29/10/2014

Quatro pinturas sem autor nem data mostram Lisboa antes do terramoto de 1755

Uma pintura do Terreiro do Paço, uma do Rossio, outra do Mosteiro dos Jerónimos e uma quarta do Convento de Mafra. No início do ano, Álvaro Roquette e Pedro Aguiar-Branco, do Antiquário AR-PAB, compraram a um antiquário internacional – preferem não revelar nem o nome nem a nacionalidade – quatro óleos que mostram como eram estes lugares antes do terramoto de 1755. Álvaro Roquette e Pedro Aguiar-Branco não conseguiram descobrir o percurso destas obras – há quanto tempo estão longe de Portugal? São de autoria portuguesa? São perguntas que não conseguiram esclarecer no acto da compra, nem até agora. Além disso as pinturas não estão datadas nem assinadas.
Apesar de mostrarem vistas anteriores ao grande terramoto, podem ter sido pintadas posteriormente com base noutras fontes iconográficas, analisa Miguel Soromenho do Museu Nacional de Arte Antiga. O historiador de arte explica como é possível perceber que as obras têm a mesma autoria: há “afinidades no tratamentos dos céus e na definição da paleta cromática” e “semelhanças na forma de dispor as figuras na composição”. António Miranda, coordenador do Museu da Cidade, conheceu estas obras em Madrid, em Outubro de 2013. Para o responsável do museu lisboeta, as pinturas são importantes “não pela sua qualidade pictórica”, diz, mas como “documento iconográfico dos costumes e da relação das pessoas com a cidade”. Mais que novos pormenores sobre a Lisboa anterior ao terramoto de 1755, as pinturas do Antiquário AR-PAB são exemplo de como se reproduziam as vistas de uma cidade nos séculos XVIII e XIX: muitas vezes a partir de outras obras anteriores a que o artista tinha acesso – o que torna possível que representações da capital antes do sismo tenham sido pintadas quando essa cidade já não existia.
pinturas do Antiquário AR-PAB
Na análise deste óleo, Miguel Soromenho aponta a gravura do Terreiro do Paço atribuída a Zuzarte como uma muito provável fonte iconográfica. Apesar de diferirem no traço, muito mais seguro em Zuzarte, o ponto de vista sobre o Torreão do Palácio da Ribeira é o mesmo, tal como o tratamento de edifícios chave, como a Igreja de S. Francisco, na colina, e o Palácio dos Marqueses de Castelo Rodrigo, à beira-rio atrás do Torreão, ambos representados com pormenor — o que nem sempre acontece na iconografia da cidade. A principal diferença entre as duas obras é o erro de escala: o autor anónimo agiganta estes edifícios, tal como faz com o Torreão, central na pintura.

pinturas do Antiquário AR-PAB
A pintura do Rossio tem também fortes semelhanças com uma outra gravura de Zuzarte: “O ponto de vista é exactamente o mesmo, deslocando a frontaria hospitalar [Hospital de Todos-os-Santos] para a direita do quadro de forma a poder incluir, também, a fachada da 1igreja de São Domingos, um dos mais importantes templos da cidade”, escreve Miguel Soromenho. Mais uma vez as questões de perspectiva: o Convento da Graça está, na pintura, encostado ao Castelo de S. Jorge, que tem o jogo das muralhas errado, diz António Miranda. Também as dimensões do portal manuelino do Hospital de Todos-os-Santos estão alteradas: em comparação com as figuras humanas que passeiam no Rossio, ou mesmo com o Chafariz de Neptuno em primeiro plano, o portal não parece muito grande. No entanto, António Miranda lembra que este exemplar único da arquitectura manuelina era admirado por toda a Europa, não só pelo seu trabalho de escultura, mas pela também pela sua imponência – a que não é feita justiça na pintura.
pinturas do Antiquário AR-PAB
Quanto às outras duas pinturas – Mosteiro dos Jerónimos e Convento de Mafra –, “é plausível admitir que a mesma fonte [Zuzarte] tenha fornecido os exemplos”, avança Miguel Soromenho, embora não nos tenham chegado estas obras. Entre a iconografia antiga dos Jerónimos, há uma gravura anónima, datada do século XVIII, e outra de Piete van Den Berge, da segunda metade do século XVIII. Ambas têm a mesma vista sobre o mosteiro que é, de resto, a mais comum em todas as suas representações. Na pintura do Antiquário AR-PAB, no entanto, o edifício aparece demasiado próximo da margem do rio e a casa de nobres da Quinta da Praia, onde hoje está o Centro Cultural de Belém, aparece demasiado pequena. Alterar a escala dos edifícios era “uma técnica frequente quando se queria acentuar a monumentalidade de um edifício”, diz António Miranda, o que pode explicar este erro de perspectiva. O edifício do mosteiro é também, nesta representação, mais alto e tem, se comparado com a restante iconografia, mais vãos.
pinturas do Antiquário AR-PAB
A mesma perspectiva oblíqua usada para a representação do Mosteiro dos Jerónimos é usada na pintura do Convento de Mafra. O domínio desta técnica é “inábil”, escreve Miguel Soromenho, –  os vãos aparecem mais estreitos e as torres desproporcionais. É uma tentativa de dar leveza a um edifício visualmente pesado, diz Miguel Soromenho, e evita a perspectiva ortogonal da fachada, mais usada no desenho técnico, como o de Michael le Bouteaux, de 1792. O ponto de vista oblíquo idêntico ao do óleo é usado numa litografia de 1853, atribuída a J. Macphail, e que apresenta uma imagem mais realista: por exemplo, o torreão em primeiro plano esconde parte da fachada, o que por causa do mau uso da perspectiva não acontece na pintura.

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