16/08/2018

O mundo de livros científicos das instituições religiosas nos séculos XVIII e XIX


Em 1764, a biblioteca dos Oratorianos das Necessidades, em Lisboa, contava com uma coleção de 20.000 volumes que valia cerca de 100.000 cruzados. Os antigos códices manuscritos do Mosteiro de Alcobaça da Ordem de Cister eram frequentemente procurados pela sua raridade e pedidos emprestados nas bibliotecas mais célebres da Europa para serem diligentemente copiados. Os religiosos portugueses tinham celas cheias de livros, não obstante os votos de pobreza e as proibições determinadas pela Santa Obediência. Nas instituições religiosas havia lugares alternativos de conservação dos livros que formavam «constelações» de bibliotecas mais especializadas. Um exemplo é o Convento de Nossa Senhora de Jesus de Lisboa dos Franciscanos Terceiros, atualmente a Academia das Ciências, que além da sua magnífica biblioteca existia também a «Bibliotheca pequena», que reunia mais de 2000 «Livros escolhidos», essenciais para o aproveitamento das aulas e dos estudos.
Para as congregações religiosas, qualquer atividade cultural era impensável sem livros. Desenvolver um sistema de apetrechamento das bibliotecas bem articulado e orgânico tornou-se, desde muito cedo, uma das principais necessidades. As congregações religiosas destacaram-se pela grandiosidade das suas coleções, pela regularidade de compra de livros e pela internacionalidade da rede de fornecedores. Portugal contava com mais de 500 instituições religiosas nos séculos XVIII e XIX e cada uma destas instituições representava um verdadeiro mundo de livros.
Nas casas religiosas, também o livro científico encontrou um contínuo e habitual canal de circulação. A existência de livros científicos entre os regulares portugueses nunca foi deixada ao acaso. Cada livro que chegava a um convento, por as mais variadas circunstâncias (compra, herança, doação, etc.), era objeto de um processo de seleção rigoroso que avaliava a sua utilidade e pertinência. Um livro desatualizado ou considerado inútil, na maioria dos casos, era revendido para fora do convento. Em Portugal, nunca faltaram os melhores autores, as edições mais recentes e as obras de conteúdos científicos complexos. Muitos destes livros de ciência chegaram ao país nos baús dos eclesiásticos das mais diferentes ordens religiosas.
Frei João lia, na língua original, a Óptica de Newton de 1730 à luz de vela na sua cela do Mosteiro dos Jerónimos. Frei Caetano, do Mosteiro Beneditino de Paço de Sousa, desejava comprar livros de matemática para satisfazer a sua ávida sede de conhecimento. Mestre Pedro aconselhava o padre bibliotecário do Colégio de Santo Agostinho de Coimbra a comprar obras científicas sofisticadas, entre as quais várias de Arquimedes, para usá-las nas aulas.
O Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa dos Eremitas de Santo Agostinho possuía uma biblioteca de 30.000 volumes em que 9% eram livros científicos. O convento feminino de Santo Alberto das Carmelitas Descalças de Lisboa tinha interesse em possuir livros de medicina e cirurgia. Os padres do Mosteiro de São Bento da Saúde, em 1789, procuravam o Tratado Elementar de Química de Lavoisier para a biblioteca da sua botica. Existiam nas bibliotecas eclesiásticas portuguesas globos, planetários e até máquinas elétricas. As bibliotecas institucionais das congregações religiosas podiam estar abertas a leitores seculares e os próprios mercadores de livros compravam uma grande quantidade de obras aos conventos para revendê-los nas suas lojas.
Durante séculos, cristalizou-se uma imagem bem diferente aos olhos da erudita intelligentsia europeia sobre o mundo ibérico e as raízes religiosas da sua cultura: bibliotecas cheias de pó, edições desatualizadas, monges ignorantes. Quando, ao contrário, para o bibliotecário da Congregação do Oratório do Porto, assim como para muitos outros, incentivar as compras de «livros modernos, produzidos pelos progressos das Sciencias» constituía uma verdadeira missão. No silêncio dos mosteiros, as teorias novas e as ideias inovadoras chegavam sob a forma de livros, convertendo-se em hábitos científicos e criando comunidades de praticantes anónimos e pouco conhecidos.
Pormenor de desenho da Biblioteca do Mosteiro de Alcobaça do catálogo de 1701 (Biblioteca Nacional).
Planta da Biblioteca do Mosteiro de Alcobaça do catálogo de 1684 (Biblioteca Nacional).
Exemplar de De Re Aedificatoria Libri Decem (Estrasburgo 1541), de Leo Baptista Alberti, com marca de posse manuscrita e carimbo da biblioteca do Mosteiro de S. Vicente de Fora (Biblioteca Nacional).

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