DIOGO RAMADA CURTO,
PÚBLICO, 04/06/2014
A atribuição ao embaixador Alberto da Costa e Silva do Prémio Camões 2014 constitui um incentivo para ler a sua obra.Alberto da Costa e Silva nasceu em 1931. Da sua infância, na casa grande do Piauí e chegada ao Rio de Janeiro, escreveu umas memórias. Intitulou-as, com ironia e gosto pelo paradoxo, Espelho do Príncipe. A par da sua carreira como diplomata, no âmbito da qual serviu como embaixador em Portugal (1989-1992), dedicou-se à poesia, ao ensaio e à investigação histórica. Tal como um outro diplomata brasileiro da sua geração, o grande historiador nordestino Evaldo Cabral de Melo, Costa e Silva deve ser considerado um dos maiores historiadores brasileiros da actualidade.
Quais são, então, os principais domínios e pontos de vista em que Costa e Silva inovou ou alcançou uma maior profundidade analítica?
Para responder a esta questão identifico três linhas principais, depois de tomar em mãos os seus principais livros de história publicados pela Editora Nova Fronteira: A Enxada e a Lança: a África antes dos Portugueses (1992; 2.ª ed., 1996), 768 pp.; A Manilha e o Libambo: A África e a Escravidão, de 1500 a 1700 (Nova Fronteira, 2002), 1071 pp.; Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos (2004), 207 pp.; Um Rio Chamado Atlântico (Nova Fronteira, 2012), 287 pp.. Não esqueço uma colectânea de ensaios publicada há muito em Lisboa O Vício da África e Outros Vícios (João Sá da Costa, 1989), 215 pp.; nem a sua recente coordenação do vol. I da História do Brasil Nação: 1808-2010 – Crise Colonial e Independência 1808-1930 (Fundación Mapfre e Editora Objetiva, 2011), 256 pp..
A primeira característica encontra-se no confessado “vício de África” que todas essas obras de história revelam. Ou seja, se outros grandes historiadores brasileiros procuraram dentro do Brasil a construção da sua história, propondo-se encontrar o seu epicentro tanto numa visão do paraíso situado algures no sertão, como numa outra qualquer matriz regionalista (do Nordeste à Bahia, de Minas Gerais ao Rio de Janeiro, ou das plantações e engenhos aos caminhos dos bandeirantes paulistas), Alberto da Costa e Silva encontra em África e no tráfico atlântico de escravos a raiz a partir da qual o Brasil necessita de ser explicado.
Outros intelectuais brasileiros, tais como os antropólogos Nina Rodrigues e Artur Ramos em trabalhos começados a publicar na década de 1930 foram pioneiros na criação dessa visão africanista do Brasil. Mais recentemente, Luiz Felipe de Alencastro, outro grande historiador brasileiro, também procurou traçar o quadro estrutural de um Brasil feito fora do Brasil, no Atlântico Sul. Costa e Silva elogiou o último, sem deixar de o criticar. Isto porque, ao retábulo de um só painel — representando a junção de Angola ao “miolo negreiro do Brasil” ou, por outras palavras, unindo Luanda ao Rio de Janeiro —, se deveriam acrescentar outras tábuas, capazes de formar um políptico. Compunham-no: a Costa do Ouro, onde os acãs vendiam escravos em troca de ouro brasileiro, no fim do século XVII; a Costa dos Escravos no Golfo do Benin com a sua procura de tabaco baiano; o tráfico do Senegal e dos Rios da Guiné, considerado o mais antigo de todos (tão bem estudado por António Carreira em livros que é urgente difundir); e a vasta linha costeira do Gabão aos reinos ao norte do rio Zaire.
