26/02/2017

A polémica acerca da pintura Vista da Rua Nova dos Mercadores

Nos útimos dias historiadores têm debatido a autenticidade de pinturas sobre a Lisboa do Renascimento, uma delas – a que representa a Vista da Rua Nova dos Mercadores (c. 1570-1620?)e que no século XIX terá sido dividida em dois painéis – inédita em Portugal. Será uma fraude, assim como O Chafariz d’El-Rey (c.1570-1580?). Terá sido pintada no século XX “à maneira antiga” como defende João Alves Dias? Ou tudo isto não passa de uma “polémica vazia” “com pouco ou nenhum fundamento”, como diz o historiador de arte Vítor Serrão?
A polémica teve o seu início sob a forma de um ensaio do historiador Diogo Ramada Curto em torno de um livro publicado no final de 2015 – The Global City – On the Streets of Renaissance Lisbon da autoria de Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe – e de um artigo em que se recupera uma controvérsia com quase 20 anos e que diz respeito à datação d’O Chafariz d’El-Rey.
O que tem esta obra em comum com a vista da principal artéria comercial da Lisboa pré-terramoto? O que leva a que alguns historiadores falem delas como fazendo parte de um mesmo ciclo de representação da cidade e outros a dizer que nada têm a ver uma com a outra?
Já se sabe que a atribuição de datas, autores e filiações a obras de arte, mesmo quando o seu valor é essencialmente documental e não plástico (será este o caso), depende de muitos elementos, da análise material (pigmentos, dendocronologias, reflectografias e outros exames laboratoriais) ao estudo exaustivo nos arquivos, e está longe de ser uma ciência exacta liberta do factor interpretação, mas este parece ter tendência a tornar-se num estudo de caso português.
João Alves Dias, investigador da Universidade Nova que se tem dedicado ao Portugal do século XVI, considera que a Vista da Rua Nova dos Mercadores identificada como tal por Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe em 2009 entre o espólio do pintor pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), que a teria atribuído erradamente à escola do mestre espanhol Diego Velázquez (1599-1660), é uma “continuação” do Chafariz e, “porventura, do mesmo artista”.  O investigador defende até que há uma figura que parece sair do quadro que o historiador de arte Vítor Serrão encontrou num antiquário de Madrid em 1997 e que aterra no da Rua Nova. E depois detalha-se nos pormenores de indumentária de algumas das figuras do Chafariz, dizendo, por exemplo, que “não há conhecimento de que se tenha dado a Ordem de Santiago a um negro, muito menos no século XVI”.
Nada mais falso, de acordo com Vítor Serrão e Joaquim Caetano, também historiador de arte e conservador de pintura do MNAA. “O argumento do cavaleiro é muito fraco porque houve negros nobilitados em Portugal com ordens militares no séculos XVI e estão documentados. Basta pensar na embaixada do Congo”, diz Serrão, especializado em pintura portuguesa dos séculos XVI, XVII e XVIII e director do Instituto de História de Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, acrescentando que a roupa que as múltiplas figuras vestem é consistente com as que se usariam na Lisboa da última década do século XVI. Caetano, por seu lado, identifica um dos homens de origem africana que terão recebido precisamente a Ordem de Santiago – “chamava-se João de Sá Panasco e era o bobo de D. João III”, tendo-lhe sido concedida tal honraria entre 1550 e 1557.
