30/06/2014

Portugueses enviados para os Campos de Concentração do nazismo (investigação do jornal Público)

François Vallon conheceu Maria Barbosa em 1962, no restaurante de Lyon onde ela trabalhava. François tinha 28 anos, Mariette, como era tratada em França, 40. “Ela trabalhava na cozinha, mas às vezes servia à mesa. O primeiro contacto que tivemos foi por causa do meu nome: ela disse-me que eu tinha o mesmo nome do irmão dela, desaparecido após a deportação para a Alemanha.” François, hoje com 80 anos, está sentado na sala da sua casa, a poucos quilómetros da pequena localidade de Port-Sainte-Marie, no Sudoeste de França. O cemitério onde repousa Maria Barbosa, com quem se casou em Novembro de 1964, fica a poucas dezenas de metros da habitação, no topo de uma subida acentuada, que François percorre amiúde, desde que a portuguesa morreu, em 2008. Na campa, o marido de Mariette colocou duas placas: uma que identifica a mulher como “antiga deportada”; outra dedicada ao irmão dela, Francisco Barbosa da Costa, com a indicação “morto durante a deportação”. Os irmãos Barbosa, Mariette e Francisco, chegaram a França ainda crianças, acompanhados por uma irmã mais velha, Rosa, e pelos pais, João Barbosa e Diolinda de Magalhães. Os três filhos do casal Barbosa tinham nascido em Vilar das Almas, Ponte de Lima, onde a família residia antes de se instalar na região de Lyon, em França. Aí, João e Diolinda teriam ainda mais dois filhos. Mariette, nascida a 23 de Fevereiro de 1922, tinha apenas 17 anos quando a guerra rebentou, mas em 1944 a jovem portuguesa de 22 anos, que residia, então, em Saint-Fons, estava já envolvida no combate ao nazismo. “Não sei [se ela era politizada]. Certamente um pouco. Em 1944, ela vivia maritalmente com um homem e ele, sim, era envolvido politicamente”, recorda François Vallon. A portuguesa foi detida a 10 de Janeiro de 1944, durante uma operação desenvolvida pela Milícia francesa, uma organização ao estilo da Gestapo alemã e que funcionava em articulação com ela. François guarda ainda a página de um jornal local francês, cuja data e o nome desconhece, na qual é descrita a operação que levou à detenção daquela que haveria de ser a sua mulher. Naquela segunda-feira à noite, pelas 20h, Mariette estava numa casa conhecida como Pommerol, alugada por Edmond Partouche, resistente do maquis da localidade de Azergues, ligado à rede resistente comunista Francs-Tireurs et Partisans Français (FTPF). Segundo o artigo, Mariette integraria uma outra rede, baptizada com o nome do primeiro resistente de Lyon condenado à guilhotina pelo regime de Vichy, em 1943, Émile Bertrand. René Fernandez, um jovem de 18 anos que se ia encontrar com o grupo, apercebeu-se da movimentação da Milícia na rua onde se encontravam os amigos e ainda os tentou avisar, mas acabou por ser assassinado. No interior da casa estavam Mariette Barbosa, Antoine Garcia e Daniel Agnes. Antoine é ferido num braço e consegue fugir, mas Mariette e Daniel são presos. “A minha mulher dizia sempre que a pessoa que foi presa com ela estava ali por acaso. Era um amigo de pessoas que pertenciam à Resistência, conhecia-os, queria vê-los, mas acabou detido”, relata François Vallon.
Para a jovem portuguesa, começava uma jornada de sofrimento que, ao longo dos anos, sempre teve relutância em recordar, como conta o marido: “Ela evitava falar e, quando via os documentários na televisão, dizia sempre: ‘Estão longe da verdade.’ Mesmo em Ravensbrück, mas sobretudo em Bergen-Belsen. Este era um campo que existiu durante muito tempo, mas no fim da guerra eles tentaram colocar ali toda a gente e era mais um lugar onde se morria. Ela explicou-me coisas… Que [os prisioneiros] eram obrigados a transportar os cadáveres e que, às vezes, as mãos ou os braços deles lhes ficavam nas mãos, por causa do elevado estado de decomposição.” Depois da rusga em Saint-Fons, Mariette esteve detida na prisão Montluc, em Lyon, até ser transferida para Compiègne, a 25 de Janeiro. Do pouco que Mariette lhe contou, François acreditava que a mulher tinha estado apenas nos campos de concentração de Ravensbrück e Bergen-Belsen, mas a verdade é que os arquivos do International Tracing Service (ITS), na Alemanha, que guardam todos os documentos sobre os campos de concentração nazis, têm vários registos que apontam para a presença de Mariette também no campo de Neuengamme, onde lhe atribuíram o número de prisioneira 5575. Não é de estranhar que tal tenha acontecido, uma vez que, como conta o investigador Pierre-Emmanuel Dufayel, em Un convoi de femmes, o livro que escreveu, dedicado ao transporte em que Mariette foi deportada: “Perto de 70% das mulheres que deixaram Compiègne a 31 de Janeiro foram transferidas ou empregadas num comando satélite. De Hamburgo à Checoslováquia, as ‘27.000’ seleccionadas para o trabalho foram dispersas por 17 campos diferentes.” É provável, por isso, que Mariette tenha sido transferida para um dos subcampos de Neuengamme e que, com a ordem de evacuação destes comandos, a 24 de Março de 1945, tenha sido enviada para Bergen-Belsen, onde, segundo o marido, chegou a contrair tifo, uma das doenças que ali grassavam.
