O líder político e militar Almançor desperta uma guerra santa que estivera adormecida
durante mais de meio século, para se legitimar no poder e fazer esquecer que é
um usurpador. Para que não existam dúvidas do seu fervor religioso, demonstra publicamente uma piedade irrepreensível. Recopia com o
seu punho um Corão que costuma levar consigo em campanha. Ignora-se se o decora
para fazer jus ao título de «hâfiz» (bela memória). Aparece também,
vestido de luto, a participar numa oração implorando por chuva. Ordena, em 988, a ampliação da Grande Mesquita de Córdova. Das
obras são incumbidos os prisioneiros cristãos, que erguem oito novas naves
laterais. Com a sua floresta de mil
colunas, em mármore, jaspe e pórfiro, os seus 19 portais, o pátio das abluções
e os seus 200 castiçais, com o seu «mirhab», o tabernáculo revestido
de ouro e mosaicos trabalhados à maneira de Bizâncio, o púlpito constituído por
37 pequenos painéis em marfim e madeiras preciosas, a mesquita é, então, o mais
belo templo muçulmano do mundo.
Para cristãos e judeus,
al-Andaluz continua a ser a terra de tolerância que sempre foi, e isto numa
época em que nenhum muçulmano pode estavelmente fixar-se na Ibéria católica. À
chegada, os conquistadores haviam encontrado uma Espanha na maior parte pagã,
onde o cristianismo ainda não ganhara raízes fortes, e os judeus sofriam as
perseguições dos visigodos. Todos acolheram bem os recém-chegados - servindo-lhes,
nalguns casos, de batedores até Toledo -, que não tinham intenção de os forçar
a converter-se. A maioria dos hispânicos adotará o islão; os cristãos não
convertidos aceitarão os costumes e a língua árabes. Apesar de ser
praticamente impossível construir novas igrejas, e de a apostasia ser punida
com a pena de morte, cristãos e judeus gozam de total liberdade de culto,
mediante o cumprimento de certas obrigações e o pagamento de impostos especiais
associados ao estatuto de «dhimmis» (contribuintes).
No coração do país mais urbanizado
da Europa, a Córdova de Almançor alberga perto de 200 mil habitantes, tantos
quantos o Cairo e dez vezes mais que os de Paris. Em população, só Bagdad e
Constantinopla a precedem. São às centenas as escolas e colégios, onde se
aplica a palavra do Profeta: «A tinta do aluno é mais sagrada do que o
sangue do mártir.» É capital do conhecimento, colmeia de eruditos,
juristas, médicos, sábios e poetas, «tão numerosos», diz um cronista, «como as areias do oceano». Em campanha, Almançor chega a fazer-se
acompanhar por 40 poetas de corte. O seu reinado preserva o esplendor cultural
de al-Andaluz, que atingirá o apogeu, após a abolição do califado, nos 26
pequenos Estados nascidos da sua pulverização. Assiste-se ao progresso da
ciência «árabe», que durante muito tempo terá um papel de vanguarda
em relação a todas as outras. Uma ciência importada primeiro do Oriente, sobre
um fundo de cultura helenística e latina, e se torna depois autóctone em todos
os domínios: álgebra, astronomia, biologia, botânica, zoologia, música. A Andaluzia
adota o sistema de numeração indiano, com uma base 10, antepassado do nosso e
cuja peça mestra é o zero. A partir de agora, os sábios árabes passarão a
preocupar-se menos em explicar a natureza do que em agir sobre ela. Esta
conversão estimula os talentos e as invenções. O melhor cirurgião muçulmano,
Abulcasis, vive então em Córdova. Lá se constrói um «planetário»;
fabricam-se astrolábios, relógios, quadrantes; utilizam-se as tábuas de
astronomia indianas; abrem-se parques zoológicos e jardins botânicos; apuram-se
farmacopeias. No tempo de Almançor, a cultura de al-Andaluz irradia até aos
Pirenéus, e para lá deles. Nos mosteiros catalães onde estuda, o jovem Gerbert
d'Aurillac, o futuro papa Silvestre II, absorve, maravilhado, o saber vindo de
Córdova. Sem sequer imaginar que a Espanha muçulmana ali introduziu tantas
outras técnicas e produtos que a Europa cristã irá descobrindo aos poucos, do
bicho-da-seda ao papel, passando pelo arroz, o açúcar, o algodão, os limões ou
os espargos. Esta sociedade consente o epicurismo. Um poeta, grande apaixonado
pela vida, escreve então: «Atravesso o círculo dos prazeres como um corcel
em fúria que toma o freio nos dentes.» Para retocar o seu perfil de
califa, Almançor afasta-se do Alcazar. Abd al-Rahman III tinha mandado
construir para si uma cidade-palácio, "Madinat al-Zahra", a oeste da
capital, no sopé da "Montanha da Desposada", que domina a planície de
Córdova. O "hadjib" imita-o. É ou não verdade que tem tudo a recear
dos humores de uma plebe obstinadamente fiel aos omíadas? Escolhe uma curva do
Guadalquivir, a leste de Córdova, para aí instalar uma nova cidadela, que
batiza quase como a precedente, "al-Madina al-Zahira" (a cidade que
brilha). Manda que o seu nome figure nas orações, nas moedas e, bordado a fio de
ouro, nas roupas de cerimónia. As duas cidades serão postas a saque quando da
guerra civil de 1009-1010, que instaura o caos. Da primeira ficaram ruínas
sumptuosas; da segunda não se encontram sequer vestígios.
