A investigação começou com o restauro da Custódia da Bemposta, no ano passado, e da Custódia da Patriarcal, este ano, e está explicada ao pormenor num catálogo com referências a outras peças que fundamentam as novas conclusões sobre o tema. "É a história do final do século XVIII contada por estas cinco peças. As três que pertencem à Igreja não tinham estudos cientificos laboratoriais e historicos associados", explica Luísa Penalva, que co-comissaria a exposição juntamente com Pimentel e Anísio Franco. Antes deste trabalho, “não estava muito claro” que “desenhar ourivesaria era uma coisa, fazê-la era outra”, continua Pimentel. “Quando se falava do arquitecto João Frederico Ludovice ser ourives, pensava-se que ele tinha uma oficina de ourivesaria. Não. Ele era ourives, mas não nesse sentido... Era desenhador de peças de ourivesaria.” A mão de Ludovice, que desenhou o Convento de Mafra, está nos desenhos originais do Resplendor do Senhor dos Passos e da Custódia da Patriarcal, que de facto tem a estrutura equilibrada e harmoniosa de um edifício em ponto pequeno: os seus alicerces trabalhados abrem espaço para as pequenas figuras simbólicas que estão no centro, como um pelicano, que bica o seu próprio peito para sangrar e alimentar os filhos. Não foi, no entanto, a sua mão que talhou a peça. A produção estava entregue a uma das oficinas que proliferavam por Lisboa. Para além de Ludovice, Joaquim Machado de Castro (escultura da Custódia da Patriarcal) e Mateus Vicente de Oliveira (Custódia da Bemposta e resplendor açoriano) eram as figuras de topo no desenho de ourivesaria – hoje diríamos que eram designers sem produção própria.
No tempo em que não se olhava a despesas para adorar Deus – quando o poder do rei era legitimado pelo divino – do projecto inicial até á conclusão da peça podiam ir seis a sete anos, confirmou também este estudo –, trabalhos longos e delicados que faziam com que se estabelecessem várias oficinas em Lisboa para dar resposta a todas as encomendas da corte.
Para António Filipe Pimentel, foi particularmente difícil reunir estas cinco peças – apesar de serem apenas cinco –, especialmente porque três delas servem ainda hoje o culto: a Custódia da Patriarcal e os dois resplendores, “ligados a imagens de grande devoção”, lembra o director. “Não são peças fáceis de sair e nunca mais se voltarão a reunir”, vaticina. De entre as cinco, o ex-libris desta dificuldade foi o resplendor açoriano. Não que isso tenha afectado as negociações com o MNAA, sublinha António Pimentel, mas é certo que a imprensa regional se desdobrou em artigos, textos de opinião, cartas de leitores contra e a favor do empréstimo da mais valiosa peça dos Tesouros do Senhor Santo Cristo – um movimento impulsionado pela Irmandade do Senhor Santo Cristo dos Milagres e a Congregação de Maria Imaculada, sendo o tesouro guardado na última. O resplendor de 40 centímetros de diâmetro, que só sai do Convento da Esperança três vezes por ano, é “parte integrante de um conjunto de culto, que não se pode sujeitar a critérios e visões estritamente técnicas”, escrevia Joaquim Machado, cronista do Açoriano Oriental contra a viagem da peça. Carlos Faria e Maia, presidente da Irmandade, dizia que a saída era “um peso na nossa fé incalculável”. A madre superiora do convento acrescentava que “o que guarda o tesouro do Senhor Santo Cristo dos Milagres é a fé do povo açoriano” e que por isso levá-lo seria deixá-lo desprotegido. À frente do argumento da segurança aparecia sempre a fé e devoção do povo açoriano pelo seu Ecce Homo, mas o museu garante que este aspecto não é descurado: “Sabemos do seu valor material extraordinário, mas também temos uma alta sensibilidade do ponto de vista do seu uso e da sua vocação. Não há peças sem contexto”, diz Pimentel. Foi por isso que José Tolentino Mendonça, padre e poeta, foi convidado a escrever o texto de abertura do catálogo, onde explica que estas peças sumptuosas “sussurram-nos uma prece, colocam-nos uma questão inapagável”: a “interrogação de Deus”.
Resplendor do Senhor Santo Cristo dos Milagres, Açores |
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