Segunda característica: se a preocupação pela história de África implica que o historiador saia do Brasil para o compreender melhor, obriga igualmente a recorrer a diferentes texturas temporais, a começar por aquelas que só são apreensíveis através de um recuo aos ritmos mais lentos da longa duração. A este respeito, que admiráveis são os exercícios analíticos de Costa e Silva em A Enxada e a Lança! Nuns casos, encontra-se a lenta expansão a sul do Sara da cultura banta — comparada à expansão dos tupis-guaranis na América do Sul —, tanto ao nível da língua como das novas tecnologias da fundição do ferro. Noutros, são as comunidades agrícolas, fundadas na enxada, em oposição aos grupos nómadas do pastoreio, na sua relação com os processos de concentração dos poderes. Noutros casos, ainda, como no Zimbabué, no Gana ou no Mali, é a acumulação de riquezas, nomeadamente o ouro, a revelar que o comércio à distância se constituía como um dos principais instrumentos dos reis para fortalecer o seu domínio. Claro que a capacidade de lidar com diferentes texturas temporais não se reduz ao afrontar do tempo longo — em oposição às visões superficiais do que se julga ser a mudança rápida porque associada, em círculo vicioso, ao contemporâneo. Mas revela-se também no estudo de outros processos de mudança que tanto podem percorrer dois séculos (A Manilha e o Libambo…), como ser compreendidos à escala de uma vida (Francisco Félix de Souza…).
Uma última característica diz respeito não aos resultados das análises históricas centradas em África e na escravatura, que procuram jogar com diferentes texturas temporais, mas à própria oficina onde Alberto da Costa e Silva compõe os seus trabalhos. Ora, esta é composta por uma bibliografia gigantesca, lida e comentada, sempre de forma crítica, com destaque para as obras essenciais de Eric Williams a Jan Vansina. Menor peso ocupam as novidades recolhidas em arquivo, embora este seja compensado por uma fina atenção às fontes impressas, em particular aos relatos de viagem.
Porventura, mais importante, é o cuidado com o estilo — não no sentido vazio da forma pela forma — mas posto ao serviço da explicação analítica e do traçar dos quadros onde se desenham processos de mudança. É que um grande historiador recorre sempre a múltiplas formas de explicação, para procurar responder a diferentes problemas. Nuns casos, são as referidas imagens que se inspiram nas técnicas da pintura, dos retábulos aos polípticos. Noutros, encontra-se a paráfrase que se inspira em Carlos Drummond de Andrade: “apenas um arabesco em torno do elemento essencial – inatingível” (A Enxada e a Lança, p. 647). Noutros casos, ainda, estão as referências aos vestígios materiais: os três fragmentos de um prato de porcelana chinesa azul e branca, da dinastia Ming, a testemunhar como o paço real do Zimbabué, na transição dos séculos XV para o século XVI, estava no centro de uma rede de comércio a longa distância (A Enxada e a Lança, p. 657).
Em toda esta erudita diversidade de registos, sente-se bem a figura do escritor dobrado de historiador. Tal como se Alberto da Costa e Silva fosse um Michelet brasileiro interessado na história de África.
Para responder a esta questão identifico três linhas principais, depois de tomar em mãos os seus principais livros de história publicados pela Editora Nova Fronteira: A Enxada e a Lança: a África antes dos Portugueses (1992; 2.ª ed., 1996), 768 pp.; A Manilha e o Libambo: A África e a Escravidão, de 1500 a 1700 (Nova Fronteira, 2002), 1071 pp.; Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos (2004), 207 pp.; Um Rio Chamado Atlântico (Nova Fronteira, 2012), 287 pp.. Não esqueço uma colectânea de ensaios publicada há muito em Lisboa O Vício da África e Outros Vícios (João Sá da Costa, 1989), 215 pp.; nem a sua recente coordenação do vol. I da História do Brasil Nação: 1808-2010 – Crise Colonial e Independência 1808-1930 (Fundación Mapfre e Editora Objetiva, 2011), 256 pp..
A primeira característica encontra-se no confessado “vício de África” que todas essas obras de história revelam. Ou seja, se outros grandes historiadores brasileiros procuraram dentro do Brasil a construção da sua história, propondo-se encontrar o seu epicentro tanto numa visão do paraíso situado algures no sertão, como numa outra qualquer matriz regionalista (do Nordeste à Bahia, de Minas Gerais ao Rio de Janeiro, ou das plantações e engenhos aos caminhos dos bandeirantes paulistas), Alberto da Costa e Silva encontra em África e no tráfico atlântico de escravos a raiz a partir da qual o Brasil necessita de ser explicado.
