobre do palácio (o rés-do-chão), já inteiramente restauradas, um ar habitável. Até agora os visitantes de Monserrate (121 mil em 2016) têm visto um palácio vazio, com as suas paredes cobertas de estuques decorativos e a magnífica porta esculpida da biblioteca, que apetece ver sempre fechada para que não passe despercebida a ninguém. A partir de 31 de Maio poderão começar a ver objectos nas salas e, progressivamente - graças a novas aquisições, empréstimos, depósitos ou réplicas de pinturas, tapetes e mobiliário -, sentir que passeiam por uma casa romântica de gosto inglês.
Francis Cook segue o manual de criação de uma grande propriedade senhorial britânica. Uma propriedade agrícola que é auto-suficiente, com centenas de pessoas a trabalhar, com uma casa que responde, embora mais pequena do que o habitual, a todos os requisitos de uma família riquíssima da época, com espaços separados para mulheres e homens, com grande inovações tecnológicas. Em Monserrate há uma transposição do modelo inglês da casa senhorial, por oposição ao Palácio da Pena, marcada por símbolos nacionalistas, como convém à casa dos reis. Francis Cook e D. Fernando estão sempre a competir, como se dissessem 'a minha colecção é melhor que a tua, o meu palácio é melhor que o teu…'. Quando Francis Cook compra o Convento dos Capuchos – compra também umas 15 outras quintinhas para fazer crescer a de Monserrate –, o rei compra logo o terreno do lado [hoje a Tapada de D. Fernando] para que o inglês não consiga ligar as duas propriedades. Se em tamanho, a Pena supera Monserrate, em conforto, passa-se o oposto. Aqui havia ‘águas correntes’, como se dizia, aquecimentos nas salas e até luz eléctrica, graças a um gerador instalado no parque. A Pena, que se saiba, não teve electricidade no tempo de D. Fernando, e o telefone que lá está chegou com D. Carlos. Há até um elevador para ligar a cozinha à copa da sala de jantar e o mesmo sistema para chamar os criados aos quartos que vimos na famosa série Downton Abbey.
Esta exposição tem num relevo de mármore do Renascimento florentino, representando a Virgem com o Menino e esculpido por Gregorio di Lorenzo (conhecido como o mestre das madonas de mármore). Francis Cook, que chegou a ser o terceiro homem mais rico do Reino Unido, tinha uma das melhores colecções privadas de arte do mundo, exposta numa galeria que mandou acrescentar à propriedade onde vivia a maior parte do ano, Doughty House, e que funcionava como um pequeno museu, visitável mediante o pagamento de bilhete. Em Sintra o multimilionário do têxtil fez o mesmo. Sabemos ainda pouco sobre as peças que Cook traz de Inglaterra ou compra em Portugal para pôr em Monserrate, em parte porque o leilão de 1946, que se saiba, não teve catálogo. Mas o que tinha em Doughty House é muito conhecido e percebe-se, pelas colecções a que as peças foram parar, a qualidade excepcional do que comprava. Tinha vários Rembrandts de grande qualidade, obras de Rubens, Murillo, Velázquez, El Greco, um Turner muito conhecido [A Quinta Praga do Egipto], um Antonello da Messina, entre outras obras de pintores célebres..
O peso da pintura espanhola na sua colecção deve-se ao facto de ter tido como consultor de aquisições um coleccionador que era um grande conhecedor da pintura italiana e ibérica – John Charles Robinson. É precisamente sob sugestão de Robinson, a quem compra dezenas de obras, que Cook se interessa por Grão Vasco (Vasco Fernandes), autor do chamado Tríptico Cook (1510-1530) e pelo Pentecostes originalmente feito para o Convento da Madre de Deus, em Lisboa, cujo paradeiro é hoje desconhecido. Esta obra, reproduzida no catálogo graças a uma fotografia antiga, é agora, segundo o texto nele escrito por Vera Mariz, atribuído pelo historiador de arte Vítor Serrão à oficina de Vicente Gil e do seu filho Manuel Vicente, pintores régios.
A colecção Cook incluía obras como Cabeça de Cristo, de Antonello da Messina (hoje no Museu do Louvre); As Três Marias no Sepulcro, de Jan van Eyck (Museu Boijmans van Beuningen); A Adoração dos Magos, começada por Fra Angelico e terminada por Fra Filippi (National Gallery de Washington), Velha Fritando Ovos, de Velázquez (National Gallery da Escócia), A Virgem e o Menino Entronizada, com um Doador, de Crivelli (National Gallery de Washington), e o Salvator Mundi de Leonardo da Vinci que foi recentemente vendido em leilão pela soma recorde de 382 milhões de euros, sem que se saiba ainda a quem pertence (a sua atribuição ao pintor de Mona Lisa, ainda hoje contestada por alguns, não era conhecida à época em que estava em Doughty House, para onde Robinson a comprou pensado tratar-se de um dos seus seguidores, Bernardino Luini). Esta colecção foi dispersa em vendas sucessivas no pós-Segunda Guerra Mundial, quando os negócios da família, entretanto nas mãos de um bisneto que não gozava de grande reputação, dado que tinha casado sete vezes, entraram em derrocada.
Em Monserrate, Francis Cook tem obras de gosto muito mais exótico, e é por isso que aqui reuniria uma mistura muito interessante de arte europeia, com escultura clássica e obras do Renascimento, por exemplo, e de arte oriental. Nesta casa de Verão misturava-se, por isso, uma mesa indo-portuguesa com uma Vénus e Meleagro italianos do século XVII, ou uma armadura indiana do século XIX com um relevo flamengo em alabastro, do século XVI.
A personalidade de Francis Cook é outro dos temas em que a investigação deve apostar de futuro, defende Neto, para que se possa dar um verdadeiro rosto a este coleccionador que, muitas vezes, se vê “eclipsado” pela personalidade exuberante da sua segunda mulher, a norte-americana Tennessee (Tennie) Claflin, 28 anos mais nova do que ele. Tennie, com quem o empresário casa menos de um ano depois da morte da sua primeira mulher, vinha de uma família insólita – o pai arrastava a mulher e os filhos pelo país em espectáculos que envolviam espiritismo e chegou a ser acusado de gerir um bordel – e era uma feroz sufragista, tal como a irmã Victoria Woodhull. Juntas abriram, em Nova Iorque, a primeira agência de corretagem dirigida por mulheres, com sucesso, chegando a candidatar-se a primeira a um lugar no Congresso e a segunda à Presidência dos Estados Unidos. É graças a esta mulher algo indomável que Francis Cook se dedica a obras sociais em Sintra. Fundam duas escolas para os filhos dos seus trabalhadores, apoiam a Misericórdia com generosas doações e fazem festas para as crianças que viviam nas sua propriedades, dando tecidos às mães para que as vestissem condignamente. Mas nem assim Tennie se livrou de ser acusada, pelos filhos de Francis Cook, de ter envenenado o marido.
Palácio de Monserrate
Francis Cook (1817-1901) c. de 1890.
Francis Cook e amigos foto de Carlos Relvas
Francis Cook e os seus convidados num baile de máscaras. Foto de Carlos Relvas.
Francis Cook e amigos foto de Carlos Relvas
Francis Cook, sentado de chapéu escuro, com amigos. Foto de Carlos Relvas.
Biblioteca Palácio de Monserrate
Biblioteca do Palácio de Monserrate em 1902.
Sala de jantar Palácio de Monserrate
Sala de jantar do Palácio de Monserrate em 1902.

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