24/11/2015

O mistério de The Little Street de Vermeer

Durante três séculos discutiu-se sobre a localização da rua retratada pelo pintor barroco Vermeer (1632-1675) em The Little Street. Agora, Frans Grijzenhout, professor de História de Arte na Universidade de Amsterdão, descobriu o sítio exacto das famosas casas de tijolo: é Tripe Gate ("Portão das Tripas"), os números 40 e 42 da Vlamingstraatn em Delft. Depois de várias teorias avançadas por especialistas ao longo dos anos, o professor recorreu ao arquivo municipal para investigar se, afinal, a rua seria fictícia ou real. E chegou a um documento intitulado Livro Fiscal da Dragagem dos Canais na Cidade de Delft, datado de 1667 (cerca de dez anos depois de o quadro ter sido pintado), que regista a taxa que os proprietários de casas no canal tinham de pagar para a dragagem. A consulta revelou que, na época, apenas as casas que hoje correspondem aos números 40 e 42 da Vlamingstraat podiam ser as retratadas no quadro.
“A resposta à pergunta sobre a localização de The Little Street de Vermeer tem uma grande importância quanto à forma como olhamos para este quadro e quanto à imagem que temos de Vermeer enquanto artista”, diz Pieter Roelofs, curador das obras do século dezassete do Rijksmuseum (Amsterdão), numa nota publicada no site da instituição, que detém a obra do pintor e que inaugurou na semana passada uma exposição a propósito da descoberta, patente até 13 de Março de 2016. Durante a investigação, Frans Grijzenhout consultou outras fontes, em particular o Google Maps. Para comemorar a descoberta, o Google Art Project fez uma compilação especial com algumas informações sobre a obra. Segundo Frans Grijzenhout, a pintura é “o mais antigo ‘retrato’ do exterior de uma casa vulgar na Arte do Norte da Europa”. As casas originais retratadas foram demolidas e, no seu lugar, foram reconstruídas outras no final do século XIX, mantendo-se a passagem visível entre as duas casas no quadro. A investigação revelou ainda que a casa da direita retratada pertencia a Ariaentgen Claes van der Minne, uma tia viúva do pintor, que sustentava os seus cinco filhos vendendo tripas. Por esse motivo, a passagem era conhecida como Penspoort ("Portão das Tripas"), nome que surpreendentemente é referido num documento de 1877. O Rijksmuseum avançava que a obra tinha sido pintada em 1658, mas Frans Grijzenhout acredita que a pintura foi feita mais tarde, entre 1660 e 1665. Até à descoberta revelada pela investigação, a teoria mais aceite entre os especialistas apontava que as casas retratadas podiam ser vistas a partir da pousada Mechelen, de que Vermeer era proprietário. Vermeer nasceu e viveu toda a sua vida em Delft. Pintou apenas 45 quadros, dos quais 35 sobreviveram até hoje. Entre as suas obras, é aclamado pelas pinturas Rapariga com Brinco de Pérola e A Leiteira.
Vermeer
A pintura de Vermeer, The Little Street, e os números 40 e 42 da Vlamingstraat.

