03/10/2014

Museu Nacional Machado de Castro - Coleção de escultura século XVI

Por influência norte-europeia, a madeira assume um papel relevante na produção escultórica, destacando-se Coimbra novamente na difusão de uma nova estética, que abarcaria todo o país. Aqui trabalham alguns dos maiores escultores flamengos destacando-se a presença do escultor e entalhador Olivier de Gand que, ao serviço do Bispo-Conde D. Jorge de Almeida, executa a maioria das peças que o Museu possui, realizadas para a Sé, o Paço Episcopal e conventos da cidade e região.
O séc. XVI em Portugal é uma época complexa, de abertura e conservadorismo, de inovação e tradição. Por um lado, o Gótico tradicional das oficinas da região de Coimbra, por outro a arte flamenga veiculada por artistas vindos do norte da Europa e, por outro lado ainda, o aparecimento das novas formas e fórmulas da Renascença. Assim, a escultura manuelina pode caracterizar-se formalmente como sendo de transição entre o Gótico final e a Renascença.
Coimbra continua na primeira linha, no que respeita ao número de obras executadas, mas surge agora com outra dinâmica e influências, graças à presença de artistas espanhóis, franceses, flamengos e alemães na cidade. Aliás, nesta época é elevado o número de estrangeiros a trabalhar em Portugal.
Marcando a escultura do início deste século, destaca-se Diogo Pires-o-Moço com um conjunto de obras em que perdura o gosto tardo-gótico. Trata-se de um artista local, que se constitui como elo de ligação entre a tradição gótica em fase de renovação e a linguagem renascentista, revelando uma influência profunda dos imaginários flamengos, tão ao gosto dos comitentes portugueses.
Embora a influência norte-europeia se revele em algumas das obras talhadas em pedra, a corrente que vinga é todavia a dos franceses que, na primeira metade de Quinhentos se vêm estabelecer em Coimbra – Nicolau Chanterenne, João de Ruão e Hodart os quais têm, em comum, a formação em centros onde as expressões artísticas do Renascimento italiano são conhecidas.
O Museu possui um vasto número de obras deste período, que testemunham uma característica bem evidente – a alteração das dimensões e dos volumes. São grandes retábulos e altares, povoados por diversas cenas em relevo e imagens de vulto perfeito, a eles dimensionadas, em que a temática religiosa é quase exclusiva, com destaque para os temas ligados Virgem e a Cristo, em especial ao ciclo natalício.
O primeiro francês a fixar-se em Coimbra, e o mais ligado à nova estética renascentista é Nicolau Chanterenne. Escultor preferido pela corte e pela nobreza culta da época granjeia grande reputação com as estátuas jacentes por ele realizadas para os túmulos reais do Mosteiro de Santa Cruz. Desconhecendo-se o nome do(s) artista (s) a quem se deve a realização desses túmulos, persiste alguma confusão entre a obra de Chanterenne e a do hipotético “Mestre dos Túmulos Reais”.
A atividade de J. de Ruão decorre, em Coimbra, durante cerca de 50 anos. Dotado de uma notável capacidade de adaptação ao meio, é o mais sensível à cultura portuguesa. Pela sua oficina passam várias gerações de escultores e decoradores que vêm a estabelecer-se por todo o país.Na sua obra-prima – a Capela do Sacramento na Sé Velha – ou na Capela do Tesoureiro, hoje integrada no Museu, Ruão deixa bem patente a sua dupla qualidade de escultor e arquiteto. Os seus enquadramentos arquitetónicos, sobriamente ornamentados, estão presentes nas grandes obras da coleção do museu – retábulos, painéis relevados, conjuntos escultóricos. Figuras serenas e majestosas, de brandos movimentos, arredadas de qualquer exteriorização de sentimentos, coexistem na sua obra, ao lado de personagens dramáticas, cheias de força interior e movimento, apresentando por vezes ligeiras deformações anatómicas intencionais, para impressionar. As primeiras correspondem à natureza do artista; as segundas surgem por influência de Chanterenne e mesmo de Hodart.
