05/03/2016

O Livro de Cozinha de Apício. Livro de receitas do império romano

Um livro de receitas cuja recolha inicial é atribuída a uma personagem lendária com uma identidade envolta em controvérsia: supostamente um romano de nome M. Gauius Apicius, nascido em 25 a.C. É a mais recente edição da obra De Re coquinaria, agora apresentada como O Livro de Cozinha de Apício - um breviário do gosto imperial, apresenta o retrato de uma civilização através da mesa. Apício é o criador de receitas de molhos a que corresponde o corpus inicial do livro. Tudo indica que teria sido um dos impulsionadores da censura culinarum, uma moda apostada em estabelecer critérios de qualidade para os produtos alimentares e aconselhar sobre as formas mais adequadas para cozinhá-los, que se intensificava no século I a.C.. Apício ter-se-ia rodeado por uma corte de jovens aristocratas, a quem industriava na arte de cozinhar, ócio que se afigurava prejudicial aos olhos de Séneca. Segundo a lenda, seria muito inventivo na cozinha e empenhava-se em criar iguarias exóticas como línguas de flamingo, rouxinol ou pavão, cristas de aves vivas ou calcanhares de camelos (embora nenhuma delas conste neste livro). É possível também que tenha sido o inventor de uma primeira versão de foie gras, pois engordava gansas com figos secos para lhes aproveitar os fígados. Mas, exotismos à parte, os romanos, pelo menos no início, eram um povo frugal, cuja alimentação se baseava nas papas, antepassadas do pão, feitas com grãos torrados e humedecidos e depois com farinha de trigo, e que eram cozidas em água e sal ou leite, por vezes melhoradas com leguminosas, sobretudo favas ou lentilhas ou hortaliças. O peixe era comido nas áreas costeiras. O consumo de sal era elevado e, mais tarde, o de condimentos e temperos também. A alimentação dos romanos só ganha sofisticação com o contacto com o mundo helénico depois da conquista do Mediterâneo Oriental. Na época imperial (27 a.C.) tudo converge para que Roma atinja o seu apogeu na arte da culinária. Na forma de estar à mesa, termina a tradição de atirar comida para o chão para a oferecer aos defuntos, passando-se a desenhá-la nos mosaicos, numa oferenda simbólica. Apesar do grande número de receitas apresentadas, em 90% delas está presente o molho de peixe fermentado, liquamen ou garum — o que parece indicar que mesmo pratos diferentes poderiam ter sabor semelhante. Peguemos então em algumas receitas mais surpreendentes do livro de Apício. Por exemplo, o poético vinho de rosas — os vinhos condimentados são uma das influências da sofisticação helénica. Diz-nos o autor para, “depois de extrair a unha branca”, enfiarmos “pétalas de rosas num fio, de modo a formar coroas” e mergulharmos o maior número possível, para estarem em vinho durante sete dias. Na “cozinha apiciana” os vinhos são quase sempre doces e de sabor forte. O vinho puro, amargo (sempre branco e geralmente cortado com água), raramente era usado como condimento. Recorria-se sobretudo ao mosto cozido, reduzido pela fervura e aos vinhos aromatizados com mel, frutas ou rosas. Apício recomenda que se “use rosas sem humidade do orvalho”. O livro ensina-nos ainda a preparar vinho branco a partir do tinto, a usar azeite da Hispânia fazendo-o passar por azeite da Libúrnia ou a conservar a carne sempre fresca sem a salgar. Mas vejamos mais duas receitas exóticas. Para o molho de flamingo, deve-se começar assim: “Depene, lave e prepare um flamingo, ponha-o numa panela, junte água sal e aneto e um pouco de vinagre”. O prato leva ainda, entre outras coisas, mosto cozido e tamâras de Cárias. E para quem tiver curiosidade sobre uma iguaria chamada “vulvas de porcas estéreis”, aqui fica a explicação: uma das partes da porca a que os romanos davam mais valor era a vulva, também entre nós regionalmente conhecida como ‘barrigueira’. Por porca estéril entenda-se virgem, a que não está em idade de cobrição, ou então castrada. Neste caso, punha-se o animal alguns dias de jejum e suspendia-se pelas patas dianteiras para lhe cortar a matriz ou fazer incisões na vulva que, ao cicatrizar, obstruía a entrada da vagina. Por muito distante que nos pareça esta culinária é imprescindível para compreendermos o que era a cozinha medieval na Península Ibérica. E, se as receitas nos chegam sem quantidades e algumas incompletas, a verdade é que já não somos os destinatários daqueles enunciados. Assim, a esta distância, resta-nos deduzir das palavras o paladar de uma civilização.
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Mosaico romano

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