“Se vamos arriscar uma campanha como esta, inédita no país, temos de ser optimistas. E eu sou um optimista congénito”, diz António Filipe Pimentel, director de Arte Antiga. “Até já encomendámos a tabela da obra”, com a respectiva legenda e informação adicional. A campanha a que se refere destina-se a comprar a pintura Adoração dos Magos por 600 mil euros a um privado, descendente do primeiro duque de Palmela, e pretende atrair grandes e pequenos mecenas. Será a primeira do género em Portugal, embora seja prática comum em vários países há décadas. A ideia, explica, é envolver a sociedade civil na aquisição de uma “obra absolutamente excepcional” para o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), a sua “casa natural”, já que Sequeira (1768-1837) é o artista mais representado na sua colecção – 45 pinturas, embora 23 sejam esboços mais ou menos acabados, e 760 desenhos, mais de metade dos que lhe são hoje atribuídos (1417).
Quando António Filipe Pimentel chegou à direcção do MNAA, em 2010, já se discutia – e preparava – a compra da Adoração dos Magos (1828) desde o ano anterior. O seu dono, que prefere manter o anonimato, manifestara a intenção de a vender e disponibilizava-se a fazê-lo directamente ao museu, privando-se do valor mais alto que poderia atingir no mercado de leilões, sobretudo o português, já que, no estrangeiro, lembra Isabel Cordeiro, técnica do MNAA e antiga directora-geral do património, “Sequeira é muito pouco conhecido” e, por isso, não alimentaria grandes disputas. Seiscentos mil euros, garante o director do MNAA, é uma cifra definitiva, que não foi sujeita a qualquer negociação. Porquê este preço? É o valor pelo qual a obra foi segurada à data da última exposição que integrou (D. João VI e o seu tempo), no Palácio Nacional da Ajuda, em 1999, explica Pimentel. “É um preço com mais de 15 anos. Estou convencido de que no mercado nacional encontraria facilmente comprador e é muito provável que atingisse um valor mais elevado. O facto de o proprietário insistir que fique aqui é um acto de generosidade, de cidadania. É preciso não esquecer que o dono desta Adoração está à espera de a vender há seis anos. Tem estado à nossa espera.”
A relevância desta compra para o museu não tem a ver com valores de mercado, que dependem sempre das circunstâncias, sublinha Cordeiro, defendendo que o que interessa é o peso simbólico que a pintura tem para Portugal e para a colecção do MNAA. “Trata-se de uma obra de grande qualidade de um dos maiores pintores portugueses do século XIX, para muitas pessoas o maior. É vital para dar coerência e força ao discurso do museu sobre a pintura portuguesa, que começa um pouco antes dos Painéis de São Vicente [c.1470] e acaba em meados do XIX. Esta obra vem preencher uma lacuna, uma cratera, fechando com uma peça-chave a história que as galerias novas vão contar [a partir de 2016].”
Essa “lacuna” diz respeito à fase final de Sequeira – os últimos anos em Roma, de intensa experimentação – que, com a Adoração, passaria a estar representada “ao mais alto nível”. É impossível falar da sua carreira, argumenta Pimentel, sem nos demorarmos neste testamento que tem um “lado de exegese muito grande”, um “sentido profundo de fim”.
A pintura que o MNAA quer agora comprar faz parte da chamada “série Palmela”, um conjunto de quatro telas sobre a vida de Cristo (todas com 100X140cm) – Descida da Cruz, Adoração dos Magos, Ascensão e Juízo Final –, que terão sido executadas entre 1827 e o começo da década de 1830 (o que se sabe ao certo é que, devido à doença que o deixou física e mentalmente incapaz, em 1833 Sequeira já não trabalhava e que o óleo do Juízo, o último, está inacabado). As obras foram compradas por D. Pedro de Sousa Holstein, duque de Palmela, à filha do artista, em 1845, e estão ainda hoje nas mãos dos seus descendentes (estiveram todas no MNAA na última exposição ali dedicada ao artista, em 1997).
