As hipóteses ou meras suposições persistem em manter a famosa
batalha de Ourique como um dos pontos mais incertos da história de
Portugal, realça Jorge Alarcão, no ensaio Ourique
– O Lugar Controverso.
A história regista que o confronto militar entre os cristãos liderados
por Afonso Henriques e os muçulmanos, que alguns investigadores referem terem
sido comandadas por Esmar, governador de Córdova, Granada e de todo o al-Andaluz,
terá ocorrido no dia 25 de julho de 1139, mas subsistem, nos dias de hoje,
dúvidas sobre o sítio exato onde decorreu o combate. Poderá ter tido lugar em
Castro Verde, no distrito de Beja; em Campo de Ourique, perto de Leiria; Chão
de Ourique, em Penela; Vila Chã de Ourique, no Cartaxo ou, ainda, em Campo de
Ourique junto a Campolide, Lisboa. O concelho de Ourique, no Baixo Alentejo, é
a localização tradicionalmente aceite, mas o documento mais antigo que se reporta
a esta localidade do distrito de Beja, a sua carta de foral, concedida por D.
Dinis em 1290, nada refere sobre a batalha.
A maioria dos historiadores, a começar em Alexandre Herculano, sempre
defendeu que a batalha teria ocorrido na povoação de Ourique, no Baixo
Alentejo, mas também há os que insistem em realçar a incoerência e os factos
não provados na referida localização.
José Mattoso admite que «Ourique parece ser, de facto, a primeira
grande batalha de Afonso Henriques com os Almorávidas, e que o confronto terá
ocorrido em julho de 1139». Relativamente ao local da batalha, José Mattoso
também não avança certezas. «Podemos apenas admitir que, durante o Verão de
1139, Afonso Henriques dirigiu um fossado (incursão rápida em terras ocupadas
pelo inimigo) constituído por forças bastante mais numerosas do que o habitual
e que, apesar de ter sido atacado ou de atacar ele próprio um exército
considerável, regressou cheio de glória ao território cristão. Ourique foi a
sua primeira grande vitória contra os mouros».
Os indícios históricos e arqueológicos mais plausíveis sugerem que a
batalha terá sido travada no concelho vizinho, Castro Verde, no lugar de S.
Pedro das Cabeças, numa pequena elevação de terreno com 245 metros de altura.
Conta uma das lendas, provavelmente inspirada na tradição oral, que o confronto
militar decorreu nos dias 24 e 25 de julho, do ano de 1139, e que «a mortandade
foi tanta que as águas da ribeira de Cobres se tingiram de vermelho».
No entanto, o ensaio publicado pelo professor Jorge de Alarcão pretende
mostrar, contra a tendência maioritária, que talvez a batalha se não tenha
travado no Baixo Alentejo, considerando «a situação político-militar de
cristãos e muçulmanos em 1139», é «mais verosímil» que o cenário do confronto
se deva localizar «na região de Leiria». Alarcão procura demonstrar que, tendo
sido a cidade de Leiria reconquistada pelos muçulmanos em 1137, «não parece
despropositado» que Afonso Henriques tenha «de imediato encarado a hipótese de
vingar essa tomada» encarando a batalha (de Campo de Ourique) como «um episódio
da reconquista de Leiria». E reforça esta hipótese com a referência a um
achamento, no local, por volta de 1870, de numerosos esqueletos de indivíduos
que teriam sido enterrados verticalmente e sem armas, as quais terão ficado na
posse dos cristãos.
Deixando de lado o significado ideológico que alimenta as discussões
acerca do lugar onde a batalha se realizou, sabe-se, hoje, que o evento bélico
foi revestido – sobretudo a partir do século XV – de elementos simbólicos com
destaque para o mito fundacional da nação portuguesa. José Mattoso faz
referência à necessidade de «imaginar uma intervenção divina que demonstrasse o
seu sentido transcendente e que sublimasse a função de Afonso Henriques como
enviado por Deus para esmagar os inimigos da fé». O aparecimento de Cristo a
Afonso Henriques na véspera da batalha revelava a propensão para mitificar o
acontecimento ligando-o à fundação da nacionalidade e à aclamação de Afonso
Henriques como rei, depois de ter derrotado cinco reis mouros, outra das lendas
associada à batalha de Ourique. No entanto, sobre a batalha real não há
qualquer alusão tanto na historiografia peninsular não-portuguesa como nas
fontes árabes.
