02/12/2017

Monserrate Revisitado – A Colecção Cook em Portugal

A Sintra romântica dos escritores e poetas britânicos, sobretudo a de Lord Byron e de William Beckford, que chegou a arrendar o palacete de Monserrate que ali existia antes da chegada de Francis Cook (1817-1901), fascinava este homem de negócios que fez fortuna pegando na empresa do pai, que negociava em tecidos, e viajando pela Europa e pelo Médio Oriente. Os jardins eram também o cenário ideal para as festas em que os donos desta casa de Verão e os seus convidados se mascaravam, retirando para o interior do palacete quando a noite se aproximava, para jantar e passar o serão nas salas do bilhar ou da música, onde hoje já está montada a árvore de Natal, junto ao piano. É para celebrar os 200 anos do nascimento de Francis Cook, o inglês que comprou a quinta de Monserrate em 1856 e reformou o palacete onde Beckford tinha vivido, que abre hoje a exposição Monserrate Revisitado – A Colecção Cook em Portugal (até 31 de Maio). Reúne no pequeno palácio mais de 50 obras de arte (pintura, escultura, mobiliário, porcelana, têxteis ou ourivesaria) que pertenceram ao seu valioso recheio, disperso por uma série de colecções públicas e privadas na sequência de um grande leilão ali realizado em 1946.
Peças vindas de colecções particulares, do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), da Casa-Museu Medeiros e Almeida e da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, entre outros, ajudam a recriar o ambiente que ali se vivia nos quase cem anos em que o palácio pertenceu à família Cook, e que antecederam décadas de abandono (de 1949 ao início dos anos 2000), até que em 2005 a Parques de Sintra – Monte da Lua, a empresa criada para gerir o património do Estado na paisagem cultural de Sintra classificada como Património Mundial, começou a restaurá-lo.
Para isso, e com a orientação de Maria João Neto, tem nesta primeira exposição e no volumoso catálogo que a acompanha dois importantes marcos. A exposição e esta edição, que inclui estudos individuais das peças expostas e textos que contextualizam a evolução da quinta de Monserrate ou traçam o perfil de Francis Cook, são pontos de partida para um trabalho ainda mais ambicioso que quer devolver às salas do andar nobre do palácio (o rés-do-chão), já inteiramente restauradas, um ar habitável. Até agora os visitantes de Monserrate (121 mil em 2016) têm visto um palácio vazio, com as suas paredes cobertas de estuques decorativos e a magnífica porta esculpida da biblioteca, que apetece ver sempre fechada para que não passe despercebida a ninguém. A partir de 31 de Maio poderão começar a ver objectos nas salas e, progressivamente - graças a novas aquisições, empréstimos, depósitos ou réplicas de pinturas, tapetes e mobiliário -, sentir que passeiam por uma casa romântica de gosto inglês.
Francis Cook segue o manual de criação de uma grande propriedade senhorial britânica. Uma propriedade agrícola que é auto-suficiente, com centenas de pessoas a trabalhar, com uma casa que responde, embora mais pequena do que o habitual, a todos os requisitos de uma família riquíssima da época, com espaços separados para mulheres e homens, com grande inovações tecnológicas. Em Monserrate há uma transposição do modelo inglês da casa senhorial, por oposição ao Palácio da Pena, marcada por símbolos nacionalistas, como convém à casa dos reis. Francis Cook e D. Fernando estão sempre a competir, como se dissessem 'a minha colecção é melhor que a tua, o meu palácio é melhor que o teu…'. Quando Francis Cook compra o Convento dos Capuchos – compra também umas 15 outras quintinhas para fazer crescer a de Monserrate –, o rei compra logo o terreno do lado [hoje a Tapada de D. Fernando] para que o inglês não consiga ligar as duas propriedades. Se em tamanho, a Pena supera Monserrate, em conforto, passa-se o oposto. Aqui havia ‘águas correntes’, como se dizia, aquecimentos nas salas e até luz eléctrica, graças a um gerador instalado no parque. A Pena, que se saiba, não teve electricidade no tempo de D. Fernando, e o telefone que lá está chegou com D. Carlos. Há até um elevador para ligar a cozinha à copa da sala de jantar e o mesmo sistema para chamar os criados aos quartos que vimos na famosa série Downton Abbey.
Esta exposição tem num relevo de mármore do Renascimento florentino, representando a Virgem com o Menino e esculpido por Gregorio di Lorenzo (conhecido como o mestre das madonas de mármore). Francis Cook, que chegou a ser o terceiro homem mais rico do Reino Unido, tinha uma das melhores colecções privadas de arte do mundo, exposta numa galeria que mandou acrescentar à propriedade onde vivia a maior parte do ano, Doughty House, e que funcionava como um pequeno museu, visitável mediante o pagamento de bilhete. Em Sintra o multimilionário do têxtil fez o mesmo. Sabemos ainda pouco sobre as peças que Cook traz de Inglaterra ou compra em Portugal para pôr em Monserrate, em parte porque o leilão de 1946, que se saiba, não teve catálogo. Mas o que tinha em Doughty House é muito conhecido e percebe-se, pelas colecções a que as peças foram parar, a qualidade excepcional do que comprava. Tinha vários Rembrandts de grande qualidade, obras de Rubens, Murillo, Velázquez, El Greco, um Turner muito conhecido [A Quinta Praga do Egipto], um Antonello da Messina, entre outras obras de pintores célebres..
O peso da pintura espanhola na sua colecção deve-se ao facto de ter tido como consultor de aquisições um coleccionador que era um grande conhecedor da pintura italiana e ibérica – John Charles Robinson. É precisamente sob sugestão de Robinson, a quem compra dezenas de obras, que Cook se interessa por Grão Vasco (Vasco Fernandes), autor do chamado Tríptico Cook (1510-1530) e pelo Pentecostes originalmente feito para o Convento da Madre de Deus, em Lisboa, cujo paradeiro é hoje desconhecido. Esta obra, reproduzida no catálogo graças a uma fotografia antiga, é agora, segundo o texto nele escrito por Vera Mariz, atribuído pelo historiador de arte Vítor Serrão à oficina de Vicente Gil e do seu filho Manuel Vicente, pintores régios.
A colecção Cook incluía obras como Cabeça de Cristo, de Antonello da Messina (hoje no Museu do Louvre); As Três Marias no Sepulcro, de Jan van Eyck (Museu Boijmans van Beuningen); A Adoração dos Magos, começada por Fra Angelico e terminada por Fra Filippi (National Gallery de Washington), Velha Fritando Ovos, de Velázquez (National Gallery da Escócia), A Virgem e o Menino Entronizada, com um Doador, de Crivelli (National Gallery de Washington), e o Salvator Mundi de Leonardo da Vinci que foi recentemente vendido em leilão pela soma recorde de 382 milhões de euros, sem que se saiba ainda a quem pertence (a sua atribuição ao pintor de Mona Lisa, ainda hoje contestada por alguns, não era conhecida à época em que estava em Doughty House, para onde Robinson a comprou pensado tratar-se de um dos seus seguidores, Bernardino Luini). Esta colecção foi dispersa em vendas sucessivas no pós-Segunda Guerra Mundial, quando os negócios da família, entretanto nas mãos de um bisneto que não gozava de grande reputação, dado que tinha casado sete vezes, entraram em derrocada.
Em Monserrate, Francis Cook tem obras de gosto muito mais exótico, e é por isso que aqui reuniria uma mistura muito interessante de arte europeia, com escultura clássica e obras do Renascimento, por exemplo, e de arte oriental. Nesta casa de Verão misturava-se, por isso, uma mesa indo-portuguesa com uma Vénus e Meleagro italianos do século XVII, ou uma armadura indiana do século XIX com um relevo flamengo em alabastro, do século XVI.
A personalidade de Francis Cook é outro dos temas em que a investigação deve apostar de futuro, defende Neto, para que se possa dar um verdadeiro rosto a este coleccionador que, muitas vezes, se vê “eclipsado” pela personalidade exuberante da sua segunda mulher, a norte-americana Tennessee (Tennie) Claflin, 28 anos mais nova do que ele. Tennie, com quem o empresário casa menos de um ano depois da morte da sua primeira mulher, vinha de uma família insólita – o pai arrastava a mulher e os filhos pelo país em espectáculos que envolviam espiritismo e chegou a ser acusado de gerir um bordel – e era uma feroz sufragista, tal como a irmã Victoria Woodhull. Juntas abriram, em Nova Iorque, a primeira agência de corretagem dirigida por mulheres, com sucesso, chegando a candidatar-se a primeira a um lugar no Congresso e a segunda à Presidência dos Estados Unidos. É graças a esta mulher algo indomável que Francis Cook se dedica a obras sociais em Sintra. Fundam duas escolas para os filhos dos seus trabalhadores, apoiam a Misericórdia com generosas doações e fazem festas para as crianças que viviam nas sua propriedades, dando tecidos às mães para que as vestissem condignamente. Mas nem assim Tennie se livrou de ser acusada, pelos filhos de Francis Cook, de ter envenenado o marido.
Palácio de Monserrate
Francis Cook (1817-1901) c. de 1890.
Francis Cook e amigos foto de Carlos Relvas
Francis Cook e os seus convidados num baile de máscaras. Foto de Carlos Relvas.
Francis Cook e amigos foto de Carlos Relvas
Francis Cook, sentado de chapéu escuro, com amigos. Foto de Carlos Relvas.
Biblioteca Palácio de Monserrate
Biblioteca do Palácio de Monserrate em 1902.
Sala de jantar Palácio de Monserrate
Sala de jantar do Palácio de Monserrate em 1902.