Outros intelectuais brasileiros, tais como os antropólogos Nina Rodrigues e Artur Ramos em trabalhos começados a publicar na década de 1930 foram pioneiros na criação dessa visão africanista do Brasil. Mais recentemente, Luiz Felipe de Alencastro, outro grande historiador brasileiro, também procurou traçar o quadro estrutural de um Brasil feito fora do Brasil, no Atlântico Sul. Costa e Silva elogiou o último, sem deixar de o criticar. Isto porque, ao retábulo de um só painel — representando a junção de Angola ao “miolo negreiro do Brasil” ou, por outras palavras, unindo Luanda ao Rio de Janeiro —, se deveriam acrescentar outras tábuas, capazes de formar um políptico. Compunham-no: a Costa do Ouro, onde os acãs vendiam escravos em troca de ouro brasileiro, no fim do século XVII; a Costa dos Escravos no Golfo do Benin com a sua procura de tabaco baiano; o tráfico do Senegal e dos Rios da Guiné, considerado o mais antigo de todos (tão bem estudado por António Carreira em livros que é urgente difundir); e a vasta linha costeira do Gabão aos reinos ao norte do rio Zaire.
Segunda característica: se a preocupação pela história de África implica que o historiador saia do Brasil para o compreender melhor, obriga igualmente a recorrer a diferentes texturas temporais, a começar por aquelas que só são apreensíveis através de um recuo aos ritmos mais lentos da longa duração. A este respeito, que admiráveis são os exercícios analíticos de Costa e Silva em A Enxada e a Lança! Nuns casos, encontra-se a lenta expansão a sul do Sara da cultura banta — comparada à expansão dos tupis-guaranis na América do Sul —, tanto ao nível da língua como das novas tecnologias da fundição do ferro. Noutros, são as comunidades agrícolas, fundadas na enxada, em oposição aos grupos nómadas do pastoreio, na sua relação com os processos de concentração dos poderes. Noutros casos, ainda, como no Zimbabué, no Gana ou no Mali, é a acumulação de riquezas, nomeadamente o ouro, a revelar que o comércio à distância se constituía como um dos principais instrumentos dos reis para fortalecer o seu domínio. Claro que a capacidade de lidar com diferentes texturas temporais não se reduz ao afrontar do tempo longo — em oposição às visões superficiais do que se julga ser a mudança rápida porque associada, em círculo vicioso, ao contemporâneo. Mas revela-se também no estudo de outros processos de mudança que tanto podem percorrer dois séculos (A Manilha e o Libambo…), como ser compreendidos à escala de uma vida (Francisco Félix de Souza…).
Uma última característica diz respeito não aos resultados das análises históricas centradas em África e na escravatura, que procuram jogar com diferentes texturas temporais, mas à própria oficina onde Alberto da Costa e Silva compõe os seus trabalhos. Ora, esta é composta por uma bibliografia gigantesca, lida e comentada, sempre de forma crítica, com destaque para as obras essenciais de Eric Williams a Jan Vansina. Menor peso ocupam as novidades recolhidas em arquivo, embora este seja compensado por uma fina atenção às fontes impressas, em particular aos relatos de viagem.
Porventura, mais importante, é o cuidado com o estilo — não no sentido vazio da forma pela forma — mas posto ao serviço da explicação analítica e do traçar dos quadros onde se desenham processos de mudança. É que um grande historiador recorre sempre a múltiplas formas de explicação, para procurar responder a diferentes problemas. Nuns casos, são as referidas imagens que se inspiram nas técnicas da pintura, dos retábulos aos polípticos. Noutros, encontra-se a paráfrase que se inspira em Carlos Drummond de Andrade: “apenas um arabesco em torno do elemento essencial – inatingível” (A Enxada e a Lança, p. 647). Noutros casos, ainda, estão as referências aos vestígios materiais: os três fragmentos de um prato de porcelana chinesa azul e branca, da dinastia Ming, a testemunhar como o paço real do Zimbabué, na transição dos séculos XV para o século XVI, estava no centro de uma rede de comércio a longa distância (A Enxada e a Lança, p. 657).
Em toda esta erudita diversidade de registos, sente-se bem a figura do escritor dobrado de historiador. Tal como se Alberto da Costa e Silva fosse um Michelet brasileiro interessado na história de África.
Alberto da Costa e Silva, prémio Camões 2014 |
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