Estas precauções não
chegam. Para neutralizar a velha aristocracia militar árabe e meter na ordem os
esclavónios, Almançor "berberiza" e reforma o exército. A África do
Norte, à qual Córdova estende pouco a pouco o seu protetorado, fornece-lhe um
viveiro quase inesgotável de mercenários berberes que atravessam o mar em clãs
inteiros, e em breve constituirão o grosso do exército omíada. São tratados com
desvelo, magnificamente equipados, armados dos pés à cabeça. Usando uma
política de mistura das unidades militares, que fará frequentemente escola longe
da Andaluzia, quebra as amarras familiares e tribais onde a nobreza de sangue
ia muitas vezes buscar a clientela e extrair a força. Sob o comando de
Almançor, o exército cordovês chega aos 60 mil homens, um número enorme para o
tempo. Para o financiar, vai ser necessário tributar os camponeses com novos
impostos, o que dará azo ao protesto e acarretará, a prazo, a ruína da
economia. A berberização do exército, agora menos fiel à dinastia dos omíadas,
apressará a queda do califado. Almançor segura firmemente as rédeas do poder.
Gerida com firmeza, competência e relativa justiça, a Espanha muçulmana possui
a melhor administração do mundo ocidental. O seu chefe garantir-lhe-á duas
décadas de tranquilidade aquém-fronteiras. Os criminosos e os conspiradores, mas
também os importunos, são castigados sem clemência, envenenados, ou
crucificados, atados a postes num embarcadouro do rio. Os espiões são eficazes,
a polícia vigia as ruas e os mercados. Volta a ser possível caminhar por
Córdova à noite sem grandes receios. A previdência preside ao aprovisionamento:
em 991, reservas de trigo empilhadas em silos substituem de imediato as
colheitas que uma invasão de gafanhotos destruiu. "Tenho mais cereal ao
meu dispor do que o próprio José", gaba-se Almançor um dia. A moeda -
moedas de ouro, prata ou cobre - é estável; o fisco, eficaz. O tesouro real
acumula-se em quatro casas-fortes do palácio, às quais se recorre todos os
meses, mas muito mais em junho, em vésperas das grandes expedições de Verão.
Almançor prepara cuidadosamente cada nova campanha. Ao vale do rio, a jusante
de Sevilha, onde o pasto abunda e vivem três mil éguas de criação e 300
garanhões, vão buscar-se os cavalos, que já estão à espera; na província de
Múrcia, reúnem-se os 400 camelos para o transporte da carga pesada; e o
exército, que em campanha depende das populações locais, não deixa Córdova sem
antes se ter certificado do estado das colheitas.
À Espanha cristã não resta
senão reforçar a defesa. As mais graves derrotas que Almançor lhe inflige ocorrem
em San Vincente, Zamora, Rueda (981), Barcelona (985), cujo revés dos cristãos
serve de pretexto ao rei dos francos, Hugo, o Capeto, para acelerar a sagração
do filho Roberto, em Leão (988), no termo de uma batalha que um astrólogo lhe
aconselhara ('Marcha contra essa cidade. Conseguirás apoderar-te dela!'), em
Ávila (994) e a seguir, após Compostela (997), em Cervera, no Ano Mil. Chegada
a velhice, Almançor é assaltado com mais frequência pela ideia da morte. Guarda
com ele a mortalha que as filhas talharam de uma peça de linho. No pino do
Verão de 1002, ao regressar de Castela, sente que o fim está próximo. Minado
por crises de gota, recusa ser tratado. É transportado em liteira por negros,
cujo andar é mais leve e flexível. No posto fronteiriço de Medinaceli, dita o
seu testamento político ao filho, Abd al-Malik. Aconselha-o a deixar intocado o
título de califa e a ilusão de autoridade que ele reflete. Ao ver o filho
chorar, prediz, com aspereza, mas também com lucidez: "Eis uma boa de
forma de pressagiar o fim próximo do império." Morre a 10 de agosto de
1002, quase a fazer 66 anos. É enterrado ali mesmo, sob uma austera pedra
tumular com dois únicos versos gravados em sua glória. Antes, porém,
recobrem-lhe a mortalha, conforme vontade expressa, com a poeira trazida
agarrada à roupa no regresso das expedições e que guardava consigo,
religiosamente, numa arca.
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Córdova no ano mil |