16/11/2017

De Augusta Emerita a Olisipo por Ebora : uma leitura do território a partir da rede viária

Está disponível a tese de doutoramento de Maria Jose de Almeida, De Augusta Emerita a Olisipo por Ebora : uma leitura do território a partir da rede viária [http://repositorio.ul.pt/handle/10451/29682]. Tese orientada por Carlos Fabião e Amílcar Manuel Guerra.
A existência de três itinerários principais entre a capital da Lusitania e o porto marítimo de Olisipo é atestada por evidências arqueológicas e por fontes escritas (literárias e epigráficas) de época romana. Desse conjunto de fontes, o texto conhecido como Itinerário de Antonino assume-se como um dos documentos principais. O objeto de estudo é um desses itinerários, o que faz a ligação de Augusta Emerita a Olisipo por Ebora. A interpretação do Itinerário de Antonino, conjunto de textos que conhecemos através de cópias medievais, é um tema ainda em aberto na atual investigação científica.
São várias as propostas relativas à sua natureza e intenção, cronologia e, sobretudo, quanto à correspondência que deve ser feita entre as rotas descritas e a rede viária efetivamente existente no território em época romana. Para tentar ultrapassar essas dificuldades de interpretação, parece relevante entender a natureza topológica do Itinerario de Antonino e procurar compreender a estrutura de dados que apresenta. Neste sentido, faz-se uma revisão da informação disponível para definir, no território, um percurso plausível do itinerário, fundamentado em dados de natureza arqueológica, epigráfica e histórica. A partir da definição de um traçado e de uma faixa alargada em torno da representação convencional do eixo da via, procura entender-se a forma como o itinerário se articula com a ocupação e organização do território. A análise da informação tratada nesta perspetiva conduz à elaboração de uma proposta de interpretação da sequência de indicações miliárias para esta rota no Itinerário de Antonino: defende-se a tese que os numerais expressos nessas sequências correspondem às distâncias entre estações viárias, num esquema de contagem relativo a cada território administrativo que atravessa. Dito de outra forma, que as indicações miliárias se originam na sede de cada unidade territorial, irradiando desse caput uiae, nas diferentes direções das vias, até ao encontro do território da cidade contígua.

Emerita Augusta a Olisipo
Emerita Augusta a Olisipo
Emerita Augusta a Olisipo
Emerita Augusta a Olisipo

11/11/2017

Três coleções documentais portuguesas inscritas na «Memória do Mundo da Unesco»

As três colecções documentais candidatadas por Portugal ao Registo da Memória do Mundo foram já aprovadas e inscritas na lista da UNESCO: o Códice Calixtinus da Catedral de Santiago de Compostela e outras cópias medievais do Liber Sancti Jacobi, proposto conjuntamente por Espanha e Portugal – e que inclui uma cópia de 1175 proveniente do mosteiro de Alcobaça e hoje conservada na Biblioteca Nacional –, os Registos Oficiais de Macau durante a Dinastia Qing (1693-1886), que foram objecto de uma candidatura comum com a China, e o Livro de Registo de Vistos concedidos pelo Consul Português em Bordéus, Aristides Sousa Mendes (1939-1940). Os três conjuntos documentais integram os 78 bens recomendados pelo Comité Consultivo Internacional do programa Memória do Mundo, que esteve reunido em Paris no final de Outubro e cujas propostas foram depois endossadas pela ainda directora-geral da UNESCO Irina Bokova, que será rendida em breve pela ex-ministra da Cultura francesa Audrey Azoulay.
O códice compostelano é um manuscrito profusamente iluminado, dividido em cinco livros, dos quais os mais célebres são provavelmente os dois últimos: o quarto, muito difundido na Europa medieval, é uma narração da história de Carlos Magno, apresentado como descobridor da tumba do apóstolo São Tiago, e o quinto é o mais antigo guia que se conhece do Caminho de Santiago, com descrições do trajecto, inventariação de obras de arte a apreciar no percurso e conselhos de variada natureza aos peregrinos. A par dos manuscritos conservados na Galiza, datados de 1140 a 1170, a candidatura ao programa Memória do Mundo incluiu também uma cópia portuguesa do Codex Calixtinus, com data de 1175, e portanto coeva do códice de Compostela, embora iconograficamente menos rica. Fundamental para o conhecimento da cultura religiosa da Europa medieval, o códice galego é também um objecto único, antiquíssimo e de valor incalculável, mas há alguns anos receou-se que pudesse ter desaparecido para sempre. Roubado em Julho de 2011 da caixa em que estava guardado na catedral de Santiago de Compostela, reapareceu intacto em 2012 nas mãos de um electricista que trabalhava para a igreja.
Conhecidos como Chapas Sínicas, os Registos Oficiais de Macau durante a Dinastia Qing (1693-1886), designação usada na candidatura à Memória do Mundo da UNESCO, são uma compilação de mais de 3500 documentos, muitos deles redigidos em língua chinesa, que inclui, entre muitos outros papéis, nem todos de carácter oficial, uma vasta correspondência trocada entre as autoridades portuguesas e chinesas desde o final do século XVII quase até ao século XX. No seu conjunto, esta colecção, conservada na Torre do Tombo desde o século XIX, retrata com detalhe o peculiaríssimo papel que Macau desempenhou no mundo durante esses duzentos anos.
O mais recente dos três bens agora inscritos na Memória do Mundo é o registo dos vistos concedidos pelo cônsul português em Bordéus nos primeiros anos da II Guerra Mundial, Aristides de Sousa Mendes, que contra as ordens expressas do Governo do seu país, concedeu milhares de vistos de entrada em Portugal a refugiados, sobretudo judeus em fuga da Alemanha nazi. Os nomes de muitas dessas pessoas constam nas colunas destes registos, conservados no Arquivo do Instituto Diplomático.
Com estas três entradas, a lista da Memória do Mundo inclui agora dez bens ligados a Portugal, num total de 427. Os outros sete são a Carta de Pero Vaz de Caminha, a colecção Corpo Cronológico – um conjunto de documentos produzidos entre os séculos XII e XVII, compilado no século XVIII por um guarda-mor da Torre do Tombo, Manuel da Maia –, o Tratado de Tordesilhas, os relatórios da primeira travessia aérea do Atlântico, por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, os arquivos dos Dembos, candidatados em conjunto com Angola (reúnem correspondência trocada entre as autoridades africanas da região dos Dembos, no norte do país, e as autoridades coloniais portuguesas), o Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia (1497-1499), e ainda dois manuscritos medievais portugueses – o Apocalipse de Lorvão e o Comentário ao Apocalipse do Beato de Liébana – que integram um conjunto de 11 manuscritos medievais peninsulares feitos a partir da obra do Beato de Liébana, que viveu no século VIII.