Diogo Ramada Curto, académico que tem sobretudo como áreas de investigação o imperialismo e o colonialismo (coordenou obras como A Expansão Marítima Portuguesa, 1400-1800 e Estudos sobre a Globalização), não se atenta na análise da pintura – não é um historiador de arte, faz questão de sublinhar, e por isso apoia-se em documentos – e usa como principal argumento contra a teoria de Gschwend-Lowe a impossibilidade de Rossetti ter confundido a Vista da Rua Nova dos Mercadores com uma obra da escola de Velázquez. “É, de facto, difícil aceitar que a Inglaterra de meados do século XIX, mais concretamente os círculos do crítico de arte John Ruskin e dos pintores pré-rafaelitas ignorassem a obra de Velázquez. É tão difícil que parece um erro infantil cometido, hoje, por vários que se dedicam à história de arte. O historiador de arte Francis Haskell demonstrou como operavam em Inglaterra, precisamente em meados do século, os colecionadores de antigos mestres, bem como o seu grau de conhecimentos aprofundados. Sabe-se, também, que Ruskin considerava Velázquez um dos grandes mestres de sempre da pintura. E os próprios termos das cartas de Rossetti, que traduzi na íntegra, não confirmam a relação estabelecida por Annemarie Jordan entre o quadro que Rossetti comprou e que se caracterizava pela ‘grandeur of landscape’ e os quadros da Rua Nova.”
Joaquim Caetano não tem qualquer dificuldade em aceitar que Rossetti a colocasse sob influência do mestre espanhol “uma grande paisagem da Escola de Velázquez, com cerca de 120 figuras mas não do próprio Velázquez, o grande. Ele terá olhado para esta pintura e identificado, à partida, três elementos que associava imediatamente à Europa do Sul: pessoas vestidas de preto, negros e edifícios com colunas. Daí a dizer que é da escola de Velázquez vai um saltinho. "Em meados do século XIX, em Inglaterra, sabia-se ainda muito pouco sobre os mestres espanhóis. Rossetti ia atribuir esta pintura a quem? Zurbarán? É ainda mais diferente. Murillo? Mais improvável ainda. E é preciso ver que a expressão ‘Escola de Velázquez’ significava algo de muito diferente do que significa hoje”, acrescentando que, na época, se contavam pelos dedos de uma mão os livros com imagens de pintura espanhola a circular pela Europa.
“Rossetti interessava-se muito pelos mestres antigos, não só espanhóis, e tinha um bom olho, mas pode facilmente ter-se enganado porque Inglaterra só começou a interessar-se por eles por volta de 1850 e o conhecimento estava ainda a formar-se”, defende Annemarie Gschwend.
Originalmente comprada para a casa de Rossetti em Londres, em 1866, a Vista da Rua Nova dos Mercadores terá sido levada depois para Kelmscott Manor, em Oxfordshire, a mansão que o pintor dividia com o amigo e também artista William Morris na década de 1870, e de onde, segundo Gschwend, terá fugido à pressa. Motivo? Morris terá decidido que era altura de pôr um ponto final na relação entre Rossetti e a sua mulher, um dos modelos/musas de ambos: “Quando li sobre a saída de Rossetti de Kelmscott Manor imaginei-o sempre a correr, quando Morris, farto de que fosse amante da sua mulher, Jane, estava para chegar, deixando tudo para trás e criando uma espécie de cápsula do tempo”, diz a investigadora. A historiadora passou quase um ano e meio a traçar o rasto de Rossetti que o liga à Vista da Rua Nova e acabou por descobrir o antiquário londrino onde a terá comprado, George Love. "Esta obra está documentada como pertencendo a Rossetti desde a década de 1860. Eu só acredito na investigação histórica que é feita com base em documentos, em papéis, não naquela que é feita com palpites e intuições. Claro que há sempre que interpretar as fontes documentais e que isso pode levar a leituras diferentes, mas para isso elas têm de lá estar.”
Ramada Curto escreve, por seu lado, que não lhe parece correto que a questão da autenticidade dos quadros em causa nunca seja abordada no livro de Gschwend e Lowe e que as autoras decidam ignorar a controvérsia que rodeou O Chafariz no final dos anos 1990. “As duas pinturas têm sido propostas por vários estudiosos como estando relacionadas, até mesmo como fazendo parte de um ciclo de representação iconográfica sobre Lisboa”.
