27/06/2014

A história nunca contada dos portugueses nos campos de concentração

O comboio partiu às 6h15. Era o dia 25 de Junho de 1942 e no seu interior apinhavam-se mil homens. Todos judeus. Tinham passado os últimos meses no campo de internamento de Pithiviers, a 87 quilómetros a Sul de Paris, mas agora chegara a ordem de partida. O destino, desconhecido para os passageiros do comboio n.º 813, era o campo de concentração de Auschwitz, na Polónia. A bordo ia Michael Fresco, um judeu português, nascido em Lisboa, a 15 de Setembro de 1911. Enquanto Michael era deportado para Auschwitz, Luiz Ferreira, um funileiro da região de Guimarães, emigrado em Lyon, já tinha sido “apanhado” pelo regime colaboracionista francês, por causa da sua filiação no Partido Comunista e da acção clandestina contra os ocupantes nazis. Maria Barbosa, natural de Ponte de Lima e também emigrada em Lyon, estava longe de saber que, dois anos mais tarde, em 1944, estaria a iniciar a sua viagem em direcção ao campo de concentração de Ravensbrück. Já Casimiro Martins, um algarvio que partira para os Pirenéus franceses, para se juntar a um irmão e trabalhar na construção civil, não podia ainda imaginar que dali a dois anos e meio seria uma das vítimas mortais do campo de concentração de Neuengamme. Portugal manteve a neutralidade durante a guerra que devastou a Europa entre 1939 e 1945, mas os portugueses não saíram incólumes do conflito. Dezenas foram transportados para os campos de concentração e alguns morreram lá. Um destino ignorado pelo seu país, esquecido por membros das suas famílias, desconhecido dos portugueses. Quase 70 anos depois do fim da guerra, as suas histórias são, finalmente, contadas.
Michael Fresco morreu com 30 anos, apenas por ser judeu. O “Michael Strogoff”, alcunha pela qual era carinhosamente tratado em família, nas tardes de reunião que os Fresco gostavam de partilhar com os primos, em Lisboa, abandonara Portugal para se instalar na cidade francesa de Nantes, como comerciante. Foi aí que o seu futuro foi definitivamente interrompido. Para trás, deixava uma vida lisboeta que parece doce e alegre, nas palavras dos descendentes da família. Alberto Fresco, 65 anos, filho de uma prima de Michael, nunca conheceu este parente distante, mas lembra-se de ouvir a mãe, Rebeca, falar dele. “A família juntava-se toda e havia grandes brincadeiras. A minha mãe contava que o Michael era uma pessoa muito extrovertida, muito jovial, de tal modo que ele tinha uma alcunha, um petit nom entre os membros da família. Era conhecido como o Michael Strogoff. Estava-se numa época em que os livros do Júlio Verne eram muito apreciados e eu lembro-me sempre de ouvir falar do Michael como sendo o Michael Strogoff, o correio do czar.” Uma sobrinha-neta de Michael, que prefere não ser identificada, também se lembra bem de ouvir a avó, Raquel, falar do irmão perdido na guerra. “Eu adorava que a minha avó contasse histórias de família e ela falava muitas vezes do Michael, com grande tristeza. Contava como tinha sido deportado e morrera em vagões de gado”, diz.
A Comunidade Israelita de Lisboa ainda guarda o “Termo de Nascimento” de Michael Joseph Fresco, um dos seis filhos de Nissim e Sultana Fresco, dois judeus turcos de Constantinopla que se haviam fixado em Lisboa, no final do século XIX. Dos seis irmãos — Alberto, Miriam, Rebeca (que haveria de mudar o nome para Raquel depois de casar com um português de uma família profundamente católica), Vitória, Michael e Ventura —, Michael é o único cuja morte nos campos de concentração nazis está confirmada. Apesar de a deportação e morte de Michael em Auschwitz ser algo de que Alberto se recorda de ouvir falar desde criança, não sabe precisar quando é que o primo emigrou para França, nem se se casou, se teve filhos ou em que condições é que foi preso. A neta de Raquel lembra-se de a avó contar que o irmão casara e que fora denunciado aos alemães “por um cunhado francês”. Alberto diz que essa é “uma história” que também já ouviu, mas que nunca foi confirmada. Pode ter acontecido que, à semelhança de outros passageiros do comboio n.º 813, Michael Fresco tenha respondido voluntariamente à convocatória para apresentação às autoridades feita a todos os judeus estrangeiros residentes em França, a 14 de Maio de 1941, pelo regime de Vichy, e que ficaria conhecida como a rafle du billet vert.