Calixtinus.
Ilustração do códice Calixtinus.

Chapas Sínicas
Documento que integra os registos de Macau.

Aristides de Sousa Mendes.
Uma página do livro de registos de vistos concedidos por Aristides de Sousa Mendes.

28/09/2017

Vergílio Correia (1888-1944)

Realiza-se na Torre do Tombo [TT] um encontro de especialistas:  «jornada de conferências Vergílio Correia (1888-1944): Um percurso ímpar na história, na cultura e nas artes».
Vergílio Correia, um dos arqueólogos que descobriu a cidade romana de Conímbriga, foi professor em Coimbra e deixou mais de 40 livros publicados e dezenas de artigos em jornais e revistas de que foi fundador, director ou simplesmente colaborador, como a Águia, a Terra Portuguesa, Arte e Arqueologia e o Diário de Coimbra.
Vergílio Correia: Um olhar fotográfico, mostra esquissos, desenhos, diários de campo, cartas, livros, artigos e um núcleo de cerca de 30 fotografias feitas por este republicano convicto, reputado antropólogo e historiador de arte, entre 1929 e 1934, núcleo em que se sobressai a sua preocupação em documentar o trabalho de camponeses, operários e artesãos. O acervo exposto permite voltar a olhar para o seu percurso singular e resulta da combinação de dois arquivos relativos ao académico de Coimbra: o que pertence ao Centro de Estudos Vergílio Correia, em Condeixa-a-Nova, em que se destacam quase mil negativos em vidro que até há bem pouco tempo estavam nas mãos da família e que estão hoje a ser estudados por Miguel Pessoa e Lino Rodrigo; e o que a TT comprou na primeira metade da década de 2000, que foi recentemente disponibilizado ao público e cujos fundos a investigadora Vera Mariz e o historiador de arte Vítor Serrão começaram a explorar há pouco mais de um ano.
Nascido na Régua em 1888, Vergílio Correia forma-se em Direito por pressão familiar e chega a trabalhar um ano como notário, profissão que abandona de imediato para consagrar a vida ao conhecimento, contribuindo para a formação de gerações enquanto professor na Universidade de Coimbra e dedicando-se à escrita em áreas menosprezadas por muitos (como as artes decorativas e as artes populares), e a inventários e museus (foi conservador de Arte Antiga e director do Machado de Castro). Intelectual sem actividade política, mas acérrimo defensor dos valores republicanos da liberdade e do acesso à educação e à cultura, maçon e agnóstico, chegou a estar preso no Aljube oito dias quando, no começo da década de 1930, foi acusado de apoiar o comandante Aragão e Melo, opositor à ditadura, e de dar abrigo a um refugiado político. À data da prisão já era director do Museu Machado de Castro e um académico respeitado.
Sem deixar de escrever sobre o tear ou o carro de bois, na história de arte deixou obra em temáticas diversas, da tumulária gótica à talha barroca, passando pela escultura e a pintura do Renascimento, a acrescentar aos dois volumes do Inventário Artístico de Portugal a que esteve ligado e em que a fotografia desempenha um papel primordial (escreve o grosso do tomo dedicado ao Distrito de Coimbra, mas é o seu colaborador directo, António Nogueira Gonçalves, quem escreve o da Cidade de Coimbra). Editados pela Academia Nacional de Belas Artes, no âmbito de um programa de levantamento de todo o território que começa a ser desenhado em 1938, os volumes do Inventário têm em Vergílio Correia um dos primeiros autores. O seu trabalho é o resultado de campanhas concretizadas com notável dedicação por um homem de uma cultura superior que dominava, de modo invulgar, a História da Arte, a Arqueologia ou a Etnografia, sem esquecer a Fotografia. E para o provar basta constatar, acrescenta, como em apenas um trimestre de 1939, Correia e o irmão, seu colaborador, fazem 900 registos de monumentos e obras de interesse arqueológico, artístico ou histórico, percorrendo 1500 quilómetros.
Quando morreu, aos 55 anos, na sequência de uma queda do eléctrico, em Coimbra, tinha o ano todo planeado, incluindo uma viagem a Itália. Estava empenhado em dar continuidade ao Inventário Artístico de Portugal e, muito provavelmente, ainda não desistira de escrever uma grande monografia sobre Conímbriga. Não é por acaso que o escritor Miguel Torga, no seu Diário, lhe chama «Vergílio dos Cacos».
Professor Vergílio Correia
Vergílio Correia (Peso da Régua, 19 de Outubro de 1888 – Coimbra, 3 de Junho de 1944).

26/09/2017

Será Pedro Ataíde o navegador Cristóvão Colombo?

