16/02/2015

O sintoma grego para um novo espaço político na Europa

O filósofo italiano Antonio Negri, autor de uma extensa e muito influente obra de filosofia política, nomeadamente de três livros de enorme repercussão que escreveu com Michael Hardt (Empire, Multitude e Commonwealth), esteve em Lisboa para um seminário na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, a convite do Instituto de História de Arte Contemporânea, e participou num outro seminário organizado pela Unipop, no Hospital Júlio de Matos, no âmbito de um projecto de exposição de trabalhos artísticos e de investigação, coordenado por Paulo Mendes e Emília Tavares: O Tempo e o Modo – Para Um Retrato da Pobreza em Portugal.
Conversámos com ele dois dias antes das eleições na Grécia. A crise grega, o surgimento do movimento Syriza e a sua implantação, o desafio e a novidade política que ele representa, quando já era previsível a sua vitória nas eleições, foram o principal tema da conversa que se segue e sobre o qual Antonio Negri tem intervindo publicamente em várias ocasiões, sobretudo através de artigos em revistas e em volumes colectivos (por exemplo, Le Symptôma grec, Éditions Lignes, 2014; um livro cuja ficha técnica diz “Imprimé en Europe”). O nome de Negri não consta no entanto de um apelo muito difundido, assinado por nomes importantes de escritores, filósofos e intelectuais europeus e americanos, publicado no Libération a 21 de Fevereiro de 2012. Chamava-se esse apelo, da iniciativa da revista grega Aletheia, e à qual se associou a revista francesa Lignes (cf. Lignes 39, “Le devenir grec de l’ Europe néolibérale”, Outubro de 2012), “Salvemos o povo grego dos seus salvadores”.
Sobre o que estava em jogo nessas eleições Negri é peremptório: “Há a fortíssima pressão de uma dinâmica interna da União Europeia, mas há também uma situação nova: o facto de o movimento vitorioso não querer que a Grécia saia da Europa. Não se trata da velha esquerda completamente fechada, bloqueada no antieuropeísmo. Há, portanto, forças no interior da Europa que decidiram iniciar uma luta democrática para mudar a política europeia.” Na medida em que representa a esquerda na Europa e não contra a Europa, o Syriza, tal como o Podemos, em Espanha (mas Negri tem o cuidado de não assimilar um ao outro, de sublinhar que se distinguem tanto no plano da cultura política, como na história de cada um deles), já nada tem a ver com as velhas organizações comunistas e introduz uma ruptura com “o extremismo do centro”, que Negri define desta maneira: “Há uma esquerda social-democrata, em toda a Europa, que se tornou completamente centrista. São partidos que fizeram alianças com a direita e cuja política passou a ser de centro-direita, capturando a social-democracia.” Deste ponto de vista, a importância do Syriza consistiria na possibilidade que ele oferece por enquanto – em nenhum momento Negri lhe passa cheques em branco – de ser uma nova figura de organização política, dotada de uma dimensão crítica, não fechada no pensamento único económico e capaz de resgatar a social-democracia ao “extremismo do centro” que representa, há muitos anos, o quadro político de gestão da crise na Europa. Reconstruir, hoje, uma hipótese social-democrata, como diz ser a tarefa do Syriza e do Podemos, significa “definir um projecto reformista capaz de enfrentar a crise bem patente de uma social-democracia caracterizada nos seus termos tradicionais, tendo em conta as transformações profundas que atravessam tanto o capital como o trabalho”. No actual contexto europeu, apresentar um programa próximo de princípios da social-democracia (como é, diz Negri, o programa do Syriza) já é uma aventura política que merece a classificação de “radical”. A ocasião que se apresenta hoje na Grécia e poderá apresentar-se ainda este ano em Espanha é a da “abertura de espaços políticos novos na Europa”, algo que até há pouco estava completamente bloqueado. Mas Negri coloca essa possibilidade sob condições: “É preciso que a afirmação eleitoral do Syriza não se transforme imediatamente, como tantas vezes aconteceu na história da esquerda, numa cristalização.” Dito de outro modo, é preciso que todo o sucesso dê lugar a um movimento expansivo, ou, na linguagem conceptual de Negri, inaugure “um processo constituinte” – o que significa que não é o resultado eleitoral que representa, em si mesmo, uma “vitória”. Antonio Negri tem sido, em várias ocasiões, um crítico do partido enquanto forma de representação (ele é manifestamente inadequado para as novas formas de construção do “comum”) e, por conseguinte, entende que há limites a ultrapassar que um partido, qualquer que ele seja, jamais conseguirá. Daí, esta reivindicação que encontramos num dos seus textos: “Aquilo de que precisamos é de uma atitude ‘experimental’, de