03/10/2014

Museu Nacional Machado de Castro - Coleção de escultura séculos XIV-XV

Distinguem-se em Coimbra dois períodos: o da maturidade da primeira escultura gótica de raiz nacional, dominada pelos capitéis historiados de Celas e o do resto do século, marcado pela chegada de um escultor aragonês, Mestre Pero, autor do túmulo da Rainha Santa.
A presença entre nós de mestres estrangeiros – reis, prelados e nobres chamaram os melhores artistas do seu tempo, para a realização de esculturas tumulares – atesta as influências que a arte nacional sofreu. O hieratismo inicial, presente nos túmulos deste século, rapidamente evolui, dando início a um novo ciclo na escultura gótica coimbrã, principalmente caracterizado por outra forma de arte – a imaginária.
A escultura devocional da Idade Média portuguesa atingiu o seu apogeu no séc. XIV. Percorrendo uma via naturalista o Gótico libertou as figuras das linhas geometrizantes, alterou gestos e atitudes, humanizou-as. Esta nova conceção generaliza-se e provoca uma intensa produção de imagens de diferentes invocações. A par do culto de Cristo e da Virgem, também alguns santos são alvo do fervor popular, em particular o dos Santos Apóstolos, amplamente representados neste período.
Apesar das mudanças de gosto ou mesmo das imposições da Igreja, o conjunto de escultura de vulto produzida em pedra, que chegou até nós, testemunha uma atividade artística considerável tanto do ponto de vista da quantidade como da qualidade plástica.
São no entanto, a grande maioria, obras anónimas, produzidas em oficina onde, além do mestre, trabalhavam oficiais e aprendizes. O artista melhor identificado é Mestre Pero, que trouxe à arte um avanço notável, tornando as imagens de vulto mais esguias e movimentadas, libertas dos esquemas estáticos que permaneciam na escultura gótica e ainda lhes conferiam um aspeto arcaizante.
A produção deste período concentra-se em imagens de altar e arcas tumulares, sem ousar grandes dimensões e, menos ainda, a conceção de figuras em grupo. Contudo, considera-se que ela corresponde ao auge da escultura medieval portuguesa, devido à sua riqueza iconográfica e ao apuramento estético.
À escultura em madeira devem-se, a par do calcário, algumas realizações notáveis, especialmente Cristos crucificados. Um dos exemplos mais impressionantes é aquele que, por tradição ficou conhecido pelo nome de Cristo Negro. A partir do final do séc. XIII, o corpo de Cristo deixara de cair direito e hirto ao longo do madeiro, para descrever uma curva sinuosa. O alongamento e a contorção do corpo da imagem exprimem um sentimento plástico gótico. Contudo, a expressão dramática da boca entreaberta e o gotejar do sangue ao longo dos braços refletem um sentimento realista peninsular, embora mais português que espanhol, pela expressão resignada que o caracteriza.
A centúria de Quatrocentos é marcada pelo vigor das oficinas da região de Coimbra. As necessidades de um mercado mais amplo e exigente, servidas pela abundância das pedreiras, e as vantagens da via fluvial do Mondego para transporte das obras, levam à reorganização deste centro escultórico, cuja vasta produção se espalhou por todo o país. Abundam as imagens que representam os santos mártires do Cristianismo – Sta Catarina, S. Sebastião, entre outros – bem como as trilogias da Santíssima Trindade e das Santas Mães. Conhecem-se alguns nomes de imaginários, quase todos com obra por identificar. No entanto, sabe-se que João Afonso, Diogo Pires-o-Velho e Diogo Pires-o-Moço, produziram a maioria da imaginária nacional.
O papel de grande centro escultórico transfere-se das obras batalhinas, por influência do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, que encomenda diversas imagens policromadas, para as terras de Montemor-o-Velho a um dos principais estatuários do Mosteiro da Batalha, de nome Gil Eanes. Com ele se havia formado João Afonso que, transferido para Coimbra, recupera a oficina mondeguina. Bem identificado, especialmente pelo facto de datar e assinar as suas obras, João Afonso e a sua oficina, asseguram a parte mais importante da produção escultórica até à década de 60. A ele sucede, no último quartel do século, Diogo Pires-o-Velho, cuja obra apresenta importantes avanços em relação à dos mestres que o precederam. Caracteriza-se por figuras de maiores dimensões, onde impera uma certa dureza de atitudes e de feições, embora com tratamento de panejamentos mais natural que o seu antecessor. A sua oficina virá a ser continuada pelo filho (ou sobrinho), Diogo Pires-o-Moço.
As últimas etapas do Gótico, a partir da segunda metade do séc. XV, trazem outras propostas, em grande parte por influência externa. Muitas destas características – realismo no tratamento do rosto e anatomias, dinamismo nos pregueados e gosto pelos pormenores – correspondem a tendências europeias, do Gótico final.
Museu Nacional Machado de Castro
Virgem do Ó (século XIV)
A devoção a Nossa Senhora é um dos fenómenos religiosos mais significativos do período gótico. A figuração mais original deste período é a Virgem em pé, expectante, popularmente designada como Virgem do Ó. Representa um tipo iconográfico de grande aceitação na Península Ibérica. Este exemplar, proveniente da Sé Velha, é uma das mais conseguidas realizações do seu grande divulgador: Mestre Pero. Das suas mãos saíram algumas das melhores imagens que se conhecem deste período. São esculturas devocionais, de vulto, quase sempre em calcário policromado, apresentando características constantes.
Museu Nacional Machado de Castro
Retábulo do Corpo de Deus
Proveniente da Capela do Corpo de Deus, situada em pleno bairro judeu, este retábulo é formado por uma única placa retangular que serve de fundo à cena representada a meio-relevo – dois anjos ajoelhados elevam o cálice eucarístico, sobreposto pela hóstia com Cristo crucificado. É curioso notar que o escultor João Afonso, datava as suas obras, incluindo também em algumas delas, como neste caso, uma inscrição alusiva ao seu comitente, Álvaro Fernandez de Carvalho: "Senetica : corpos : d[omi]ni : mº : ccccº : xxxx : iij : alu[ar]o f[e]r[nande]z : de : carvalho o mandou fazer".
Museu Nacional Machado de Castro
Cristo Negro
Presença poderosa, esta peça apresenta o corpo de Cristo crucificado, em dimensões superiores ao natural, longilíneo com caráter de arcaizante medievalismo. A cabeça pendente, já coroada de espinhos, rodeada de cabelos em volutas , atinge uma expressão dramática. O tronco negro, estriado pelo relevo das costelas, contrasta com o cendal branco, cruzado na cintura, donde emergem as pernas esqueléticas de pés cruzados, atravessados por um único cravo, característica deste tipo iconográfico . O alongamento do corpo exprime um sentimento plástico que é já gótico, a par do ritmo que contorciona toda a imagem. Mas a expressão dramática da boca entreaberta e o gotejar do sangue, ao longo dos braços, refletem um sentimento realista peninsular, embora mais português que espanhol, pela expressão resignada. Esta invulgar obra de arte provém do Oratório das Donas, do Mosteiro de Santa Cruz.

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