Outras versões relacionadas com lendas e narrativas são
reveladoras da desproporção numérica das forças cristãs, sempre em muito menor
número que o dos combatentes do Islão: 1000 cavaleiros e 10.000 peões cristãos
contra 400.000 ou mesmo 900.000 muçulmanos.
Camões não esqueceu o feito heroico dos cristãos e exaltou-o no Canto
III d‘Os Lusíadas: «Cinco reis mouros são os inimigos,/ dos quais o principal
Ismar se chama/ todos experimentados nos perigos / da guerra, onde se alcança a
ilustre fama».
A lenda sobre a fundação que subordinava Portugal à proteção divina,
assim como os contornos míticos da batalha, foi posta em causa, a partir de
meados do século XIX, pelo historiador Alexandre Herculano. O escrutínio sobre
o acontecimento de Ourique levantou forte polémica sobre a historicidade e a
validade da tradição da aparição de Cristo a Afonso Henriques nos alvores da
nacionalidade, analisa a historiadora Ana Isabel Buescu. A crítica com que Herculano
se envolveu no combate à «questão da tradição fundadora» veio alimentar um «violento
antagonismo entre o historiador e parte do clero». Veio também demonstrar que «a
tradição fundadora, longe de se apresentar meramente como pretexto de
controvérsia, correspondia ainda a uma representação das origens» e surgia «fortemente
ideologizada». Incisivo, Alexandre Herculano argumentava: «A grande religiosidade
da Idade Média foi um dos fatores para o desenvolvimento do carácter místico
atribuído à batalha de Ourique – na crença que havia na existência de milagres
interventivos na vida dos povos e neste caso colocando Portugal como país amparado
pela vontade de Deus».
A controvérsia sobre a famosa batalha de Ourique não terminou. Os
aspetos míticos projetados por relatos maravilhosos
permanecem no imaginário dos portugueses e o seu significado simbólico mereceu,
em 2016, uma menção do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, no seu
discurso de tomada de posse: «Aqui se criaram e sempre viverão comigo aqueles
sentimentos que não sabemos definir, mas que nos ligam a todos os portugueses.
Amor à terra, saudade, doçura no falar, comunhão no vibrar, generosidade na
inclusão, crença em milagres de Ourique, heroísmo nos instantes decisivos».
E a força ideológica do evento histórico estende-se a vários dos
concelhos onde se encontram lugares com o nome Ourique. No concelho de Ourique ergue-se uma estátua a Afonso Henriques e um monumento
evocativo da Batalha de Ourique. «A expressão maior da força dos guerreiros de
uma Nação emergente ou do Milagre de Ourique» é a mensagem que o município
local quer presente no imaginário dos habitantes e dos que visitam a terra. No
concelho vizinho de Castro Verde, um monumento evocativo simboliza o local da
batalha em S. Pedro das Cabeças e um obelisco na sede do concelho reforça a
convicção que o confronto entre cristãos e muçulmanos teve ali lugar. Em 2014,
a Escola de Belas-Artes do Porto e duas jovens de Castro Verde pintaram um painel
com 12 metros de comprimento em S. Pedro das Cabeças que simboliza o confronto
guerreiro. Para lá do Tejo, na freguesia de Vila Chã de Ourique, no concelho do
Cartaxo, foi inaugurado em 1932 um monumento alusivo à Batalha de Ourique. Convicta,
a comunidade afirma que, «apesar de existirem opiniões divergentes, se acredita
que tenha acontecido nas terras desta freguesia, entre D. Afonso Henriques e os
muçulmanos, em 1139».
Batalha de Ourique, painel de azulejos de Jorge Colaço (1868-1942) no Centro Cultural Rodrigues Faria (Esposende). |
Monumento evocativo da batalha de Ourique (S. Pedro das Cabeças, Castro Verde). |
Monumento evocativo da batalha de Ourique (Vila Chã de Ourique, Cartaxo, 1932). |
Monumento evocativo da batalha de Ourique, (Castro Verde, c. 1989). |
Monumento evocativo da batalha de Ourique, autoria de Helena Passos e Miguel Rego (Ourique, 2008). |
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