A publicação deste livro vem contar-nos a saga de uma verdadeira dinastia de construtores lisboetas de cravos, pianofortes e pianos.
A construção de instrumentos de tecla foi sempre muito residual (5 ou 6 construtores por geração) e dependente da clientela de conventos e igrejas, de alguns teatros e fidalgos, as lojas e as oficinas não estavam agrupadas em rua própria, como as de outros misteres («geografia corporativa») e, por isso, a autora foi obrigada a percorrer com o dedo, folha a folha, de alto a baixo, uma massa quase infinita de século e meio de documentos paroquiais e fiscais disseminados por várias freguesias de Lisboa e arredores para dela fazer emergir três gerações de Antunes, sua genealogia, sucessivas residências e cinco oficinas.
Para mais, a ascensão e queda ou colapso absoluto desta nobre actividade percorre um período histórico particularmente fustigado por condições adversas: do grande terramoto de 1755 às invasões francesas, saída da corte para o Brasil e crise económica consequente; das lutas liberais à extinção das ordens religiosas; da pequena concorrência dos construtores estrangeiros instalados no nosso país aos privilégios fiscais de fabricantes sobre artesãos; até à importação de instrumentos de tecla franceses, austríacos e italianos — como «pianos de diversas marcas e proveniências, produzidos em grande quantidade e a preços competitivos […] golpe de misericórdia nos construtores nacionais» (por casas especializadas, como Sassetti & C.ª, fornecedora exclusiva do Conservatório Real de Lisboa em 1858, ou da Casa Real).
Em 1860, o neto do fundador desta dinastia, João Baptista Antunes II — que foi afinou pianos no Conservatório por recomendação do celebrado compositor João Domingos Bontempo encontrava-se «completamente espoliado» e penhorado, «não tendo cama em que se deitasse» (acto de arrecadação, citado nas pp. 70-71), muito embora, em 24 anos de fábrica, tivesse construído 15 pianos e um número indeterminado de cravos.
A deriva dos Antunes é também ela uma crónica da vida urbana desses tempos, em que familiares se acolhem solidariamente, mudam amiúde de casa mas quase sempre no mesmo bairro e freguesia ou até na mesma rua, ou exercem actividades suplementares — afinador e alquilador de cravos e pianos, mas também vinicultura em Colares e taberna na Rua das Salgadeiras, ou leiloeiro de móveis e pianos usados, dispondo de parelha de animais para aluguer de transporte — como «estratégia de sobrevivência» ou almofada económica em períodos maus. Noutro sentido, os filhos de José da Cruz Antunes I (1767-1845) fizeram casamentos que lhes proporcionaram «ligação a outros contextos profissionais e a manutenção de um estatuto social privilegiado». Mas também é consequência dum corpo de leis profissionais, regimentos e posturas da cidade, por exemplo quanto ao período e distinto estatuto de aprendiz, jornaleiro e mestres, respectivos exames (ou contornos da lei).
O capítulo «Instrumentos sobreviventes das oficinas Antunes» é um dos mais curiosos do livro e dos mais desanimadores. O cravo de 1758, classificado como Tesouro Nacional, precede do Convento dos Cardeaes, onde foi descoberto por Michel’angelo Lambertini nos inícios do século passado, esteve de 1931-45 a 1971 no Museu Instrumental do Conservatório de Lisboa, passou pela Biblioteca Nacional mas só em 1987 foi objecto de restauro na casa alemã Neupert, em Bamberg, que o tornou «instrumento de eleição dos cravistas para execução de composições coevas». O pianoforte de 1767, pertencente a um convento próximo de Lisboa, foi resgatado às hastas públicas de 1834 pelo luthier e professor de música Ernesto Victor Wagner, pertenceu ao magnata Monteiro dos Milhões e seus herdeiros até 1990, acabando vendido ao National Music Museum dos Estados Unidos da América pela inglesa Sotheby’s — e por «uma verdadeira pechincha», nas palavras do professor de Oxford Jeremy Montagu. O cravo de 1785, adquirido pela família O’Neill em 1834 para a sua Quinta do Pinheiro, também passou pela leiloeira londrina em 1985, indo para um museu que o restaurou dois anos depois e revendeu a um anónimo norte-americano em 2016. O cravo de 1789 — pertencente ao Museu Nacional da Música, e de teclado extenso e decoração do tampo harmónico sui generis — aguarda ainda «a monografia pormenorizada e uma restauração completa por quem percebe de instrumentos de tecla ibéricos, ou seja latinos»que o também esquecido Santiago Kastner (1908-92) recomendou ao Conservatório Nacional na década de 1970.
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