Para a jovem portuguesa, começava uma jornada de sofrimento que, ao longo dos anos, sempre teve relutância em recordar, como conta o marido: “Ela evitava falar e, quando via os documentários na televisão, dizia sempre: ‘Estão longe da verdade.’ Mesmo em Ravensbrück, mas sobretudo em Bergen-Belsen. Este era um campo que existiu durante muito tempo, mas no fim da guerra eles tentaram colocar ali toda a gente e era mais um lugar onde se morria. Ela explicou-me coisas… Que [os prisioneiros] eram obrigados a transportar os cadáveres e que, às vezes, as mãos ou os braços deles lhes ficavam nas mãos, por causa do elevado estado de decomposição.” Depois da rusga em Saint-Fons, Mariette esteve detida na prisão Montluc, em Lyon, até ser transferida para Compiègne, a 25 de Janeiro. Do pouco que Mariette lhe contou, François acreditava que a mulher tinha estado apenas nos campos de concentração de Ravensbrück e Bergen-Belsen, mas a verdade é que os arquivos do International Tracing Service (ITS), na Alemanha, que guardam todos os documentos sobre os campos de concentração nazis, têm vários registos que apontam para a presença de Mariette também no campo de Neuengamme, onde lhe atribuíram o número de prisioneira 5575. Não é de estranhar que tal tenha acontecido, uma vez que, como conta o investigador Pierre-Emmanuel Dufayel, em Un convoi de femmes, o livro que escreveu, dedicado ao transporte em que Mariette foi deportada: “Perto de 70% das mulheres que deixaram Compiègne a 31 de Janeiro foram transferidas ou empregadas num comando satélite. De Hamburgo à Checoslováquia, as ‘27.000’ seleccionadas para o trabalho foram dispersas por 17 campos diferentes.” É provável, por isso, que Mariette tenha sido transferida para um dos subcampos de Neuengamme e que, com a ordem de evacuação destes comandos, a 24 de Março de 1945, tenha sido enviada para Bergen-Belsen, onde, segundo o marido, chegou a contrair tifo, uma das doenças que ali grassavam.
Por esta altura, Bergen-Belsen estava transformado num verdadeiro campo de morte, com os prisioneiros abandonados à sua sorte. Inicialmente construído para ser um campo de prisioneiros de guerra, Bergen-Belsen recebe, nos últimos meses do conflito, milhares de prisioneiros de outros campos. Os alemães desistem de tentar lidar com a ausência de comida e as epidemias e deixam de entrar no campo, que se transforma num terreno em que os vivos convivem com os mortos tombados no solo e onde, como noutros campos, há relatos de canibalismo entre os prisioneiros esfomeados. O estado de grande parte dos detidos era de tal modo deplorável que a chegada dos britânicos, a 15 de Abril, e as medidas de emergência implementadas nas semanas seguintes não foram suficientes para impedir que mais de 13 mil pessoas morressem após a libertação. Mariette, contudo, sobreviveu. O seu nome consta numa lista de “repatriadas francesas” feita pelos próprios prisioneiros, com a indicação de que foi retirada do campo a 17 de Maio, “por camião”. A portuguesa chegaria ao Hotel Lutetia, em Paris — que desde a libertação da cidade funcionou como um centro de repatriamento para prisioneiros de guerra e dos campos de concentração e deslocados —, a 24 de Maio.