Por esta altura, Bergen-Belsen estava transformado num verdadeiro campo de morte, com os prisioneiros abandonados à sua sorte. Inicialmente construído para ser um campo de prisioneiros de guerra, Bergen-Belsen recebe, nos últimos meses do conflito, milhares de prisioneiros de outros campos. Os alemães desistem de tentar lidar com a ausência de comida e as epidemias e deixam de entrar no campo, que se transforma num terreno em que os vivos convivem com os mortos tombados no solo e onde, como noutros campos, há relatos de canibalismo entre os prisioneiros esfomeados. O estado de grande parte dos detidos era de tal modo deplorável que a chegada dos britânicos, a 15 de Abril, e as medidas de emergência implementadas nas semanas seguintes não foram suficientes para impedir que mais de 13 mil pessoas morressem após a libertação. Mariette, contudo, sobreviveu. O seu nome consta numa lista de “repatriadas francesas” feita pelos próprios prisioneiros, com a indicação de que foi retirada do campo a 17 de Maio, “por camião”. A portuguesa chegaria ao Hotel Lutetia, em Paris — que desde a libertação da cidade funcionou como um centro de repatriamento para prisioneiros de guerra e dos campos de concentração e deslocados —, a 24 de Maio.
Para Mariette, a guerra não tinha, contudo, ficado para trás. A família não a recebeu de braços abertos e acabou acolhida por desconhecidos. “Ela contou-me uma coisa que a marcou, quando voltou a ver os pais. O seu pai fez uma reflexão pouco simpática. Ele disse-lhe: ‘Deixaste-te apanhar’, como se fosse um jogo de polícia e ladrão”, conta François Vallon. Maria descobriu, então, que o seu irmão Francisco também fora deportado e que, ao contrário dela, não regressara. A portuguesa nunca saberia que o irmão estivera ao mesmo tempo que ela em Bergen-Belsen e que morrera lá. Em 1947, o Ministério dos Antigos Combatentes e Vítimas de Guerra emitiu um “Acto de Desaparecimento” referente a Francisco, confirmando que ele fora detido e internado a 27 de Fevereiro de 1944 em Lyon e que “não existiu qualquer outra informação [sobre ele] depois de 27 de Junho de 1944”. Sem saber a razão da detenção do irmão, apesar de suspeitar de que ele se envolvera, de alguma forma, com a Resistência após a sua própria detenção, talvez na tentativa de saber o que lhe acontecera, Mariette vai continuar a procurar respostas sobre Francisco ao longo de toda a vida, incentivada, em grande parte, pelo marido, que lutou para que também ela tivesse acesso a todos os direitos concedidos aos Deportados Resistentes. Os pais e restantes irmãos de Francisco teriam, aparentemente, aceitado que ele não iria voltar. “Eles falavam muito pouco e o François [Francisco] foi rapidamente esquecido pelos outros membros da família. Ela dizia-me: ‘Eu também, se não tivesse regressado, teria sido esquecida rapidamente’”, recorda François Vallon.
Só em 2008 é que o ITS fez chegar a Port-Sainte-Marie os dados que permitiam traçar o percurso de Francisco Barbosa da Costa, nascido a 12 de Fevereiro de 1924, cerca de dois anos depois de Mariette. François recebeu a comunicação e guardou-a para si. “[Mariette] Já estava muito debilitada. A carta é de Janeiro de 2008 e a minha mulher morreu em Junho. Não quis que ela soubesse”, explica, agora, o viúvo. As informações do ITS mostram como Francisco foi constantemente transferido, desde a sua captura e a deportação para a Alemanha, num comboio que saiu de Lyon a 29 de Junho de 1944, em direcção a Dachau, até à sua morte. Em Dachau, Francisco recebeu o número de prisioneiro 75950 e permaneceu no campo principal até 21 de Novembro, altura em que foi transferido para o comando Weiss-See. Pouco depois, a 3 de Dezembro, regressa ao campo principal, apenas para ser transferido de novo, a 12 ou 14 de Dezembro para o subcampo Ohrdruf, do universo de Buchenwald. Aqui recebe um novo número de prisioneiro — 112418 —, que continuará a usar até as tropas norte-americanas se aproximarem e o campo ser evacuado. É neste contexto que Francisco é transferido, a 20 de Março de 1945, para Bergen-Belsen. Tinha 21 anos quando morreu, de causa desconhecida. Mariette Barbosa não soube o que acontecera ao irmão e também nunca terá sabido que o comboio que a levara para Ravensbrück tinha a bordo uma outra portuguesa, Maria d’Azevedo. François Vallon garante que a mulher nunca lhe falou de ter encontrado outros portugueses nos campos de concentração e ele não o estranha. “Ela tinha uma grande desconfiança, sobretudo em Ravensbrück, porque havia muitas suspeitas. Havia sempre o receio de que algumas mulheres pudessem falar, dar informações aos alemães”, diz.
