O que podemos saber sobre a repartição da riqueza e a sua evolução desde que existe o capitalismo? Se é certo que ela é sempre desigual, e se é certo que existem dados seguros para a estudar, pelo menos, desde o século XVIII em França, verificamos que essa desigualdade tem vindo a diminuir nos últimos 200 e tal anos? Ou, pelo contrário, tem vindo a aumentar? Como devemos aferir a justiça ou injustiça da repartição desigual da riqueza no quadro do capitalismo? O que nos diz ela sobre o próprio capitalismo como sistema de produção e distribuição de riqueza? Estas são as perguntas fundamentais do livro de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI.
Paul Krugman chamou-lhe “o livro da década”. Stiglitz, Solow, Milanovic e outros economistas de topo foram igualmente elogiosos. Escreveram-se entretanto dezenas de recensões. Todos os dias aparece uma nova, ou mais do que uma. As recensões mais recentes são quase todas de economistas de direita que procuram pôr em causa as principais teses de Piketty. Outras são igualmente críticas, embora venham de economistas de esquerda. A estes, Piketty parece porventura demasiado favorável ao capitalismo; àqueles, demasiado hostil. De facto, a sua concepção do capitalismo implica, por um lado, prezá-lo como um extraordinário produtor de riqueza, de inovação, de tecnologia, de bem-estar, em suma: de desenvolvimento — mas, por outro, implica condená-lo como um sistema que tende a repartir a riqueza de um modo demasiado desigual e, na verdade, injusto e anti-democrático.
O livro é uma história do “capital”, como o título indica. “Capital”, para Piketty, tem um sentido lato (na verdade bastante conforme com o uso comum do termo), e significa o mesmo que “património”, ou “riqueza”: designa todo e qualquer “activo” (financeiro ou não financeiro, produtivo ou não produtivo) em que seja possível investir e que possa, por isso, proporcionar um retorno, seja este um retorno explícito (sob a forma, por exemplo, de rendas, dividendos, juros, ou lucros), seja um retorno implícito (como, por exemplo, a renda de habitação que não se paga quando se tem casa própria). Segundo Piketty, só este conceito de capital (nada usual na ciência económica) permite compreender o capitalismo e estudar a desigualdade económica no sistema capitalista — só esse conceito de capital permite desenvolver os métodos e explorar as fontes que conduzem à compreensão dos mecanismos da distribuição desigual do património, isto é, dos mecanismos que explicam a desigualdade não apenas (e não tanto) como um fenómeno resultante de diferenças salariais (ou de rendimentos do trabalho) quanto de diferenças na repartição da riqueza (e, portanto, no retorno do capital).
Ora, a novidade do livro está precisamente na sua tese principal sobre esses mecanismos. Podemos dividi-la em dois pontos fundamentais e formulá-la deste modo:Paul Krugman chamou-lhe “o livro da década”. Stiglitz, Solow, Milanovic e outros economistas de topo foram igualmente elogiosos. Escreveram-se entretanto dezenas de recensões. Todos os dias aparece uma nova, ou mais do que uma. As recensões mais recentes são quase todas de economistas de direita que procuram pôr em causa as principais teses de Piketty. Outras são igualmente críticas, embora venham de economistas de esquerda. A estes, Piketty parece porventura demasiado favorável ao capitalismo; àqueles, demasiado hostil. De facto, a sua concepção do capitalismo implica, por um lado, prezá-lo como um extraordinário produtor de riqueza, de inovação, de tecnologia, de bem-estar, em suma: de desenvolvimento — mas, por outro, implica condená-lo como um sistema que tende a repartir a riqueza de um modo demasiado desigual e, na verdade, injusto e anti-democrático.
O livro é uma história do “capital”, como o título indica. “Capital”, para Piketty, tem um sentido lato (na verdade bastante conforme com o uso comum do termo), e significa o mesmo que “património”, ou “riqueza”: designa todo e qualquer “activo” (financeiro ou não financeiro, produtivo ou não produtivo) em que seja possível investir e que possa, por isso, proporcionar um retorno, seja este um retorno explícito (sob a forma, por exemplo, de rendas, dividendos, juros, ou lucros), seja um retorno implícito (como, por exemplo, a renda de habitação que não se paga quando se tem casa própria). Segundo Piketty, só este conceito de capital (nada usual na ciência económica) permite compreender o capitalismo e estudar a desigualdade económica no sistema capitalista — só esse conceito de capital permite desenvolver os métodos e explorar as fontes que conduzem à compreensão dos mecanismos da distribuição desigual do património, isto é, dos mecanismos que explicam a desigualdade não apenas (e não tanto) como um fenómeno resultante de diferenças salariais (ou de rendimentos do trabalho) quanto de diferenças na repartição da riqueza (e, portanto, no retorno do capital).