“Começa aqui a compra das quatro”, brinca Pimentel, sem deixar de sublinhar que basta que cada português contribua com seis cêntimos para que a Adoração passe a ser um privilégio de todos – e não apenas de alguns. “Se tudo correr bem, daqui a seis meses só nos faltarão três.”
Também Alexandra Markl, conservadora de desenho do MNAA e autora de uma tese de doutoramento sobre Sequeira (2013), gostaria de ver toda a “série Palmela” a título permanente nas paredes do museu. Em primeiro lugar, pela qualidade pictórica, em segundo pela coerência que é capaz de imprimir ao discurso da própria colecção. Sequeira é, lembra, um pintor formado na melhor tradição, que vive num tempo de profundas transformações, em que o neoclassicismo está a chegar ao fim, em que os artistas procuram novos caminhos e o romantismo dá os primeiros passos.
“Esta Adoração, tal como a Descida, é uma obra nocturna, com muitas figuras. Tem uma luz mística, intimista, e uma paleta quente. Faz lembrar Rembrandt [pintor holandês do século XVII]”, diz Alexandra Markl. “Ela é um epílogo natural para a história da pintura antiga portuguesa que começamos a contar um pouco antes dos Painéis de S. Vicente. E porquê? Porque ela vem do passado mas está à procura de algo que é inteiramente novo.”
Como se tudo isto não bastasse para justificar a compra da Adoração, Markl lembra que o museu tem já dezenas dos desenhos preparatórios e os quatro cartões da série (estudos finais para as pinturas), resgatados dos cofres do Montepio de Roma, em 1859, pelo marquês de Sousa Holstein (1838-1878), filho do primeiro duque de Palmela e autor de uma biografia, possivelmente inacabada e hoje desaparecida, de Sequeira. Quando a colecção da família foi a leilão, 20 anos mais tarde, estes cartões foram comprados para a Real Academia de Belas-Artes, integrando depois o acervo do MNAA. “Estes cartões provam que Sequeira era um mestre do desenho, muitíssimo ousado e inovador. Provam também que o tratamento da luz tem uma importância absolutamente central na sua produção, sobretudo nos trabalhos finais.”
Desenhador exímio, pintor talentoso, Domingos Sequeira fez a sua formação em Portugal e em Itália, trabalhou para príncipes, aristocratas e burgueses, e chegou a pintor régio, no meio de um percurso tantas vezes conturbado que incluiu um breve período de vida monástica, acusações de colaboracionismo (com os franceses das Invasões) e até a prisão, na noite de Natal de 1808. Liberal entusiasta, acabou por optar pelo exílio em 1823, vivendo em Paris os três anos seguintes e em Roma, que conhecia bem como estudante de pintura, a última década de vida. Controverso, impulsivo e pouco disciplinado quando se tratava de ensinar – assim o descreve Markl – Sequeira trabalha muito, procurando sempre aperfeiçoar-se e, nos últimos anos em Roma, entrando no debate sobre o futuro da pintura a que a comunidade artística se dedicava.
“O bom Domingos Sequeira é certamente dos bons pintores da Europa do seu tempo”, defende Pimentel, citando como obras de referência, além da Adoração dos Magos e das restantes da “série Palmela”, o Retrato da família do 1.º Visconde de Santarém ou os do conde de Farrobo e de João Baptista Verde, amigo e cunhado do artista.