Do que não há dúvidas é que Michael Fresco residia no Quai d’Orléans, n.º 11, em Nantes, antes de ser detido. Os nazis eram meticulosos nos registos que faziam dos prisioneiros e o certificado que atesta a morte do português em Auschwitz escapou à destruição organizada de todos os registos, pelos alemães, nos últimos meses da guerra. Além da morada de Michael, o documento indica que ele morreu às 15h20 do dia 24 de Julho de 1942, menos de um mês depois de chegar ao campo que, por esta altura, já se expandira para os terrenos em Birkenau e se tornara numa verdadeira máquina organizada de matar. Para aqueles que não eram imediatamente seleccionados para as câmaras de gás, a esperança de vida era de poucos meses, Graças ao trabalho escravo que eram obrigados a suportar, à subnutrição ou às experiências médicas ali desenvolvidas. No caso de Michael, a causa de morte apontada pelos nazis é hidropisia cardíaca.
Rebecca Boehing, directora do International Tracing Service (ITS), na Alemanha, avisa que estas “certidões de óbito” devem ser olhadas com reserva. “Muitos dos nossos documentos foram criados pelas autoridades nazis, por isso se os nazis dizem: ‘o seu avô morreu de um ataque cardíaco, numa situação normal…’ Bom, não havia nada de normal em estar num campo de concentração, por isso é preciso contextualizar. Talvez tenha havido um ataque cardíaco, mas o que se passou? Que esforço foi feito antes?”, questiona. Esta norte-americana, historiadora na Universidade de Maryland, Baltimore County, dirige o ITS desde Janeiro de 2013. Criado ainda antes do final da guerra, em 1943, pelos Aliados, o ITS congrega toda a documentação relativa aos campos de concentração. Estão ali fichas de nomes, listas de entrada ou de transferência dos campos, os Livros dos Mortos, em que se registavam as vítimas, as fichas de avaliação médica e as relações dos bens que os prisioneiros transportavam, cartões de identificação e, até, listas de pessoas com piolhos em determinado campo, que pormenorizam quantos piolhos foram encontrados em cada uma no dia em causa (os piolhos eram os principais transmissores de tifo, uma das doenças que mais assolaram os campos de concentração). O ITS guarda cerca de 30 milhões de documentos relativos aos prisioneiros dos campos, aos homens e mulheres submetidos a trabalhos forçados durante o regime nazi e aos sobreviventes, que passaram pelos chamados Campos de Deslocados. Em Outubro de 2013, os seus arquivos foram classificados pela UNESCO como Memória do Mundo, pelo “valor excepcional e importância para a humanidade, pelo seu contributo para o conhecimento do impacto da guerra nas pessoas”. Apesar da sua longa existência, o ITS só se abriu ao público em 2007. Até aí, apenas as vítimas directas do nazismo ou os seus familiares podiam aceder à informação guardada em três edifícios na pequena cidade no centro da Alemanha, Bad Arolsen. A digitalização de um elevado número de documentos e o alargamento dos objectivos do ITS, que passaram a incluir o acesso à pesquisa académica ou jornalística, disponibilizaram um manancial de informação de um valor inestimável. Permitiu, por exemplo, que se tornasse muito fácil responder a uma pergunta que até há pouco tempo não se fazia: houve portugueses nos campos de concentração?
Emílio Pereira
Emílio Pereira foi deportado para o campo de Buchenwald, como atesta a sua ficha de prisioneiro.

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