Para Mariette, a guerra não tinha, contudo, ficado para trás. A família não a recebeu de braços abertos e acabou acolhida por desconhecidos. “Ela contou-me uma coisa que a marcou, quando voltou a ver os pais. O seu pai fez uma reflexão pouco simpática. Ele disse-lhe: ‘Deixaste-te apanhar’, como se fosse um jogo de polícia e ladrão”, conta François Vallon. Maria descobriu, então, que o seu irmão Francisco também fora deportado e que, ao contrário dela, não regressara. A portuguesa nunca saberia que o irmão estivera ao mesmo tempo que ela em Bergen-Belsen e que morrera lá. Em 1947, o Ministério dos Antigos Combatentes e Vítimas de Guerra emitiu um “Acto de Desaparecimento” referente a Francisco, confirmando que ele fora detido e internado a 27 de Fevereiro de 1944 em Lyon e que “não existiu qualquer outra informação [sobre ele] depois de 27 de Junho de 1944”. Sem saber a razão da detenção do irmão, apesar de suspeitar de que ele se envolvera, de alguma forma, com a Resistência após a sua própria detenção, talvez na tentativa de saber o que lhe acontecera, Mariette vai continuar a procurar respostas sobre Francisco ao longo de toda a vida, incentivada, em grande parte, pelo marido, que lutou para que também ela tivesse acesso a todos os direitos concedidos aos Deportados Resistentes. Os pais e restantes irmãos de Francisco teriam, aparentemente, aceitado que ele não iria voltar. “Eles falavam muito pouco e o François [Francisco] foi rapidamente esquecido pelos outros membros da família. Ela dizia-me: ‘Eu também, se não tivesse regressado, teria sido esquecida rapidamente’”, recorda François Vallon.
Só em 2008 é que o ITS fez chegar a Port-Sainte-Marie os dados que permitiam traçar o percurso de Francisco Barbosa da Costa, nascido a 12 de Fevereiro de 1924, cerca de dois anos depois de Mariette. François recebeu a comunicação e guardou-a para si. “[Mariette] Já estava muito debilitada. A carta é de Janeiro de 2008 e a minha mulher morreu em Junho. Não quis que ela soubesse”, explica, agora, o viúvo. As informações do ITS mostram como Francisco foi constantemente transferido, desde a sua captura e a deportação para a Alemanha, num comboio que saiu de Lyon a 29 de Junho de 1944, em direcção a Dachau, até à sua morte. Em Dachau, Francisco recebeu o número de prisioneiro 75950 e permaneceu no campo principal até 21 de Novembro, altura em que foi transferido para o comando Weiss-See. Pouco depois, a 3 de Dezembro, regressa ao campo principal, apenas para ser transferido de novo, a 12 ou 14 de Dezembro para o subcampo Ohrdruf, do universo de Buchenwald. Aqui recebe um novo número de prisioneiro — 112418 —, que continuará a usar até as tropas norte-americanas se aproximarem e o campo ser evacuado. É neste contexto que Francisco é transferido, a 20 de Março de 1945, para Bergen-Belsen. Tinha 21 anos quando morreu, de causa desconhecida. Mariette Barbosa não soube o que acontecera ao irmão e também nunca terá sabido que o comboio que a levara para Ravensbrück tinha a bordo uma outra portuguesa, Maria d’Azevedo. François Vallon garante que a mulher nunca lhe falou de ter encontrado outros portugueses nos campos de concentração e ele não o estranha. “Ela tinha uma grande desconfiança, sobretudo em Ravensbrück, porque havia muitas suspeitas. Havia sempre o receio de que algumas mulheres pudessem falar, dar informações aos alemães”, diz.
Mariette tinha 21 anos quando foi deportada, Maria d’Azevedo, nascida no distrito do Porto a 21 de Fevereiro de 1901, já tinha 43 anos e seis filhos vivos. Se, no caso de Mariette, o envolvimento com a Resistência poderá ter sido uma influência do namorado, no caso de Maria d’Azevedo era uma luta enraizada na família. O seu marido, Américo d’Azevedo e o seu filho mais velho, Maurice d’Azevedo, também foram detidos pelos nazis, pelo seu envolvimento com os FTPF. A família Azevedo é referida logo em 1966, no livro On les nommait des étrangers… (Les immigrés dans la Résistance), em que se conta que Américo foi detido, pela primeira vez, a 1 de Maio de 1941. “O prisioneiro foi entregue aos alemães. Quatro meses de prisão pelos franceses, dois anos pelos alemães, o calvário da família Azevedo começa”, lê-se na obra de Gaston Larouche e de Boris Matline, coronel dos FTPF. De acordo com este livro, Américo foi “perdoado” pelos alemães em 1942, depois de ter ajudado a extinguir um incêndio na prisão, mas o português regressa à luta clandestina, com os FTPF e, a 29 de Setembro de 1943, é de novo preso. “Corajoso durante a luta, foi heróico sob tortura. Nenhum nome saiu da sua boca. Espancado diariamente, as suas costas não eram mais do que pisaduras e queimaduras. O bombardeamento da prisão acaba com o seu suplício”, lê-se no livro. Ironicamente, Américo terá morrido a 18 de Fevereiro de 1944, na cadeia de Amiens, durante um bombardeamento das forças Aliadas, denominado Operação Jericó, que pretendia libertar elementos da Resistência e prisioneiros políticos. Maria só saberá do destino do marido depois de ela própria regressar da Alemanha, para onde fora deportada, bem como o filho mais velho. O investigador francês Pierre-Emmanuel Dufayel explica à Revista 2 que Maria d’Azevedo foi presa a 17 de Novembro de 1943, “porque era uma resistente de um grupo dos FTPF, ela fazia o transporte de armas”. A portuguesa, nascida Maria da Silva, filha de Marcelino e Joaquina, foi internada em Amiens até ser transferida para Compiègne, a 25 de Janeiro de 1944. Maurice, de 19 anos, foi preso no mesmo dia que a mãe e os filhos mais novos dos Azevedo ficam sozinhos em Albert, onde a família residia, tendo sido acolhidos, segundo On les nommait des étrangers…, “pela esposa de um deportado”.