Hodart é um artista isolado, de caráter agitado, revelando uma forte personalidade patente na sua obra. Considerado quase um génio, não é de estranhar que tenha antecipado em décadas o surto barroco em Portugal. É essencialmente um escultor barrista, cuja obra mais notável é hoje pertença deste Museu. Trata-se da Última Ceia executada em tamanho natural, para o Refeitório do Mosteiro de Santa Cruz.
Museu Nacional Machado de Castro
Anjo Heráldico
O Mosteiro de Santa Cruz representa, na época manuelina, um dos lugares míticos e sagrados da nacionalidade. Foi então protagonista de profunda remodelação, patrocinada diretamente pelo Rei, tendo sido a fachada coroada por dois grandes anjos heráldicos tutelares do monarca e do reino, simbolizados respetivamente pela esfera armilar e pelo seu escudo. Muito frequentes nas obras de Diogo Pires-o-Moço, especialmente sustentando brasões de armas, estes anjos mostram grande elevação e serenidade. O gosto pelo pitoresco, pelos pormenores, como o arranjo dos cabelos e o diadema que os cinge, o anelado, o firmal e os sebastos das vestes, são bem característicos deste artista.
Museu Nacional Machado de Castro
Virgem da Anunciação
Imagem ímpar no panorama da escultura renascentista, representa a Virgem anunciada, ajoelhada sobre uma almofada, num genuflexório, em consonância com o modelo de representação comum no séc. XVI – a Virgem, surpresa, soergue o olhar e eleva a mão ao coração. De certo modo, esta peça, atribuída ao Mestre dos Túmulos Reais, constitui um enigma, objeto de estudos e teses, relativamente à sua iconografia e à identificação do artista que a produziu. Há autores que consideram que a peça faria conjunto com um anjo anunciador, entretanto desaparecido. Outros entendem que essa figura complementar não era necessária, pois está representada no medalhão do genuflexório.
Museu Nacional Machado de Castro
Santa Inês
Santa Inês, trajada à época, com tratamento individualizado do rosto, dir-se-ia o retrato de uma jovem das famílias burguesas da cidade, grupo social que formava parte da clientela de João de Ruão. Respeitando os cânones iconográficos de Santa Inês de Roma, esta peça constitui uma das mais belas obras deste escultor, com características que a ligam às grandes obras dos imaginários florentinos do séc. XV.
Museu Nacional Machado de Castro
A Última Ceia (1530-1534)
Este conjunto escultórico representa a Última Ceia, uma das mais impressionantes obras de escultura do renascimento europeu, devidas ao génio de Filipe Hodart. Modeladas em barro cozido, as figuras de Cristo e os seus Apóstolos, que constituem este conjunto, usam traje à época, possuindo elementos comuns que contrastam com uma forte individualização de cada uma das personagens. Hodart retratou figuras populares, identificadas na época com personagens conhecidas no quotidiano do Mosteiro de Sta Cruz, para o qual a obra foi executada. Eram mendigos ou trabalhadores das obras que aí decorriam. As figuras estão dotadas de um realismo e uma violência de expressões surpreendentes: barbas encrespadas, boca entreaberta, dentes à mostra, troncos delgados, pés grandes e um pouco desproporcionados, roupagens agitadas, com um sopro de paixão e dramatismo. Todo o conjunto explode de vivacidade, revelando uma das personalidades mais impetuosas do renascimento português. As figuras apresentam-se sentadas, quase completas, embora mutiladas, apresentando algumas delas só já o tronco e a cabeça ou mesmo só a cabeça. A originalidade e a importância do conjunto residem particularmente no tratamento formal concedido às figuras, um trabalho claramente precoce no tempo, uma vez que anuncia elementos maneiristas e participa de alguns princípios do Barroco, nomeadamente em relação à expressividade e dinamismo que apresentam.

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