Mariette tinha 21 anos quando foi deportada, Maria d’Azevedo, nascida no distrito do Porto a 21 de Fevereiro de 1901, já tinha 43 anos e seis filhos vivos. Se, no caso de Mariette, o envolvimento com a Resistência poderá ter sido uma influência do namorado, no caso de Maria d’Azevedo era uma luta enraizada na família. O seu marido, Américo d’Azevedo e o seu filho mais velho, Maurice d’Azevedo, também foram detidos pelos nazis, pelo seu envolvimento com os FTPF. A família Azevedo é referida logo em 1966, no livro On les nommait des étrangers… (Les immigrés dans la Résistance), em que se conta que Américo foi detido, pela primeira vez, a 1 de Maio de 1941. “O prisioneiro foi entregue aos alemães. Quatro meses de prisão pelos franceses, dois anos pelos alemães, o calvário da família Azevedo começa”, lê-se na obra de Gaston Larouche e de Boris Matline, coronel dos FTPF. De acordo com este livro, Américo foi “perdoado” pelos alemães em 1942, depois de ter ajudado a extinguir um incêndio na prisão, mas o português regressa à luta clandestina, com os FTPF e, a 29 de Setembro de 1943, é de novo preso. “Corajoso durante a luta, foi heróico sob tortura. Nenhum nome saiu da sua boca. Espancado diariamente, as suas costas não eram mais do que pisaduras e queimaduras. O bombardeamento da prisão acaba com o seu suplício”, lê-se no livro. Ironicamente, Américo terá morrido a 18 de Fevereiro de 1944, na cadeia de Amiens, durante um bombardeamento das forças Aliadas, denominado Operação Jericó, que pretendia libertar elementos da Resistência e prisioneiros políticos. Maria só saberá do destino do marido depois de ela própria regressar da Alemanha, para onde fora deportada, bem como o filho mais velho. O investigador francês Pierre-Emmanuel Dufayel explica à Revista 2 que Maria d’Azevedo foi presa a 17 de Novembro de 1943, “porque era uma resistente de um grupo dos FTPF, ela fazia o transporte de armas”. A portuguesa, nascida Maria da Silva, filha de Marcelino e Joaquina, foi internada em Amiens até ser transferida para Compiègne, a 25 de Janeiro de 1944. Maurice, de 19 anos, foi preso no mesmo dia que a mãe e os filhos mais novos dos Azevedo ficam sozinhos em Albert, onde a família residia, tendo sido acolhidos, segundo On les nommait des étrangers…, “pela esposa de um deportado”.
Maria d’Azevedo fica em Ravensbrück até 20 de Julho de 1944, altura em que é transferida para Buchenwald e, posteriormente, para o subcampo de Leipzig, que fornecia a fábrica de armas HASAG, onde recebeu o número de prisioneira 3845. A 13 de Abril de 1945, o campo é evacuado e Maria acaba por ser libertada, pelas forças Aliadas, durante esse processo, no início de Maio. A 21 de Maio de 1945, quatro dias antes de Mariette Barbosa, ela chega ao Hotel Lutetia, em Paris. O registo médico feito a Maria d’Azevedo quando chegou a Ravensbrück é um dos documentos preservados pelo ITS e revela o detalhe prestado à descrição dos prisioneiros. A ficha médica diz, por exemplo, que a mulher de 66,5 quilos e 1,56 metros de altura não necessitava de esterilização, não sofria de doenças venéreas ou de tuberculose. Diz ainda que Maria tivera oito filhos e que dois morreram quando eram ainda bebés. Maria é descrita como estando, em geral, “de boa saúde”.
Os dados sobre Maurice d’Azevedo são menos abundantes. Desde logo, subsistem dúvidas sobre se nasceu no Porto ou em França, no dia 8 de Julho de 1924, já que as duas versões aparecem em documentos diferentes. Maurice deixara Compiègne dias antes da mãe, num comboio que abandonou a cidade francesa a 22 de Janeiro de 1944, e foi transportado para Buchenwald. Aí, recebeu o número de prisioneiro 43118. Em Março desse ano, foi transferido para o comando Laura e, no final de Agosto, volta a ser deslocado, desta vez para o subcampo Dora-Mittelbau, onde os prisioneiros trabalhavam na abertura de túneis e nas fábricas subterrâneas, na produção de bombas. Não há informações sobre o que aconteceu, posteriormente, a Maurice.
Portugueses nos campos de concentração
O cartão de deportada de Maria Barbosa.

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