(1) A história económica dos últimos 220 anos em mais de 20 países mostra que o capitalismo é um sistema de produção que, excepto em circunstâncias muito particulares, gera enormes desigualdades na repartição da riqueza — e isso fundamentalmente porque, nesse sistema, a “taxa de rendimento do capital” (r) tende a ser, em média e no longo prazo, maior do que a “taxa de crescimento da produção” (g), ou seja, porque, tendencialmente (ou segundo um padrão que se verifica no longo prazo), r > g;
(2) o que isso significa é que o capitalismo foi sempre — e continua a ser hoje, na época da sua maior globalização e financiarização — um capitalismo patrimonial, isto é, um sistema de produção e distribuição de rendimento que, a partir de uma maior ou menor desigualdade inicial, gera sempre, de forma endógena e progressiva, acumulação e concentração de património (ou capital) nas mãos de uma percentagem muito minoritária de famílias. No longo prazo e na medida em que r > g (ou seja, na medida em que “as pessoas com riqueza herdada só precisam de poupar uma porção do seu rendimento sobre o capital para que este capital cresça mais depressa do que a economia como um todo”), uma sociedade capitalista acaba sempre por ser uma “sociedade de herdeiros”.
O ponto (1) é novo na teoria económica porque é nova a ideia de que a história do capitalismo revela o padrão r > g e, portanto, é nova a tese de que este padrão é, na verdade, o principal mecanismo que explica por que razão o capitalismo gera desigualdades de forma endógena. Esta ideia de um “mecanismo” — como mecanismo endógeno e historicamente comprovado — tem uma força imensa. O tempo dirá se é ou não descabido fazer a seguinte analogia: tal como a força e a novidade do pensamento de Darwin consistiu, não na descoberta da evolução das espécies, mas antes na descoberta de um mecanismo (a “selecção natural”) que explicava a evolução das espécies e a tornava plausível, assim também a força e a novidade do pensamento de Piketty consiste, não certamente na descoberta da desigualdade, mas antes na descoberta do mecanismo que a explica e que a mostra ser intrínseca ao capitalismo.
O ponto (2) é novo na teoria económica porque, nas últimas décadas, os estudos sobre as desigualdades pressupuseram, no fundo, uma sociedade de empreendedores e não de herdeiros. Por isso, tais estudos trataram essencialmente das desigualdades no rendimento do trabalho (por exemplo, da diferença entre os salários do 1% mais bem pago e os salários dos restantes 99%). Não contaram com o r = “taxa de rendimento do capital”, pois não calcularam o valor de β = a ratio entre o capital acumulado e a produção anual de um país (PIB). Segundo os números de Piketty e do vasto número de economistas que com ele colaboram, num país do primeiro mundo o capital acumulado (i.e. o património ou riqueza) tende a ser cerca de 600% do PIB, ou seja, um tal país precisa de 6 anos para produzir um rendimento equivalente à riqueza que já foi acumulada e que, portanto, já existe como património ou capital (basicamente privado) desse país. O principal factor do progressivo aumento das desigualdades num país deste tipo é a taxa de retorno desse capital acumulado, ou seja, o facto de essa taxa de retorno permitir níveis de poupança (s) que o rendimento do trabalho não pode proporcionar. Portanto, o capitalismo é, de facto, o sistema do “empreendedor” — mas todo o empreendedor, se tem sucesso, acaba por ter rendimentos sobre o seu capital (como todo o “rentista” do século XVIII ou XIX) e, dessa forma, acumular um património que tenderá a ser legado e a crescer na geração seguinte. O mecanismo que explica a desigualdade e que a mostra ser intrínseca ao capitalismo é um mecanismo de acumulação patrimonial, portanto um mecanismo pelo qual, como diz Piketty, “o passado tende a devorar o futuro”: não só o rendimento sobre o capital tende a crescer em percentagem em relação à totalidade do rendimento nacional, como as fortunas que eram maiores no passado tendem a tornar-se ainda maiores no futuro.
Thomas Piketty |
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