Gschwend e Lowe, que consideram que a Vista da Rua Nova será de um autor flamengo desconhecido e produzida algures entre 1570 e 1619, defendem que nada tem a ver com O Chafariz e garantem não estar interessadas em polémicas. Por que não são legítimas as dúvidas de Ramada Curto em relação ao facto de esta pintura poder não ser a que Rossetti comprou? Entre as fontes documentais que Gschwend cita para atestar a autenticidade da Vista da Rua Nova, que hoje continua em Kelmscott Manor, propriedade da Sociedade dos Antiquários de Londres, e da sua ligação ao pré-rafaelita está um artigo de Julia Dudkiewicz, publicado no British Art Journal em 2015, já depois de sair o livro The Global City – On the Streets of Renaissance Lisbon , em que a autora revela o testamento de May Morris, filha de William Morris e herdeira da casa senhorial que o pai dividiu com Rossetti. A ele está anexada uma lista de 220 objetos com descrições que englobam as suas proveniência e em que pode ler-se: “Dois quadros com cenas de uma cidade, parte das coisas de D.G.R..” “Que os quadros estejam em Kelmscott Manor e tenham pertencido à filha de Morris, como prova Dudkiewicz no seu artigo, nunca foi posto em causa. O que deve ser posto em causa é a sua compra, enquanto ‘grande paisagem’ da escola de Velázquez, por parte de Rossetti. Presumir que este confundia alhos com bugalhos e, por isso, poderia julgar que os quadros fossem da escola de Velázquez é um erro crasso”, insiste Ramada Curto.
Vítor Serrão confia no trabalho das comissárias e dos restantes autores do seu livro (investigadores como Hugo Miguel Crespo e Pedro Pinto), que descreve como “excelente e interdisciplinar”, tendo ainda o mérito de revelar uma pintura “com um valor iconográfico extraordinário”: "Não tenho dúvidas de que é do XVI e que, embora fraca e rudimentar do ponto de vista plástico, feita por alguém que muito provavelmente não é um pintor, vale como documento altamente revelador”, revelando-se uma “fotografia” cheia de detalhes da vida quotidiana, acrescenta o historiador.
O seu autor, uma espécie de urban sketcher de há 400 anos, contribui para a imagem de Lisboa como “capital excêntrica e exuberante de um império miscigenado, com gente dos quatro continentes”. Uma imagem, sublinha Serrão, que é contrária à tese de Ramada Curto, “muito crítica em relação a esta narrativa que enaltece Lisboa como centro de um mundo global”: “Diogo Ramada Curto é um historiador seriíssimo e a leitura que faz deste período é legítima, defensável. O que não é defensável é que não se reconheça o valor documental destas pinturas.” Além disso, conclui Serrão, dirigindo-se à teoria de Alves Dias de que são falsificações do século XX, “ninguém teria informação suficiente para fazer ‘à maneira de’ com este detalhe, simplesmente porque há aqui muita coisa nova, muita coisa que não se sabia sobre esta Lisboa”.
Têm opiniões diferentes em relação a estas obras, mas tanto Serrão como Ramada Curto sugerem agora mais análises materiais para tirar as teimas. “Seria bom que tanto a Rua Nova como O Chafariz voltassem ao laboratório”, diz o primeiro. “Também defendo que tais provas laboratoriais terão sempre de ser acompanhadas de uma interpretação que seja consistente do conteúdo e da forma de tais pinturas”, acrescenta o segundo, sugerindo outras obras com as quais podem ser comparadas.
Trata-se de "voltar" ao laboratório porque já foram ambas analisadas. O Chafariz nos anos 1990, antes de ser comprada pelo empresário Joe Berardo; a Vista da Rua Nova dos Mercadores antes de ser intensamente restaurada por Ruth Bubb, uma especialista de Oxford, e de ser exposta na Suíça, em 2010.
O director do Museu Nacional de Arte Antiga, António Filipe Pimentel, não afasta a possibilidade de novos estudos, mas diz que é preciso autorização dos proprietários (no caso da segunda, a Sociedade de Antiquários de Londres) e ponderar muito bem: "Temos de avaliar primeiro se podemos ir mais longe nas análises laboratoriais, se as obras permitem, se os novos exames são capazes de trazer informação relevante."
Pintura Rua Nova dos Mercadores
Vista da Rua Nova dos Mercadores (c. 1570-1620?).