Cristóvão Colombo transformou-se num homem com mil caras. Já foi um tecelão genovês, um bastardo português, grego ou espanhol, catalão ou galego e muitos outros estrangeiros num só homem. A confusão é imensa e o próprio Cristóvão não ajudou. Ele que nunca quis que se falasse nas suas origens e que nunca assinou o seu nome em nenhum documento.
Fernando Branco mergulhou numa história com séculos que é um dos mais intrigantes mistérios da época dos Descobrimentos. Em 2012 escreveu um livro com o título Cristóvão Colón, Nobre Português. O investigador defende que o navegador foi um corsário português chamado Pedro Ataíde, apresentando mais de meia centena de pontos comuns entre os dois. Actualmente, espera apenas uma autorização para abrir os túmulos da família dos Ataídes, em Castanheira do Ribatejo (Vila Franca de Xira). As análises ao ADN, que serão da responsabilidade da antropóloga forense Eugénia Cunha, da Universidade de Coimbra, podem provar que estava correcto ou desmenti-lo. Desde há muito tempo que historiadores e investigadores discutem sobre as origens do navegador que descobriu as Américas. Até hoje, não foi encontrada nenhuma prova ou documento que não deixe, pelo menos, uma pequena margem para dúvidas.
Na biografia Historia del almirante Don Cristóbal Colón escrita pelo seu filho Fernando (ou Hernando), esconde-se a sua origem. O filho de Colombo justifica que o pai não queria que se soubesse onde nasceu. O mais importante seriam os seus feitos na História. O espaço em branco imposto pelo próprio Cristóvão Colombo acabou por ser preenchido com a narrativa mais popular de que será italiano, mais especificamente um genovês nascido em 1451. Mas a versão que prevaleceu está longe de ser consensual. Fernando Branco considera que esse Cristóvão Colombo genovês [Cristoforo Colombo] era um tecelão, sempre foi um tecelão e não pode, de maneira nenhuma, ser o almirante porque se conhecem as histórias de ambos.
Mas se não era genovês, era o quê?
Mascarenhas Barreto defende que Cristóvão Colombo foi um filho bastardo de D. Fernando, irmão de D. Afonso V. Mas, considera Fernando Branco, não há documento nenhum que prove que o D. Fernando tenha tido um bastardo.
Existem outras teorias. A hipótese de um luso-americano, Manuel Rosa, defende que houve um imperador da Polónia ou Lituânia que a história diz que morreu numa batalha contra os turcos mas que ele diz que, afinal, não morreu, mas que veio para Portugal e teve um filho chamado Segismundo que terá nascido em Cuba, no Alentejo. De acordo com esta teoria este filho seria Cristóvão Colombo.
Existe também a teoria dos irmãos Mattos e Silva que dizem que era mais um filho bastardo de uma irmã de D. Afonso V. Ou a versão do livro de Manuel Luciano da Silva e da sua mulher, Sílvia Jorge da Silva, que coloca o navegador a nascer em Cuba, no Alentejo, e que inspirou o filme de Manoel de Oliveira: Cristóvão Colombo, o enigma.
Fernando Branco quando iniciou a investigação começou por definir quais eram as coisas-base que essa personagem, se fosse português, tinha de ter. E há, à partida, uma coisa que é muito importante. Cristóvão Colombo teve dois irmãos. Assim, quando pensamos num Cristóvão Colombo português, temos de arranjar, pelo menos, três pessoas. Além dos irmãos é também preciso encontrar alguém que tem uma história de mar significativa. Tem ainda de ser uma pessoa ligada à nobreza. As principais famílias de nobreza estão todas representadas no tecto do palácio de Sintra, onde estão todos os brasões daquela altura. Um destes brasões há-de estar ligado ao Cristóvão Colombo. Tem de ser solteiro ou viúvo em 1479 porque é o ano em que casa com a sua esposa portuguesa. E com estas pistas, Fernando Branco procurou um “suspeito”. Há um texto escrito por um historiador dos reis católicos, um professor catedrático em Salamanca, que diz claramente num livro que quem descobriu a América foi um indivíduo chamado Pedro Colón. Eis o Pedro. A referência à existência de um Pedro Colón é feita por mais historiadores, de Gaspar Frutuoso a Diogo do Couto (que escreveu com João de Barros as Décadas da Ásia). Procurando Pedro Colón, só encontrou um documento que o refere. É um corsário que aparece numa folha de pagamentos do D. Afonso V. Existem crónicas que dão Pedro Colón como morto numa violenta batalha nas águas do mar, a sul de Portugal, em Agosto de 1476, e que ficou conhecida como Batalha de S. Vicente. Mas Fernando Branco acredita que o tal corsário não morreu ali, que se salvou a nado. Rui de Pina (cronista que descreveu esta batalha), por alguma razão, ou se enganou ou mentiu, mas é muito estranho que no preciso instante em que desaparece um Pedro Colón nasce um Cristóvão Colombo.
Fernando Branco considera que o livro que escreveu foi sobre a vida deste Pedro Ataíde. Era um indivíduo da alta nobreza, descendente de almirantes portugueses. Afirma ter encontrado sessenta indícios comuns entre a vida deste Pedro Ataíde e a vida do Cristóvão Colombo. Por exemplo: O Cristóvão Colombo, quando regressa da América da primeira viagem, pára na ilha de Santa Maria, nos Açores, onde estava um indivíduo que o conhecia muito bem e que se chamava João da Castanheira. Colombo escreve esta informação no seu diário. Como é que o conhecia? Ora, o João da Castanheira era o senhor João da povoação da Castanheira [Castanheira do Ribatejo}, que é a terra dos Ataídes.
Fernando Branco tem mais argumentos para sustentar a sua hipótese. Mas, tal como muito outros historiadores, não tem qualquer documento que sirva de prova. Faltam documentos e por isso é preciso juntar peças de um puzzle construído com crónicas escritas há séculos, cartas supostamente escritas pelo navegador ou a ele dirigidas e muita imaginação. Em Portugal, confirma o investigador, não há um único documento que refira o Cristóvão Colombo.
Agora, o plano é usar o resultado de análises feitas a uma parte dos ossos que pertencerão a Cristóvão Colombo e que estarão guardados em Sevilha e comparar estes dados com exames ao ADN dos esqueletos que estão na Quinta de Santo António, em Castanheira do Ribatejo, onde a família dos Ataídes os enterrou. Do Pedro Ataíde não existe esqueleto, nem ADN, nem nada. Porque ele ou se transformou em Cristóvão Colombo e está em Sevilha ou ficou no fundo do mar durante a Batalha de S. Vicente. Mas podemos vir a ter o ADN de um tio dele por via masculina ou de um primo direito, uns Ataídes que estão no panteão dos Ataídes em Castanheira do Ribatejo.
Fernando Branco vai tentar obter o ADN de António Ataíde (que seria primo direito de Pedro) e de Alvaro Ataíde (tio) e comparar com o ADN de Fernando, filho do Cristóvão Colombo. O processo até conseguir a autorização da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) para abrir os túmulos daquela família é uma longa história. A abertura do túmulo é um processo extremamente complexo. Basicamente é uma caixa, mas tem em cima três tampas sobrepostas e cada uma pesa quase uma tonelada. Foi preciso fazer alterações ao projecto que obrigaram a um novo pedido dirigido à DGPC. Agora só falta esta derradeira autorização para abrir o túmulo, algo que Fernando Branco espera que aconteça no próximo mês de Outubro. Com o túmulo fechado com três pesadas tampas em cima, está tudo em aberto. Não sabemos o que lá está nem como está. A análise depende disso. Os corpos podem estar esqueletizados, mumificados, fragmentados, reduzidos a fragmentos. Pode haver vestígios de roupas e/ou objectos. Será determinado o número de indivíduos presentes no túmulo e feita a sua individualização. Posteriormente, cada um será analisado com vista ao conhecimento do sexo, idade à morte, origem geográfica e estatura. Também será efectuada a perscrutação de eventuais doenças.
No entanto, a análise pode ser inviabilizada pela fragmentação extrema dos ossos ou a má preservação dos restos humanos. Também pode ser possível recolher ossos masculinos e com um perfil idêntico ao esperado e não se conseguir extrair material genético. Neste caso não se conseguiria uma resposta para a hipótese formulada. Se o túmulo estiver vazio, também não.
Se reconstruir um passado já parece um exercício tão complexo, não adianta sequer tentar fazer qualquer previsão de futuro. A única coisa que parece certa é que a discussão sobre as origens de Cristóvão Colombo vai continuar e que este navegador liderou a frota conhecida pela descoberta da América, como nos contam os nossos livros de História. Ou será que também isso é discutível? No seu túmulo em Sevilha, Cristóvão Colombo terá deixado um pedido por escrito: “Espero não ser confundido eternamente”.
Retrato de Colombo e sua assinatura
Retrato de Cristóvão Colombo e a sua assinatura encriptada.
Convento de Santo António - Castanheira do Ribatejo
Convento de Santo António em Castanheira do Ribatejo
Capela em Castanheira do Ribatejo
Capela da família Ataíde em Castanheira do Ribatejo.