Maria d’Azevedo fica em Ravensbrück até 20 de Julho de 1944, altura em que é transferida para Buchenwald e, posteriormente, para o subcampo de Leipzig, que fornecia a fábrica de armas HASAG, onde recebeu o número de prisioneira 3845. A 13 de Abril de 1945, o campo é evacuado e Maria acaba por ser libertada, pelas forças Aliadas, durante esse processo, no início de Maio. A 21 de Maio de 1945, quatro dias antes de Mariette Barbosa, ela chega ao Hotel Lutetia, em Paris. O registo médico feito a Maria d’Azevedo quando chegou a Ravensbrück é um dos documentos preservados pelo ITS e revela o detalhe prestado à descrição dos prisioneiros. A ficha médica diz, por exemplo, que a mulher de 66,5 quilos e 1,56 metros de altura não necessitava de esterilização, não sofria de doenças venéreas ou de tuberculose. Diz ainda que Maria tivera oito filhos e que dois morreram quando eram ainda bebés. Maria é descrita como estando, em geral, “de boa saúde”.
Maria d’Azevedo fica em Ravensbrück até 20 de Julho de 1944, altura em que é transferida para Buchenwald e, posteriormente, para o subcampo de Leipzig, que fornecia a fábrica de armas HASAG, onde recebeu o número de prisioneira 3845. A 13 de Abril de 1945, o campo é evacuado e Maria acaba por ser libertada, pelas forças Aliadas, durante esse processo, no início de Maio. A 21 de Maio de 1945, quatro dias antes de Mariette Barbosa, ela chega ao Hotel Lutetia, em Paris. O registo médico feito a Maria d’Azevedo quando chegou a Ravensbrück é um dos documentos preservados pelo ITS e revela o detalhe prestado à descrição dos prisioneiros. A ficha médica diz, por exemplo, que a mulher de 66,5 quilos e 1,56 metros de altura não necessitava de esterilização, não sofria de doenças venéreas ou de tuberculose. Diz ainda que Maria tivera oito filhos e que dois morreram quando eram ainda bebés. Maria é descrita como estando, em geral, “de boa saúde”.
Os dados sobre Maurice d’Azevedo são menos abundantes. Desde logo, subsistem dúvidas sobre se nasceu no Porto ou em França, no dia 8 de Julho de 1924, já que as duas versões aparecem em documentos diferentes. Maurice deixara Compiègne dias antes da mãe, num comboio que abandonou a cidade francesa a 22 de Janeiro de 1944, e foi transportado para Buchenwald. Aí, recebeu o número de prisioneiro 43118. Em Março desse ano, foi transferido para o comando Laura e, no final de Agosto, volta a ser deslocado, desta vez para o subcampo Dora-Mittelbau, onde os prisioneiros trabalhavam na abertura de túneis e nas fábricas subterrâneas, na produção de bombas. Não há informações sobre o que aconteceu, posteriormente, a Maurice.
O cartão de deportada de Maria Barbosa. |
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