Pintura Rua Nova dos Mercadores
Vista da Rua Nova dos Mercadores (c. 1570-1620?).
Pintura O Chafariz d’El-Rey
O Chafariz d’El-Rey (c. 1570-1580?).

24/02/2017

"A Cidade Global – Lisboa no Renascimento" no Museu Nacional de Arte Antiga

A exposição "A Cidade Global – Lisboa no Renascimento" no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), pode ser percorrida como uma rua agitada e ruidosa do século XVI, cheia de lojas, imaginando o rio ali ao pé, com o rinoceronte do rei a tomar banho.
De um lado e do outro porcelanas e animais exóticos, têxteis de alta qualidade, cofres de madeira e madrepérola, mapas e marfins exuberantes. Um centro comercial do século XVI onde podíamos levar para casa, se tivéssemos muito dinheiro, um papagaio ou um tucano do Brasil, marfins da Serra Leoa e livros de botânica. Na Rua Nova dos Mercadores, na Lisboa do Renascimento, havia 11 livrarias.
Montar esta exposição foi uma “operação complexa que envolveu 80 emprestadores portugueses e estrangeiros, entre eles instituições de grande prestígio como a Biblioteca de Leiden e os museus Britânico e do Prado. Divididas por seis núcleos, as 250 peças – pinturas, desenhos, mapas, livros, instrumentos de navegação, porcelanas, jóias, sedas preciosas, animais exóticos empalhados e até uma cruz processional feita com aquilo que à época se julgava ser um corno de unicórnio com eventuais propriedades mágicas – traçam o retrato de uma capital a que chegavam artigos vindos de todo o mundo.
Não existiam muitas capitais europeias do Renascimento onde pudéssemos comprar araras, macacos e civetas [africanas], onde houvesse dedais do Ceilão [actual Sri Lanka] para vender, onde a variedade de loiças da China e do Japão fosse tão grande como em Lisboa. A exposição teve como ponto de partida o livro The Global City – On the Streets of Renaissance Lisbon, da autoria de Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe que são as comissárias desta mostra.
Podemos observar a agora polémica pintura que o pintor Dante Gabriel Rossetti terá comprado em 1886, Vista da Rua Nova dos Mercadores, e O Chafariz, que já no final dos anos 1990 gerara controvérsia, e uma impressionante vista panorâmica de Lisboa (c.1570-1580) que pertence à Biblioteca de Leiden e que está agora a ser exposta pela segunda vez em Portugal. Reconhecem-se inúmeras ruas e monumentos, mas muita coisa mudou com o terramoto de 1755.
No núcleo dedicado a África são evidentes o cruzamento de culturas e os documentos que impressionam. Há uma carta escrita em Lisboa por um italiano, Filippo Sassetti, em 1578, em que é visível a diversidade étnica dos escravos da cidade. Este mercador de Florença descreve-os minuciosamente, falando das desvantagens e vantagens de cada um: aos brasileiros, por exemplo, acha-os teimosos e nos chineses reconhece uma certa sofisticação na hora de cozinhar.
Noutra vitrine, um saleiro do Benim testemunha a mistura de culturas e saberes que a exposição sublinha – tem um soldado vestido à europeia ladeado por duas figuras estranhíssimas.
Entre os módulos que mais atrairão os visitantes estará certamente o dedicado aos “animais globais” – aqueles que a Expansão portuguesa apresentou à Europa – e onde se pode ver um tatu e até um rinoceronte, a fazer lembrar o que Filipe II tinha e que era uma verdadeira atração.
A fechar a exposição, um núcleo curioso que pretende evocar aquele que seria o recheio típico de uma das casas abastadas da Rua Nova (ao nível térreo havia lojas, mas os andares superiores tinham apartamentos com rendas muito altas), a de Simão de Melo de Magalhães, capitão de Malaca.
Sedas, cofres, móveis, porcelanas e até uns brincos que podem ter pertencido à filha mais nova de D. Manuel I. As peças que aqui temos não são as do Simão de Melo, mas, de acordo com o inventário do recheio da sua casa, andarão muito perto. O inventário permite saber quanto custavam estes artigos de luxo e de onde vinham.
Da casa de Simão de Melo, capitão de Malaca, Lisboa parece mesmo uma cidade global. No entanto existem outras leituras. O historiador Diogo Ramada Curto, que tem dedicado boa parte dos seus estudos ao imperialismo e ao colonialismo, rejeita por completo esta visão de uma capital cosmopolita e miscigenada, que habitualmente se associa ao tempo de D. Manuel, afirmando que esta imagem resulta de uma “cartilha neo-luso-tropicalista e defende que é preciso debatê-la.
chifres de rinocerontes na lisboa do renascimento
No Renascimento os chifres de rinoceronte davam origem a produtos de luxo feitos no Sul da China e vendidos na Índia portuguesa de onde eram exportados para a cidade de Lisboa.

O Nascimento da Virgem (1520-1530)
À esquerda O Nascimento da Virgem (1520-1530), de Garcia Fernandes, e à direita Casamento de Santa Úrsula com o Príncipe Conan (1522-1525). Duas pinturas quinhentistas em que aparecem figuras de origem africana.

Saleiro de Benim quinhentista
Nesta vitrine salienta-se no centro um saleiro de Benim datado do século XVI. Mostra um soldado no centro ladeado por dois espíritos com asas de anjo.