17/11/2015

O projecto Scan Pyramids - sondar as pirâmides do Egipto

O projecto Scan Pyramids mostra câmaras térmicas de infravermelhos a colorir as pirâmides de Gizé do amarelo ao magenta (fúcsia) – e a seguir, imagens daquelas majestosas construções de pedra filmadas por drones. Promete descobertas fundamentais graças à combinação “excepcional” das ciências exactas e da egiptologia.
O objectivo: conseguir responder à pergunta que todos fazemos desde a mais tenra infância: “O mistério das pirâmides vai ser resolvido?”
Este ambicioso projecto, lançado há semanas, recorre a um método não invasivo e não destrutivo, à base de câmaras de infravermelhos, para cartografar, sem causar um único arranhão, o coração das pirâmides de Gizé – esses monumentos com mais de quatro milénios de idade.
As câmaras também já serviram, em inícios de Novembro, para sondar o túmulo de Tutankamon, em Luxor, tentando confirmar a credibilidade da teoria do arqueólogo britânico Nicholas Reeves, que pensa que a lendária rainha Nefertiti está lá sepultada, numa câmara secreta. Recorde-se que, em Agosto deste ano, Reeves anunciou ter encontrado indícios de que Nefertiti teria sido secretamente sepultada junto de Tutankamon.
Ao sondarem as pirâmides, os cientistas esperam detectar “a presença de corredores e câmaras desconhecidos” – e até vestígios de rampas que permitiriam elucidar o enigma da sua construção.
O ministro egípcio das Antiguidades, Mahmoud el-Damati, revelou os primeiros resultados do projecto Scan Pyramids, lançado a 25 de Outubro sob a direcção do seu ministério. Uma equipa de cientistas egípcios, franceses, canadianos e japoneses já conseguiu observar anomalias térmicas “impressionantes” no flanco leste da pirâmide de Quéops, perto do chão, bem como outras, menos flagrantes, a meio da fachada.
Alguns dos enormes blocos de pedra apresentam de facto temperaturas que se afastam até seis graus Celsius da temperatura dos blocos adjacentes. Isso traduz-se, nas imagens de câmara térmica, pelo aparecimento de cores quentes, vermelhas e amarelas, enquanto o resto do monumento funerário adquire uma cor entre azul e magenta, uma assinatura térmica mais fria.
As deviações de temperatura detectadas assinalam a presença de cavidades – ou pelo menos, de correntes de ar – e abrem o caminho a uma multiplicidade de interpretações, que deverão ser estudadas até ao termo do projecto, em finais de 2016.
Para testar as câmaras de infravermelhos, a missão Scan Pyramids começou por realizar medições, em inícios de Novembro, no túmulo de Tutankamon. E de facto, as diferenças de temperatura aí registadas num dos muros abonam em favor da hipótese de Nicholas Reeves, pelo menos no que respeita à existência de uma câmara secreta. Se para Reeves se trata da câmara de Nefertiti, para el-Damati poderá ser o de outra rainha. As análises prosseguem, mas o ministro afirma desde já estar à espera da “descoberta do século XXI” para a egiptologia. Nefertiti, a rainha cuja beleza se tornou legendária, foi, há 3300 anos, a esposa principal de Akenaton, o pai de Tutankamon – o único faraó cuja sepultura foi encontrada intacta em 1922 (todas as outras foram pilhadas ao longo dos milénios). O túmulo de Tutankamon encerrava 5000 peças, em grande parte de ouro – um dos mais fabulosos tesouros jamais descobertos, que inclui a celebérrima máscara funerária em ouro maciço, incrustado de pedras preciosas, que enfeitam os manuais de história do mundo inteiro. O antigo Egipto guarda ainda mil e um segredos. Muitos egiptólogos concordam em dizer que o surgimento de novas tecnologias e o contributo de especialistas das ciências exactas poderão conduzir a novas descobertas. “Todos os engenheiros já sonharam com as pirâmides e o património egípcio representa um formidável terreno para a inovação e a imaginação fazerem progredir as várias disciplinas”, estima Mehdi Tayoubi, fundador do instituto francês Herança, Inovação Preservação (HIP), que coordena esta missão científica. Para o egiptólogo Achraf Mohie, o que se esconde por detrás da parede da pirâmide de Quéops não é o que mais interessa nesta fase das investigações, mas sim as próprias anomalias térmicas, que constituem, só por si, uma “descoberta inédita”.
pirâmides de Gizé
As pirâmides de Gizé a serem estudadas com térmicas de infravermelhos.