20/09/2017

Necrópole romana em Beja

 Na cidade de Beja foi descoberta, em junho de 2017, uma necrópole romana com 14 sepulturas e 3 sarcófagos,estas últimas estruturas funerárias raras nesta região, durante os trabalhos de requalificação da rua que dá acesso à antiga zona industrial da cidade. Estão datados de entre os séculos II e V da nossa era. Algumas ainda preservam esqueletos com uma estatura média de 1,60 metros, com excepção de um indivíduo com cerca de 1,80 metros e uma constituição óssea que indicia estar-se perante alguém que desenvolveu esforços físicos continuados.
No interior dos sarcófagos, revestidos a placas de mármore com três centímetros de espessura, não foi encontrado espólio da época romana. No interior das sepulturas e dos sarcófagos foram encontrados alguns esqueletos remexidos e revolvidos, presumindo-se que a vandalização da necrópole tenha ocorrido há muitos séculos. A sua disposição apresenta enterramentos com os pés virados para Este e cabeça para Oeste, e encontram-se distanciados entre si de forma regular. A necrópole tem dois núcleos diferenciados. Num dos sarcófagos pode observar-se um buraco aberto no tecto da estrutura por onde terá sido consumada a vandalização dos despojos humanos, pormenor que explicará a ausência de espólio que geralmente acompanhava a deposição dos corpos na altura do seu enterramento. Para além do impacto (aluimento de componentes estruturais) provocado, durante décadas, pelo tráfego de viaturas pesadas que utilizavam a rua da Lavoura por esta dar acesso a uma zona industrial de moagem de cereais, algumas das sepulturas e sarcófagos agora descobertos foram parcialmente destruídos pelas máquinas que intervieram no talude onde se encontra a necrópole romana. A área que poderá estar ocupada por enterramentos tem uma extensão calculada entre quatro a cinco hectares. Da sua existência naquele local já existem registos que remontam a 1892. O jornal O Bejense refere o aparecimento de um marco funerário no largo da Igreja de Ao Pé de Cruz, a cerca de 300 metros do local onde agora se descobriu a necrópole romana. Nesse local, foi identificada uma sepultura coberta interiormente com placas de mármore e apresentando uma métrica e aparelho construtivo muito semelhante a um dos sarcófagos agora descobertos. Em 2003, é a vez da arqueóloga Conceição Lopes identificar, na sua tese de doutoramento, a existência de uma necrópole romana junto à estação de caminhos-de-ferro de Beja, nas proximidades da Rua da Lavoura. Mais recentemente, em 2016, no decurso da requalificação de uma rua que termina no Largo da Estação, foram identificados alguns restos osteológicos dispersos.
Alguns elementos do espólio funerário recolhido nas escavações arqueológicas realizadas na necrópole romana da Rua da Lavoura em Beja. Todos estes materiais estão em fase de restauro e estudo.
Esqueleto num dos sarcófagos.
Moeda de Vespasiano (71-72 d.C.) - sepultura 5.
Boião em vidro (séculos I-II d.C.) - sepultura 20.
Copo em vidro (séculos I-II d.C.) - sepultura 20.
Skyphos em vidro (séculos I-II d.C.) - sepultura 20.
Lucerna (séculos I-II d.C.) - sepultura 20.
Pote de barro (séculos I-II d.C.) - sepultura 20.

A Ponte Romana de Vila Formosa

Situa-se sobre a Ribeira de Seda e constitui um excepcional exemplar de arquitectura civil alto-imperial.
Fazia parte da via romana que passava por Abelterium (Alter do Chão) que ligava Olisipo (Lisboa) à capital da província romana da Lusitânia - Augusta Emerita (Merida, Espanha).
A Ponte Romana de Vila Formosa caracteriza-se por possuir pegões rectangulares, decorados com molduras de características clássicas, que suportam seis arcos de abertura idêntica, sobre os quais assenta um tabuleiro de perfil horizontal com mais de 100 metros de comprimento e cerca de 7 metros de largura.
Entre os arcos existem cinco olhais que permitem o escoamento da água em situações de cheias mais violentas. Abaixo das guardas, a ponte apresenta uma cornija em todo o seu comprimento, elemento que a montante intercala com gárgulas.
A regularidade que apresenta, o aparelho de construção, em opus quadratum almofadado, e as marcas do fórfex, visíveis em todo o monumento [fórfex ou fórfice é um instrumento em forma de tesoura ou pinça e estas marcas são pequenas cavidades em lados opostos, que permitiam a entrada do fórfex para levantamento e colocação dos blocos usados nas pontes], fazem da Ponte Romana de Vila Formosa um excelente exemplar da arquitectura civil romana.
Ponte Romana de Vila Formosa.
A Ponte Romana de Vila Formosa - pormenor do opus quadratum almofadado.

A Ponte Romana de Vila Formosa - entre os arcos os olhais que permitem o escoamento da água.

A Ponte Romana de Vila Formosa - marcas do forfex.

28/07/2017

ADN de 14 esqueletos antigos de Portugal revelam dados sobre os primórdios da agricultura na Península Ibérica