Colóquios dos simples e dorgas he cousas medicinais da Índia
O livro de Garcia de Orta, Colóquios dos simples e drogas he cousas medicinais da Índia e assi dalgũas frutas achadas nella onde se tratam algũas cousas tocantes a medicina, pratica, e outras cousas boas pera saber, editado em Goa em 1563.

06/02/2017

Esqueleto de uma necrópole medieval em Estremoz e uma doença rara na Europa

Algures numa povoação alentejana, na Idade Média, um indivíduo teve uma infecção fúngica no pé esquerdo. Passados longos séculos, o seu esqueleto foi encontrado nessa povoação que hoje é a cidade de Estremoz e a infecção pode ter muito a dizer sobre aquela época. Duas investigadoras portuguesas analisaram o tal esqueleto e, em 2016, publicaram o trabalho na revista International Journal of Paleopathology.
Decorria o ano de 2003, quando numa escavação de acompanhamento de obras no parque de estacionamento do Rossio Marquês de Pombal, no centro histórico de Estremoz, Alto Alentejo, foram encontrados 115 esqueletos. Afinal, sabia-se que, em tempos, o local onde está agora o parque de estacionamento no centro da cidade tinha sido uma necrópole. Os esqueletos foram levados para o Laboratório de Antropologia Biológica, da Universidade de Évora, mas a falta de financiamento para o seu estudo ditou que ali permanecessem, durante anos, sem qualquer estudo. Até que, em 2014, Ana Curto terminou o mestrado em Biologia Humana e Evolução, na Universidade de Coimbra, e começou a trabalhar no laboratório da Universidade de Évora. Foi durante esse período que encontrou um esqueleto muito particular (e esquecido) no laboratório. A ela, juntou-se a antropóloga biológica Teresa Matos Fernandes, professora catedrática da Universidade de Évora.
Mas, afinal, que esqueleto é este? Entre o conjunto de 115 esqueletos de que fazia parte, era um dos 72 adultos. Deste conjunto, 32 eram homens, 22 mulheres e 18 estavam em mau estado de conservação e não foi possível identificar o seu sexo. Os restantes 43 eram esqueletos de recém-nascidos e de indivíduos com idades até aos 18 anos. Para perceber a altura em que estas pessoas viveram, dois esqueletos da mesma necrópole foram datados por radiocarbono. Concluiu-se que tinham vivido entre os séculos XIII e XV.
Todo este estudo permitiu também determinar que o esqueleto em análise era de um homem, com 1,59 metros de altura e uma idade entre os 23 e os 57 anos. No final, obtiveram-se também imagens a três dimensões do pé esquerdo, aquele que tinha a infecção. As lesões presentes neste enigmático pé esquerdo foram comparadas com outras patologias, como cancro nos ossos, lepra, anquilose congénita ou pé de Madura. Percebendo que se tratava desta última doença. O pé esquerdo apresentava marcas de alterações do osso do calcanhar e no cubóide (osso do tarso que se articula com o calcâneo), que provocaram anquiloses (paragem de movimento numa articulação), assim como uma artrose do calcanhar e do astrágalo (osso da articulação entre a tíbia e o osso do calcanhar).
O que é então esta doença? O pé de Madura é uma doença crónica que se instala nos ossos e afecta a sua formação, destruindo também a cartilagem das articulações. É provocada por actinobactérias (também conhecidas como actinomicetos e cujo aspecto tem parecenças com fungos) ou mesmo por fungos eumicetos. Teresa Matos Fernandes salienta que não é possível excluir outras doenças para as lesões observadas no esqueleto. A maduromicose é transmitida através da pele, tem um período de incubação de semanas, meses ou mesmo anos e pode levar à perda de função dos ossos. O pé de Madura está associado a climas tropicais, subtropicais ou a áreas equatoriais, ou seja, a latitudes associadas à chamada “cintura do micetoma”. Aliás, o próprio nome da doença deriva da cidade de Madura, na Índia, onde foi reportada, pela primeira vez, em meados do século XIX. Afecta sobretudo a população que anda descalça e trabalhadores agrícolas num clima húmido, com vegetação abundante e espinhosa. As zonas do corpo mais afectadas são as coxas, os joelhos, as pernas, as mãos, os braços ou os pés. É muito comum nos homens, por tradicionalmente desempenharem certo tipo de trabalhos na agricultura, e também porque pode haver uma inibição desta doença nas mulheres causada pela progesterona (uma hormona sexual feminina).
