30/04/2014

O Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado tem um clone

O clone do Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado, de 1571, é a estrela da exposição na Torre do Tombo, em Lisboa, para poder ver a muito elogiada cópia do pergaminho onde pela primeira vez aparece Macau e que é também o primeiro manuscrito em pergaminho submetido agora a estudos de pigmento.
Clones, cópias de alta qualidade de documentação histórica ou “obras-primas” conservadas nas bibliotecas e museus mundiais é o que faz o espanhol Manuel Moleiro, fundador da editora M. Moleiro. É responsável pela reprodução das 18 folhas do Atlas de Fernão Vaz Dourado, a obra maior do autor e descrita como uma das mais belas da cartografia renascentista europeia, numa edição única de 987 exemplares certificados. Nela são respeitadas desde as técnicas de pintura miniaturista renascentista que eram apanágio de Vaz Dourado até às marcas do tempo deixadas no pergaminho. São novos manuscritos a partir de manuscritos centenários. Esta é a primeira reprodução do atlas, que integra o acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e que agora passará não só a estar ao dispor (por um preço de cerca de 2000 euros) de quem o queira estudar, mas sobretudo manusear e folhear como até aqui era quase impossível. Os clientes da M. Moleiro são sobretudo e precisamente as universidades, bibliotecas, museus, mas também particulares entre os quais papas, reis, presidentes e, lê-se no portefólio da editora, prémios Nobel como Saramago. Foi Manuel Moleiro que, em 2006, abordou a Torre do Tombo para esta empreitada, que ao longo de anos e com um conjunto de peritos de várias faculdades e museus portugueses esmiuçou desde a biografia do próprio atlas até às suas cores, tintas e iconografia. Tal resultou numa outra publicação, um livro de 200 páginas que junta vários estudos com tradução em quatro línguas com “uma perspectiva inovadora, mas sem perder a própria memória da peça e do que ela representa”, como descreveu Silvestre Lacerda, subdirector-geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, em conferência de imprensa. Não estando em risco nem em mau estado, explica, “era fundamental estabilizar o Atlas” original cuja “encadernação estava a criar algumas tensões no pergaminho e corria o risco de provocar desintegração de parte dos pigmentos” com o tempo. A exposição O Gabinete das Maravilhas: atlas e códices dos melhores arquivos e bibliotecas do mundo, na Torre do Tombo integra cópias de manuscritos que são talvez os mais importantes feitos na Europa. O manuscrito mais antigo é um tratado de medicina (Tratactus de Herbis, de 1440), e encerra com um manuscrito árabe de 1582, o Livro da Felicidade.
Inaugurada no dia 29 de abril, a exposição integra cerca de 30 obras. Com entrada livre, prolonga-se até 21 de Junho na Torre do Tombo, mostrando o resultado de dois anos de trabalho, das fotografias do atlas original por Luís Pavão à sua desencadernação, passando pela comparação com outros mapas da época. Este é um dos seis atlas conhecidos de Vaz Dourado, que trabalhava a partir de Goa, sendo que apenas dois estão em Portugal, este na Torre do Tombo e outro na Biblioteca Nacional. Esteve na Cartuxa de Évora desde o princípio do séc. XVII, até chegar ao Tombo nos anos 1930.
O professor da Universidade do Porto João Carlos Garcia foi o coordenador científico do livro e se inicialmente estava renitente em debruçar-se sobre o atlas por se tratar de mais um exemplar da “época áurea da cartografia portuguesa”, amplamente estudada, o “romance policial” que foi este novo estudo crítico levou-o e à equipa a outras abordagens que não a “leitura nacionalista da cartografia portuguesa”. “Um mapa é antes de mais uma construção cultural e, como um texto, tem leituras e abordagens diversas”, lembrou, porque “quem tem o melhor mapa ganha a guerra”. Descobriu-se que a encadernação do atlas foi feita em quatro momentos entre o século XVI e o século XX, que há cores e pigmentos típicos do românico português (como o verde-garrafa) que indicam que a obra usou de facto tecnologia portuguesa. Também se destaca que a paleta do Atlas inclui dos mais ricos e duradouros pigmentos da época. Defende-se a tese, corroborada pela análise aos pigmentos, de que Vaz Dourado, sobre cuja misteriosa biografia pouco se descobriu, seria antes de mais um iluminador-cartógrafo e não o contrário.
E ali está então um mapa que “é Tordesilhas”, diz João Carlos Garcia, dominado por Portugal e Castela, com aparições tímidas dos vizinhos europeus e de chineses e árabes, com “uns autocolantes”, brinca sobre as cartelas e brasões que decoram o atlas, “para tapar a ignorância”. O mapa mostra também os vazios – “o que ainda não se sabe, o miolo" de muitos continentes e grandes extensões das suas costas.
Trata-se também de um atlas especial por ser “uma obra de aparato”, como descreve Silvestre Lacerda, e por isso resistiu até hoje - ainda que com duas páginas em falta, uma das quais o frontispício, mas de que sobreviveram reproduções e descrições. “São presentes de Natal, obras de luxo, não era com eles debaixo do braço que iam à Índia ou ao Brasil”, sorri João Carlos Garcia na apresentação aos jornalistas, lembrando que a insistência na manufactura e nas técnicas plásticas renascentistas e a resistência à impressão e consequente reprodução tornaram os atlas de Vaz Dourado em obras preciosas.
Os custos de todo o trabalho e da exposição foram suportados pelo editor espanhol. A exposição inclui outros três atlas portugueses “quase-originais” - o Atlas Miller, de 1519, o Atlas Vallard, de 1547, e o Atlas Universal de Diogo Homem, de 1565, todos em colecções no estrangeiro, da Rússia à Califórnia.
Pormenor do Atlas Universal de Fernão Vaz Dourado, 1571

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