Há cerca de 7500 anos, os primeiros agricultores estavam a chegar à Península Ibérica, vindos da Anatólia – e estes, por sua vez, tinham vindo do Crescente Fértil, onde a agricultura foi inventada há cerca de dez mil anos. Esses primeiros agricultores ibéricos foram-se misturando com os caçadores-recolectores que já cá viviam. Depois, há cerca de 4500 anos, chegavam à Europa do Norte e do centro cavaleiros nómadas vindos das estepes da Europa de Leste e da Ásia, onde se dedicavam à pastorícia. A questão era: será que os cavaleiros-pastores das estepes euro-asiáticas também vieram para a Península Ibérica e se reproduziram com as populações que aí se encontravam – por exemplo, com os primeiros agricultores, que se pensa terem vindo por mar, viajando junto à costa? 
Tenham viajado de barco ou a cavalo, tenham sido caçadores-recolectores, agricultores ou pastores, a história populacional da Península Ibérica e das suas migrações pode ser desvendada com a ajuda da genética. Foi isso que aconteceu agora com o trabalho do geneticista português Rui Martiniano desenvolvido durante o seu doutoramento no Trinity College de Dublin e que actualmente trabalha no Instituto Sanger, em Cambridge. O resultado é a reconstituição da história genética da Península Ibérica na transição para a Idade do Bronze, num artigo científico publicado esta quinta-feira na revista PLOS Genetics.
Esta viagem ao passado populacional do território onde fica agora Portugal foi possível porque, antes de mais, foi sequenciado o genoma de 14 esqueletos antigos. Estes esqueletos, de oito sítios arqueológicos (da região de Lisboa e Vale do Tejo, do Alentejo e Algarve), datam desde o Neolítico Médio (4200-3500 a.C.) até à Idade do Bronze Média (1740-1430 a.C.). Dito de outra forma, têm desde 6200 até 3430 anos. Para fazer comparações, a equipa usou ainda dados publicados sobre genomas antigos de humanos da Eurásia (incluindo amostras de Espanha), com idades que iam desde os 27 mil até aos 2000 anos. E, ainda, dados públicos do genoma de quase duas mil pessoas actuais de todo o mundo.
O ADN dos 14 esqueletos foi descodificado no Trinity College de Dublin. Foi possível obter genomas completos de sete amostras. Isto significa que sete amostras tiveram cerca de 100% do seu genoma sequenciado pelo menos uma vez. São apresentados, pela primeira vez, genomas completos de amostras pré-históricas ‘portuguesas’, sendo que os esqueletos mais antigos sequenciados têm à volta de seis mil anos. 
Viajemos agora até ao final do Neolítico e o início da Idade do Bronze, que na Península Ibérica foi há cerca de 4000 anos. Nessa altura, a Europa do Norte e do centro já estava a receber uma migração maciça de pessoas das regiões das estepes da Europa de Leste e da Ásia. Por essa altura também, já estava a ser domesticado o cavalo na Ásia Oriental e nos territórios que hoje fazem parte do Sul da Rússia. Quando os cavalos foram domesticados no final do período Neolítico, provavelmente eram criados como animais que forneciam alimento, uma vez que foram encontrados em locais arqueológicos ossos partidos, juntamente com vestígios de outros restos de comida. Mas não deve ter demorado muito até os primeiros agricultores e pastores descobrirem que os cavalos podiam ser montados, carregados com bens para transportar e treinados para puxar carroças. É provável que os bovinos tenham sido utilizados antes dos cavalos para arar e também para a tracção, mas assim que o cavalo se estabeleceu como meio de transporte o modo de vida dos seres humanos foi alterado. Isto aconteceu, segundo parece, surpreendentemente tarde, durante o segundo milénio antes de Cristo e apenas um milénio antes no Sul da Rússia e na Ásia Oriental. O mundo estava aberto aos cavaleiros que podiam viajar para toda a parte e, com a ajuda dos desenvolvimentos posteriores nas técnicas de guerra, podiam conquistar novas terras para onde se deslocassem.
Ora o que conta o genoma dos 14 esqueletos antigos «portugueses», bem como a sua comparação com as outras amostras pré-histórias euro-asiáticas e modernas de todo o mundo, é precisamente que aqueles invasores provenientes das estepes ficaram-se mais pelo Norte e pelo centro da Europa, em vez de virem para a Península Ibérica. Estudos genéticos de outras equipas já tinham revelado, em 2015, a existência dessas grandes migrações das estepes para o Norte e centro da Europa. Essas pessoas que migraram contribuíram bastante o genoma das populações que viviam ali. Agora, o novo estudo mostra que, na Península Ibérica, essas migrações das estepes foram muito mais reduzidas. Apenas foi detetada uma mudança genética muito subtil durante a transição do Neolítico para a Idade do Bronze, em resultado de migrações ou do contacto com outros povos fora da Península Ibérica. Portanto, nesta história de migrações e invasões chegaram novas pessoas e os seus genes a algumas regiões – o que significa que houve sexo para que tivessem ocorrido trocas genéticas visíveis agora nas amostras de ADN analisadas, pelo menos em algumas. Mas as migrações populacionais também podem conter uma história de transmissão cultural, de tecnologias e conhecimento. Neste caso agora, a equipa sustenta que a presença dos invasores das estepes mais no Norte e centro da Europa e menos na Península Ibérica terá tido implicações na transmissão das línguas. Pensa-se que estas migrações da Idade do Bronze espalharam as línguas indo-europeias por toda a Europa, de que são exemplos o inglês, alemão, espanhol, português ou o mirandês. Tendo em conta que essas migrações foram reduzidas na Península Ibérica, este fraco fluxo populacional poderá explicar a permanência de línguas não indo-europeias nesta região, como o euskera no País Basco. Como sabemos, as línguas indo-europeias acabaram por se disseminar pelo mundo, mas o euskera sobreviveu até hoje na fronteira entre Espanha e França como uma língua pré-indo-europeia. Tem sido sugerido que as línguas indo-europeias se espalharam através de migrações pela Europa a partir da região central das estepes, um modelo que encaixa nestes resultados.
De todo este manancial genético, a equipa também extraiu informações sobre a evolução da estatura das populações humanas. Para isso, regressemos aos primeiros agricultores do Neolítico. Este ano, uma equipa liderada por cientistas do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), da Universidade do Porto, e da Universidade de Huddersfield, avançou com um artigo sobre a rota «marítima» seguida pelos agricultores do Neolítico até à Península Ibérica. Em diversas bases de dados genéticas procurou marcas nos nossos genes (que continuam presentes) da chegada à Península Ibérica de populações vindas do Médio Oriente. E concluiu que um pequeno grupo veio do Médio Oriente e chegou primeiro à Península Itálica, onde se misturou com as populações locais. Depois, viajou pela costa, até chegar à Península Ibérica há cerca de 7500 anos, onde voltou a misturar-se com as populações que aí viviam e iniciar a substituição da cultura dominante dos caçadores-recolectores pela agricultura e a domesticação de animais. Baseando-se em achados de cerâmica, o arqueólogo português João Zilhão, também já tinha defendido a importância do Mediterrâneo para a entrada do Neolítico na Península Ibérica e que a Península Itálica teria servido de interposto. Essa rota de expansão da agricultura foi assim diferente da que seguiu por terra para o resto da Europa, onde há cerca de quatro mil anos já estava disseminada. Pela genética, pôde então ver-se que a revolução da agricultura no Neolítico na Península Ibérica foi iniciada com a chegada de gente nova e dos seus genes. Houve uma migração pronunciada, que veio da Anatólia. Não foi só uma transmissão cultural: não foram os caçadores-recolectores a adoptar a agricultura.

Acontece que os primeiros agricultores da Anatólia tinham uma predisposição genética para serem mais baixos do que os caçadores-recolectores, que existiam na Europa. Por outro lado, os cavaleiros das estepes euro-asiáticas da Idade do Bronze tinham uma predisposição para serem mais altos. As populações de hoje em dia na Europa têm alturas marcadamente diferentes. Os portugueses, espanhóis ou italianos – as populações do Sul europeu – tendem a ser mais baixas. As populações do Norte, especialmente os holandeses e alemães, tendem a ser muito altas. Isto depende de factores ambientais, como a alimentação, mas também factores genéticos. O estudo diz que as migrações do Neolítico provenientes da Anatólia são responsáveis por uma estatura mais baixa. Note-se que as populações do Sul europeu têm mais ancestralidade do Neolítico do que as populações do Norte da Europa. Este trabalho também confirma os resultados da equipa de Iain Mathieson, da Faculdade de Medicina de Harvard, na revista Nature em 2015, como conta o investigador português: «As populações da estepe durante a Idade do Bronze tiveram um papel fundamental no aumento da estatura aquando da sua expansão para a Europa.»
E é assim que uma parte da história dos movimentos migratórios na Europa, dos primórdios da agricultura, da expansão de línguas e da estatura das populações ficou agora um pouco mais esclarecida, graças ao contributo do ADN de 14 esqueletos antigos de Portugal.
Enterramentos sítio Arqueológico Torre Velha 3
Enterramentos no sítio arqueológico Torre Velha 3 (Serpa).

Vista geral do sítio arqueológico Torre Velha 3
Vista geral do sítio arqueológico Torre Velha 3 (Serpa).
Sítios arqueológicos de onde veio o ADN humano antigo
Sítios arqueológicos de onde veio o ADN humano antigo.

Migração da Anatólia para a Península Ibérica Neolítico
Migração da Anatólia para a Península Ibérica.

13/06/2017

Balsa - cidade romana junto à ria Formosa arrasada

Um holandês comprou, por 1,2 milhões de euros, uma quinta onde antes estavam os subúrbios da antiga cidade de Balsa. Arrasou tudo e a obra acabou embargada. O problema é que tarda a protecção - e um estudo aprofundado - da antiga urbe.
Para nos percebermos da importância da cidade de Balsa basta referir que só no Museu Nacional de Arqueologia existem mais de 8 mil peças registadas de Balsa. As entidades nacionais e locais responsáveis pela cultura devem usar todos os meios legais para tentar preservar o que resta deste património histórico. Não devem esquecer que se trata de um local de enorme interesse arqueológico.
Vamos salvar Balsa
Vejam o vídeo  https://www.facebook.com/portugal.romano/videos/722178084598262/
Reconstituição da cidade romana de Balsa
Reconstituição da cidade romana de Balsa.

Planta da cidade romana de Balsa
Planta da cidade romana de Balsa.
estátua de Vénus encontrada em Balsa
Estatueta de Vénus, século II d.C. (mármore branco).
jarro de vidro encontrado em balsa
Jarro de vidro, século I d.C.
lucerna «tipo rã» encontrada em Balsa
Lucerna do «tipo rã», séculos III d.C. - IV d.C. (cerâmica).

09/06/2017

Colombo era genovês, português ou catalão? Novas investigações para tentar esclarecer esta questão.