Os primeiros casos clínicos na Europa surgiram na Grécia e na Itália, durante os anos 20. Em Portugal, conheciam-se apenas três casos, um de 1963, outro de 1970 e ainda um de 1971. Os três indivíduos terão sido infectados por outras pessoas que estavam em viagem, talvez vindas de África. Entretanto, mais casos foram reportados em Portugal. Mais recentemente, por volta de 2013, foi conhecido o caso de um agricultor de 46 anos, da Madeira, onde terá sido infectado, e que tinha um inchaço no pé direito. A doença terá evoluído ao longo de oito anos. Conhece-se também um caso de 2015, de uma mulher cabo-verdiana, que terá contraído a doença no seu país de origem.
A nível arqueológico, em Portugal, apenas se conhece o esqueleto da necrópole de Estremoz. Em todo o mundo, há mais um caso arqueológico conhecido e publicado num artigo científico: é do México, que se situa na cintura do micetoma.
Quanto ao indivíduo do esqueleto de Estremoz, não se sabe concretamente quem era e como terá sido infectado. Possivelmente, o indivíduo estudado pode ter sido infectado fora de Portugal e também não se pode excluir a hipótese de que foi infectado fora do território europeu.
Na Idade Média, Estremoz era uma pequena localidade rural. Por isso, o homem poderá ter sido um agricultor. Nada, na sua sepultura e no tipo de prática funerária que lhe foi dada, indica que o indivíduo em questão se destacaria dos restantes, ou seja, deveria ter uma profissão e posição social correntes para a época e local. Pode colocar-se a hipótese de ter estado envolvido em trabalhos agrícolas, que estão associados a situações de risco por andarem descalços e estarem sujeitos a feridas que os fungos utilizariam como uma porta de entrada no organismo.
Se o pé de Madura é uma doença característica de climas tropicais, isso também pode querer dizer algo mais. É conhecida a existência de uma anomalia climática europeia entre 1000 a 1400, com clima mais quente, propício aos fungos deste tipo. Como Estremoz tinha um clima mais húmido na Idade Média, então confirmam as suspeitas de uma infecção fúngica.
Há ainda outras particularidades neste esqueleto. O seu crânio apresenta pequenos furos, de 31 a 21 milímetros de diâmetro, que as investigadoras relacionaram com uma forma de tratamento, a trepanação. Este podia ser um indício de medicina e estar relacionado com essa patologia [o pé de Madura]. Pode ter sido uma forma de ajudar a resolver esta doença. Mas isto ainda é só uma hipótese.
O esqueleto de Estremoz foi um dos vestígios arqueológicos que a revista norte-americana Forbes destacou no final de 2016. “Um estudo publicado este ano mostra que um homem viveu com micetoma, no século XIV, no Sudeste de Portugal”, lê-se na revista, que coloca o esqueleto de Estremoz no 10.º lugar entre dez esqueletos mais intrigantes de 2016. “No passado, antes da aplicação de bons antifúngicos e antibióticos, o micetoma seria de cura quase impossível, a não ser que fosse praticada a amputação do membro”, acrescenta a Forbes. Na lista, está ainda o esqueleto de um gladiador romano sem cabeça, encontrado em Inglaterra; o do cantor italiano do século XIX Gaspare Pacchierotti; ou ainda dentes de esqueletos de 20 mulheres no século VI, que permitem perceber como a peste justiniana as afectou.
Além do pé de Madura do esqueleto de Estremoz, na necrópole da cidade alentejana encontraram-se doenças em mais dois esqueletos – um tinha a síndrome de Klippel-Feil (anomalia congénita que se caracteriza pela ausência ou fusão de algumas vértebras) e o outro sofria de epifisiólise (doença óssea rara do fémur). Tudo isto num Alentejo mais húmido do que o actual.
Estremoz medieval
Um dos esqueletos no parque de estacionamento de Estremoz.
Estremoz medieval
Ossos do pé com as lesões provocadas pelo fungo.
Estremoz medieval
Desenho de campo do esqueleto que tinha o pé de Madura.
Estremoz medieval
Um dos 115 esqueletos da necrópole escavada em Estremoz.
Estremoz medieval
Crânio furado pelo método de trepanação.