O “capital simbólico” desta Adoração dos Magos, precisa Raquel Henriques da Silva, prende-se com a importância do seu autor para a história da arte portuguesa e com as características da própria pintura, e prende-se também com as circunstâncias da sua aquisição no século XIX e com o lugar que ocupa no percurso de Domingos Sequeira. “É uma obra de uma qualidade pictórica absolutamente extraordinária. O acerto entre o tema e a sua execução é primoroso, com as figuras a dissolverem-se sob a acção da luz. É de uma grande modernidade, transformadora, e foi comprada para uma colecção que fez história na arte portuguesa, a dos Palmela.” A modernidade a que se refere tem como referente, no passado, Rembrandt, e, no tempo de Sequeira, William Turner (1775-1851). Tal como Francisco de Goya (1746-1828), diz Raquel Henriques da Silva, Sequeira passou de artista do Antigo Regime a pintor da revolução, viveu uma guerra civil, foi perseguido e emigrou por motivos políticos. “Nos tempos que vivemos hoje, a história do Sequeira é fácil de passar, mesmo a um público que não o conheça e que não morre por isso. É uma boa altura para falar nele e esta campanha é também uma oportunidade de levar as pessoas a descobrirem uma obra que vale mesmo a pena, de que se podem orgulhar.” A professora universitária lembra ainda que acções deste tipo, até aqui inéditas em Portugal, são prática comum noutros países e defende que o envolvimento dos cidadãos deve vir depois da intervenção do próprio Estado: “Quando falamos da possibilidade de comprar para Arte Antiga um tesouro como este, o Estado deve dar o exemplo e dar o exemplo significa ser o primeiro subscritor da campanha. Dar o exemplo não é chegar no fim e, caso a campanha tenha ficado aquém do objectivo, pôr o dinheiro que falta.” Acrescenta esta académica que, por princípio, a participação estatal não deve ser inferior a um terço do custo da obra a adquirir. “Um terço é o mínimo, sem isso não há credibilidade, não há como o Estado esperar que o comum dos cidadãos faça da compra de uma pintura de um artista de quem até poderá nunca ter ouvido falar uma causa sua.” O que tem acontecido nos últimos tempos, é que, sem uma estratégia de aquisições, a Secretaria de Estado da Cultura (SEC) tem reagido ao mercado sempre em cima da hora. Ainda que reconheça que, apesar de tudo, tem feito algumas compras, houve pelo menos um caso em que “acordou tarde de mais”: O Almoço do Trolha, de Júlio Pomar, ícone da pintura neo-realista portuguesa, que foi leiloada em Maio por 350 mil euros e que agora faz parte da colecção do Centro de Arte Manuel de Brito, “em vez de estar no Museu do Chiado”.
João Fernandes, director-adjunto do Museu Rainha Sofia, em Madrid, classifica a campanha para a compra da Adoração como uma "iniciativa interessante de cidadania" mas, tal como José Luís Porfírio, crítico e antigo director do MNAA, alerta para o facto de ela não isentar o Estado de assumir as suas responsabilidades. “O ónus não pode recair apenas sobre os cidadãos e a participação do Estado é um indicador de que a obra vale a pena”, diz Fernandes, que dirigiu o Museu de Serralves, no Porto, e que é uma das figuras públicas que participam nos vídeos da campanha, a par do artista plástico Julião Sarmento ou da fadista Carminho. Se deve pôr uma verba à disposição do museu à cabeça ou chegar no fim da campanha “é indiferente, desde que participe”.
António Filipe Pimentel não avança detalhes sobre uma eventual participação da SEC na aquisição da pintura, mas garante que “a tutela está a fazer um esforço” e lembra que, apesar das enormes contingências orçamentais, as compras para os museus portugueses aumentaram a partir de 2012 e já contemplaram, mais do que uma vez, o MNAA, embora com obras longe do valor desta Adoração (o Tríptico de Santa Clara, 30 mil euros; uma papeleira do século XVIII, 20 mil; e uma pintura do maneirista espanhol Francisco Venegas, 22 mil).
Optimista, uma vez mais, Pimentel acredita que, no final, muitos mais conhecerão Sequeira e que a resposta dos portugueses ao repto “seja mecenas por um euro ou por 100 mil” vai ser adequada à importância da Adoração. “Temos de ser nós, todos nós, a fazer dos museus lugares onde vale a pena ir, onde vale a pena estar. E a boa pintura, uma obra-prima como esta, torna os museus melhores.”
Adoração dos Magos de Domingos Sequeira. |
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