A origem de Cristóvão Colombo, uma das figuras mais misteriosas dos Descobrimentos, continua por esclarecer.
Está a decorrer um projeto da Universidade de Coimbra e do Instituto Superior Técnico para analisar o ADN extraído das ossadas de António Ataíde e do seu pai Álvaro Ataíde, dois homens que viveram nos séculos XV e XVI e que são familiares do corsário Pedro Ataíde, fidalgo que teria adotado o nome de Cristóvão Colon
Luís Filipe F. R. Thomaz publicou um artigo intitulado «Cristóvão Colón: português, natural de Cuba,
agente secreto de D. João II?», na revista anais de história de além‑mar (XVI-2015, pp. 483-542).  No resumo deste artigo, que defende a hipótese genovesa da origem do navegador, podemos ler: «Recentemente tem sido muito propalada a ideia de que Cristóvão Colombo teria sido português, natural da vila de Cuba, e agente secreto de D. João II, aduzindo como prova sobretudo a toponímia das terras que descobriu. Na realidade, os topónimos que lhe têm sido atribuídos ou não são da sua autoria ou se justificam por razões que as fontes coevas nos explicam. Tampouco há razão para preferir o apelido Colón a Colombo, visto a documentação provar claramente que, sucessivamente, usou ambos. Quanto aos serviços a D. João II, prestou‑lhe o pior que se poderia imaginar: desviar para o Atlântico, onde entravam facilmente em choque com os interesses portugueses as atenções de uma Espanha unificada voltada para o interior da Península, para o Magrebe e para o Mediterrâneo.» Esta tese foi rebatida por Fernando Branco, no artigo publicado no Expresso «Discussão do artigo 'Cristóvão Colón: português, natural de Cuba, agente secreto de D. João II?' de Luís Filipe F. R. Thomaz» (03/06/2017).
Muitos outros artigos e livros têm sido publicados sobre esta polémica.
Um mistério da História que se encontra por desvendar, mas que pode brevemente incluir novos dados com as conclusões do projeto que está em curso na Universidade de Coimbra.
Sebastiano del Piombo
Provável retrato de Colombo por Sebastiano del Piombo (1519).

«O primeiro da nossa espécie» - descoberta de fósseis de Homo Sapiens datados entre 300 e 350 mil anos

Fósseis descobertos em Jebel Irhoud, em Marrocos, estão a reescrever a história sobre o início da nossa espécie revelando uma nova primeira fase da evolução do Homo sapiens. A descoberta de ossos e ferramentas de pedra que terão entre 300 mil e 350 mil anos fez recuar cem mil anos o ponto de partida do calendário do homem moderno. É a mais antiga «raiz da nossa espécie» alguma vez descoberta em África e em qualquer parte do mundo.
«O primeiro da nossa espécie» é o título do comunicado do Instituto Max Planck para Antropologia Evolutiva, na Alemanha, sobre a descoberta dos mais antigos fósseis de Homo sapiens, em Jebel Irhoud, Marrocos, feita por investigadores desta instituição. Na verdade, é um novo primeiro da nossa espécie. Até agora, esse lugar na história evolutiva era ocupado por uma população que viveu na África Oriental há cerca de 200 mil anos. O estudo publicado esta quinta-feira na revista Nature, além de esclarecer o nosso passado, reescreve esta história.
Julgava-se que o berço do homem moderno estava na África Oriental há 200 mil anos, mas os novos dados revelam que o Homo sapiens se espalhou por todo continente africano há cerca de 300 mil anos. Muito antes de uma dispersão do Homo sapiens para fora de África, houve uma dispersão em África.
Os novos dados não significam que existe um novo berço do homem, significam, mais precisamente, vários berços dispersos pelo continente. E se até agora existiu um consenso sobre as origens africanas da nossa espécie que levou alguns especialistas a concluir que o Jardim do Éden estava situado na África Oriental e subsariana, esta investigação defende que se existe um Jardim do Éden é do tamanho de África inteira.
A reviravolta na história da evolução humana aconteceu em Marrocos, num sítio arqueológico chamado Jebel Irhoud (perto de Sidi Moktar, a cerca de 100 quilómetros de Marraquexe), que é conhecido desde os anos 60. Ali, onde há muito, muito tempo existiu uma gruta, foram encontrados fósseis humanos e animais (gazelas e zebras) e também vários artefactos da chamada «Idade Média da Pedra» africana.
Crânio quase. completo encontrado em Jebel Irhoud 

A forma arredondada do crânio revela traços arcaicos deste Homo Sapiens

Maxilar encontrado em Jebel Irhoud

Artefactos da chamada «Idade Média da Pedra» africana

Local da escavação em Jebel Irhoud (Marrocos)

24/05/2017

Graecopithecus freybergi: dois fósseis problematizam a origem da linhagem humana em África

Fósseis encontrados na Grécia e na Bulgária de uma criatura parecida com um símio que viveu há 7,2 milhões de anos podem ter alterado de forma fundamental a nossa compreensão sobre a origem humana, lançando dúvidas sobre o facto de a linhagem evolutiva que conduziu até nós ter surgido em África. Segundo uma equipa internacional de cientistas, a criatura, com o nome científico Graecopithecus freybergi e de que se tem apenas uma mandíbula inferior e um dente isolado, pode ser o membro mais antigo conhecido da linhagem humana iniciada depois de ter ocorrido a separação evolutiva da linhagem que levou aos chimpanzés, os nossos parentes mais próximos.
A mandíbula, que tem dentes, foi desenterrada em 1944, perto de Atenas. E o dente isolado, um pré-molar, foi encontrado no Sul da Bulgária, em 2009. Os investigadores examinaram os ossos com tecnologias sofisticadas, incluindo tomografia computorizada, e determinaram a sua idade através da datação das rochas sedimentares onde os fósseis foram encontrados. E descobriram, segundo o trabalho que foi publicado em dois artigos na revista Plos One, que o desenvolvimento da raiz dos dentes tinha características humanas que não se observam nos chimpanzés e nos seus antepassados, o que coloca o Graecopithecus dentro da linhagem humana, conhecida como hominídeos. Até agora, o hominídeo mais antigo conhecido era o Sahelanthropus, que viveu entre há seis e sete milhões de anos no Chade. Há muito tempo que o consenso científico aponta para que os hominídeos tenham tido origem em África. Tendo em conta que o Graecopithecus é dos Balcãs, a região Leste do Mediterrâneo pode ter assim dado origem à linhagem humana, diz a equipa de investigadores, coordenada por Madelaine Böhme (da Universidade de Tubinga, na Alemanha) e Nikolai Spassov (da Academia Búlgara de Ciências). A descoberta de forma alguma põe em causa que a nossa espécie, o Homo sapiens, apareceu primeiro em África, há cerca de 200 mil anos. e depois migrou para outras partes do mundo.
Graecopithecus freybergi
A mandíbula do Graecopithecus freybergi.Wolfgang Gerber/Universidade de Tubinga.
Graecopithecus freybergi
O dente pré-molar do Graecopithecus freybergi.Wolfgang Gerber/Universidade de Tubinga.

10/05/2017

Sepulturas dos primeiros colonos do Neolítico na Península Ibérica

Os restos de seis pessoas, pertencentes aos primeiros colonos do período Neolítico, foram encontrados juntamente com objectos domésticos e animais no depósito arqueológico da Gruta Bonica, em Espanha.
Foram identificados 98 ossos humanos, que correspondem a um mínimo de seis indivíduos de diferentes idades, desde os três aos 35 anos, e que incluem pelo menos duas mulheres. A partir de um estudo do ADN do dente de uma destas mulheres do Neolítico, os investigadores confirmaram dados que já conheciam, como a intolerância destas populações à lactose e terem a pele clara, os olhos castanhos e o cabelo escuro. Os primeiros agricultores da Península Ibérica – entre os quais se encontram os restos descobertos – chegaram à região há 7400 anos. A singularidade desta descoberta é que foram encontrados restos humanos com objectos domésticos, permitindo relacionar a cultura material com algumas práticas agrícolas desta população. Junto aos restos humanos, encontrados em Vallirana, na região de Barcelona, apareceram também vestígios de animais, principalmente cabras e ovelhas, e ornamentos, assim como ferramentas de pedra de sílex e cristal de quartzo. E, ainda, fragmentos de cerâmica dos mais antigos documentados na Península Ibérica. Esta descoberta fornece novos dados sobre como eram os rituais de enterramento dos cadáveres e trata-se da primeira prova de inumações colectivas. Foi possível observar que as práticas funerárias são muito heterogéneas, ainda que seja frequente encontrar restos desarticulados junto a objectos domésticos, possivelmente porque os corpos foram depositados em covas sem enterramento ou foram removidos.
Arqueologia Neolítico
Trabalhos de escavação arqueológica na Gruta Bonica.