13/11/2015

Escavada em Cabo Verde a igreja mais antiga dos trópicos

“Quem visita a Cidade Velha pela primeira vez pode ser perdoado por não reconhecer nesta povoação aprazivelmente ensonada o grande entreposto comercial que foi em tempos, no cruzamento das rotas do tráfico de escravos do Atlântico.” É assim que começa o relato — que deverá ser publicado em breve na revista Current World Archaeology — das escavações arqueológicas lideradas em Cabo Verde (ilha de Santiago) por dois cientistas da Universidade de Cambridge (Reino Unido).
Em colaboração com colegas cabo-verdianos e portugueses, estudantes e trabalhadores locais, Marie Louise Stig Sørensen e Christopher Evans têm trabalhado, desde 2007, não só para resgatar do esquecimento a mais antiga construção religiosa europeia a ser erguida nos trópicos, como também parte do passado histórico da população cabo-verdiana.
Quando as ilhas de Cabo Verde foram descobertas pelos portugueses em 1456 — décadas antes de Cristóvão Colombo descobrir a América —, não estavam habitadas. As dez pequenas ilhas que compõem o arquipélago são feitas de rocha vulcânica e até àquela altura não havia lá nem árvores, nem pessoas, nem mamíferos. Mas aquilo que começou por ser um local estratégico para o comércio com a África subsariana transformou-se, no século XVI, num centro global de comércio de escravos africanos — principalmente com destino à nova colónia portuguesa do Brasil. Estas ilhas foram um ponto de partida para a primeira vaga de globalização, integralmente baseada no tráfico de escravos.
Os portugueses transformaram as ilhas num dos principais centros do tráfico transatlântico de escravos, trazendo com eles plantas cultiváveis, animais domésticos e pessoas — comerciantes, missionários e milhares de escravos. Os escravos eram seleccionados e vendidos antes de serem despachados para as plantações espalhadas por todo o mundo atlântico. Uma vez que o arquipélago de Cabo Verde se situa mais ou menos a meio caminho entre a costa de África Ocidental e o Brasil, a descoberta do Brasil e o estabelecimento de plantações ali fez explodir o comércio que passava por Cabo Verde.
A Cidade Velha, instalada num pequeno vale fluvial pautado por campos de cana-de-açúcar e palmeiras, foi a primeira cidade que Portugal fundou em África, na sua aventura dos Descobrimentos. E durante 300 anos, foi não só a capital de Cabo Verde, como também chegou a ser a segunda cidade mais rica do império português. A Cidade Velha foi declarada Património Mundial da Humanidade pela UNESCO em 2009.
Em 2006, Sørensen e Evans foram convidados pela Universidade Jean Piaget de Cabo Verde a realizar escavações na Cidade Velha com o apoio do Ministério da Cultura daquele país. O principal objectivo consistia em localizar a Capela da Nossa Senhora da Conceição, que se pensava ser a igreja original da Cidade Velha — e, como tal, candidata a ser uma das primeiras igrejas cristãs dos trópicos.
Konstantin Richter, historiador de arquitectura [da Universidade Jean Piaget] tinha reparado numa plataforma com argamassa que batia certo com o mapa que indicava a localização da igreja. A seguir foi localizada a fachada da igreja e após duas campanhas de escavações preliminares concluíram que tínham encontrado a igreja. Agora, os cientistas deram por acabada a escavação e a conservação do monumento, que deverá passar a poder ser visitado pelo público.
Os primeiros vestígios da Capela da Nossa Senhora da Conceição remontam à década de 1470, com uma construção de maiores dimensões datada de 1500.
Foi possível recuperar a totalidade da planta de superfície da igreja, incluindo a sacristia, a capela lateral e a varanda lateral. Construída por volta de 1500, a sua porção mais complicada é o coro situado na extremidade oriental, onde se erguia o altar-mor, e que foi sofrendo múltiplas reconstruções devido aos estragos causados pelas cheias sazonais.
Para além da igreja, os arqueólogos descobriram várias lápides de dignitários locais da época. Uma delas é a de Fernão Fiel de Lugo, traficante de escravos e tesoureiro da cidade entre 1542 e 1557. Os cientistas também descobriram um cemitério, cavado no chão da igreja, onde estimam que mais de um milhar de pessoas foi enterrado antes de 1525 — uma autêntica “cápsula do tempo” dos primeiros 50 anos de vida colonial na ilha. Já foram realizadas análises que indicam que cerca de metade eram corpos de africanos e que o resto dos sepultados provinha de várias partes da Europa. Uma escavação está prevista para analisar esses restos mortais de forma a conhecer melhor a população fundadora do país e as primeiras fases da história dos escravos que por lá passaram.
Com base nos textos históricos, sabemos que houve uma sociedade ‘crioula’ que se desenvolveu rapidamente, com terras herdadas por mestiços que tinham direito a desempenhar cargos oficiais e os restos mortais agora descobertos constituem uma oportunidade de testar esta representação das primeiras gentes de Cabo Verde.
As escavações revelaram ainda faianças e azulejos vindos de Portugal, objectos de pedra provenientes da Alemanha, porcelanas chinesas e cerâmicas oriundas de várias partes da África Ocidental. Foi, aliás, essa a razão — em parte graças a circunstâncias fortuitas — da entrada na equipa da investigadora Tânia Casimiro, arqueóloga portuguesa especialista de faiança portuguesa da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É ela que faz o registo, identificação e estudo de toda a cerâmica identificada nas escavações.
Ilha de Santiago Cabo Verde
Ruínas da igreja cristã mais antiga jamais descoberta na África subsariana.
Ilha de Santiago Cabo Verde
Lápides de traficantes de escravos portugueses reveladas durante a escavação.