Balsa - vestígios romanos ameaçados por projeto de agricultura intensiva

A Zona Especial de Protecção (ZEP) da cidade romana de Balsa, em Tavira, vai ser alargada para uma área quase quatro vezes superior à existente. Ao mesmo tempo, é pedida a revisão da classificação para Sítio de Interesse Público. Esta medida, destinada a preservar a estação arqueológica, surge na sequência da polémica desencadeada há cerca de dois anos, quando a empresa Luz Export pretendeu desenvolver um projecto agrícola, com estufas implantadas em cima da antiga cidade romana.
Balsa foi uma importante cidade romana — talvez a mais importante do país —, que existiu na freguesia de Luz (Tavira), nos terrenos litorais hoje designados por Torre d’Aires, Antas e Arroio. Foi descoberta no século XIX mas está em larga medida por estudar. Mas sabe-se que por lá subsistem vestígios de necrópoles, uma parte habitacional, edifícios com mosaicos, balneários, tanques de salga de peixe, cerâmica e moedas.
A empresa, pertencente a um grupo espanhol que desenvolve projectos agrícolas em Huelva, acatou a sugestão feita pela DRA para que fosse feito um levantamento georeferenciado da estação arqueológica, destinado a avaliar a amplitude e importância histórica do local. O custo da investigação, que ascende a 40 mil euros, foi assumido pelos promotores agrícolas. Agora, a Direcção-Geral do Património Cultural, com base nos novos elementos recolhidos sobre a antiga cidade romana, abriu o procedimento para que seja alargada a ZEP que tinha sido delimitada em 2011, propondo simultaneamente a revisão da categoria para Sítio de Interesse Público.
Busto de senhora romana Museu de Évora
Busto, descoberto na área que correspondeu à cidade romana de Balsa, com o retrato de uma senhora com um penteado característico usado pela imperatriz Faustina Maior, esposa de Antonino Pio, datado no segundo terço do século II d.C.

05/05/2017

Descobertos documentos que estavam encondidos na Sé Nova desde 1759

Os embrulhos descobertos num altar da Sé Nova de Coimbra durante os trabalhos de restauro realizados em 2016 contêm documentos que podem acrescentar novos capítulos à história dos Jesuítas em Portugal. No interior do altar da Coroação de Nossa Senhora, do lado esquerdo do monumento, foram encontrados dois códices, um conjunto de cartas e uma bolsa com embrulhos de pano identificados com o nome do António Vasconcelos, o padre que os escondeu.
As cartas, algumas da autoria de Inácio de Loyola, Francisco Xavier ou João de Polanco, são dos tempos fundacionais da Companhia de Jesus. Nos embrulhos constavam documentos que vão desde 1542, pouco depois da criação da Companhia de Jesus, até 1759, na véspera da sua expulsão de Portugal, num ano em que o Colégio de Jesus, adjacente ao edifício da Sé Nova, foi cercado. Os documentos vêm trazer mais informações sobre este período de perseguição pombalina, uma vez que os mais recentes datam de Agosto e Setembro de 1759, quando a ordem de expulsão foi decretada a 3 de Setembro.
O actual pároco da Sé Nova, Sertório Martins, conta que foi uma descoberta inesperada, uma vez que já tinham sido restaurados outros altares e retábulos sem que tivesse sido feito qualquer achado. Mas há cerca de um ano, ao introduzir o aspirador naquela coluna para fazer a limpeza, sentia-se um obstáculo. O «obstáculo» eram documentos históricos, alguns com 400 anos e entre os quais estavam também manuscritos da obra Clavis Prophetarum, do Padre António Vieira, em excelente estado de conservação.
António Vasconcelos escondeu ainda um códice ligado ao padre Francisco Soares Lusitano, com o nome Controvérsia Filosófica e Religiosa. Mas o conteúdo dos escritos não se resume a questões teológicas ou de fé. No códice exploram-se questões como o poder do papa, votos e juramentos, justiça e direito («a validade de contratos celebrados no calor da fúria»), sobre o aborto e homicídio ou sobre matrimónio («se os surdos-mudos de nascença podem contrair matrimónio válido»).
Entre os documentos estavam também manuscritos e epístolas do próprio António Vasconcelos, sobre o qual ainda pouco se sabe. Há correspondência pessoal e alegações de um processo matrimonial em que tomou a defesa de uma familiar. Mas o jesuíta deixou também no altar um caderno de valor precioso para a história das circunstâncias sociais e políticas do reino. Cousas notáveis sucedidas em Portugal desde o ano 1750 até ao ano… é o título de crónicas do quotidiano escritas pelo jesuíta. As reticências são indicador de que o texto permanecia inacabado quando foi escondido à pressa, antes de os Jesuítas serem retirados do colégio e exilados.
O acervo ainda está em processo de inventariação. As cartas ainda não foram todas examinadas”, pelo que ainda não é possível saber o que já foi publicado e o que nunca foi. Para que a correspondência circulasse efetivamente as cartas eram escritas em diversas cópias. No entanto, para pelo menos uma das cartas é autógrafa: a missiva de Inácio de Loyola ao mestre Simão Rodrigues datada de 1545, em que o fundador da companhia concede ao responsável jesuíta português autorização para ir a Roma.
É através do trabalho de António Trigueiros, investigador na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que ainda é possível seguir o rasto de António Vasconcelos, um nome que até agora estava no anonimato. António Trigueiros, que escreveu uma tese de doutoramento sobre os jesuítas portugueses no exílio no período pombalino e pós-pombalino, tem uma base de dados com os nomes dos 1104 expatriados e encontrou o padre entre os seus registos.
Nascido em 1727 num lugar que hoje pertence à freguesia do Juncal, concelho de Porto de Mós, António Vasconcelos estava na Companhia de Jesus desde 1742 e tinha 32 anos quando foi exilado para Itália. O primeiro registo nesse país é de 1760, no Colégio de Sezze, a Sul da capital. Morreu em Licenza, também na província de Roma, em 1801, onde estaria desde 1773, quando o Papa Clemente XVI decretou a extinção da Ordem dos Jesuítas. Mais informação sobre o religioso português poderá ser encontrada à medida que a investigação for avançando, através da análise da sua correspondência, guardada em arquivos entre Lisboa e Roma.
Os documentos escondidos por António Vasconcelos em 1759 deverão começar a ser digitalizados em Setembro e ficarão depois disponíveis no portal Cesareia, o catálogo coletivo das bibliotecas eclesiais portuguesas. A descoberta destes documentos permite contar a história não pela pena dos vencedores, mas pela pena dos vencidos.

No interior do altar da Coroação de Nossa Senhora, do lado esquerdo do monumento, foram encontrados dois códices, um conjunto de cartas e uma bolsa com embrulhos de pano identificados com o nome do padre António Vasconcelos.

Conjunto de cartas encontradas na Sé Nova.

Manuscritos da obra Clavis Prophetarum, do Padre António Vieira, em excelente estado de conservação.