abertura visando a construção e a consolidação de uma nova trama de contrapoderes, de novas instituições, de experiências de auto-organização social.” É a isto, que é em suma a construção do comum, que ele chama um “programa constituinte”. Na sua perspectiva, nada se pode resolver pela simples reivindicação de uma “soberania nacional”. O seu contributo para o volume colectivo Le Symptôma grec (que nasceu, aliás, de um colóquio na Universidade Paris-8, em Janeiro de 2013) chama-se “Do fim das esquerdas nacionais aos movimentos subversivos para a Europa”. Aí, começava por afirmar: “Quando se fala de mundialização dos mercados, fala-se também de uma limitação imposta à soberania dos Estados-nação. Na Europa ocidental, o erro essencial das esquerdas nacionais foi o de não compreender que a mundialização era um fenómeno irreversível.” E, num texto recente que assina juntamente com Sandro Mezzadra (disponível no site EuroNomade), "Para uma política das lutas: Syriza, Podemos e Nós", podemos ler: “É evidente que as eleições gregas não serão simplesmente eleições ‘nacionais’ (...), é na realidade o equilíbrio geral das instituições europeias que está aqui em jogo – um equilíbrio que se redefiniu nestes últimos anos pela gestão da crise.” E, mais à frente: “Nestas condições, a partida que o Syriza está prestes a jogar é evidentemente complicada; e, do interior da esquerda europeia e em nome de um pretenso realismo político, as posições que propõem cenários lineares de superação do neoliberalismo e da austeridade através de um regresso à soberania nacional parecem-nos francamente ingénuas.” Voltando a esse texto sobre o fim das esquerdas nacionais, sublinhemos a afirmação de que a esquerda europeia tem sido incapaz de construir uma alternativa ao neoliberalismo, precisamente porque nunca pôs em questão o Estado-nação de maneira consequente e à altura da nova ordem em que vivemos. Lutar contra a crise a um nível europeu, “reabrir uma perspectiva de luta no terreno realista da construção subversiva de uma Europa unida”, eis aquilo a que Antonio Negri apela, tentando contrariar o que tem sido a tendência dominante da esquerda europeia. Sabemos que a propósito da Grécia e do modo como a Europa tem gerido a crise da dívida dos países do Sul já muito se falou em pós-democracia. Um outro filósofo italiano, Giorgio Agamben, numa conferência que proferiu há pouco mais de um ano em Atenas, vai ainda mais longe: “O paradigma governamental dominante na Europa de hoje não só não é democrático como não pode sequer ser considerado político.” E acrescenta: “A sociedade europeia já não é uma sociedade política: é algo totalmente novo para o qual falta ainda uma terminologia apropriada.” Negri faz uma crítica da democracia desde que começou a trabalhar sobre Espinosa, o filósofo que lhe forneceu o conceito de multidão e o conceito de democracia da pluralidade, “a democracia que determina, na pluralidade, as formas que são aquelas em que se constitui a sociedade”. E acrescenta: “É evidente que a democracia hoje já não funciona. E temos de pensar como superar, como ir além desta democracia.” E quanto ao “comum” que os movimentos políticos hoje procuram, em que consiste ele e que “gramática política” constitui? Negri explica: “Por ‘comum’ entendo o seguinte: há hoje uma cooperação social extremamente aprofundada no trabalho, que se tornou, na nossa época, cada vez mais, trabalho intelectual, cognitivo, algo que se realiza na Net, nas redes. Há uma nova realidade que podemos dizer que já é antropológica, na medida em que faz parte do espírito das pessoas, que é o espírito de participação. E isso é absolutamente fundamental na definição do ‘comum’, enquanto estrutura produtiva que se tornou cada vez mais cooperativa, intelectual, cognitiva. Hoje, mesmo os trabalhadores de uma fábrica são trabalhadores cognitivos. O trabalho manual, tradicional e de massa foi empurrado, por exemplo, para a China. Mas aí está-se a dar uma transformação impressionante. Há hoje mais engenheiros na China do que em toda a Europa.” Isto significa obviamente que o discurso dos velhos partidos comunistas chegou ao fim. E que a qualidade social e as características cognitivas da produção, na medida em que permitem aos trabalhadores organizarem de maneira autónoma as suas próprias redes sociais de trabalho, tornam obsoleto e absurdo que se continue a impor as oito horas de trabalho. Diz Negri: “Se ainda perdura esse horário de trabalho, é apenas por uma regra completamente disciplinar e idiota. Por outro lado, afirma, “o direito de cada cidadão a um rendimento mínimo, independente do trabalho e já não entendido como assistência social, vai tornar-se uma questão cada vez mais presente”. O “comum”, tal como Negri o entende, está relacionado com essa “nova antropologia", a revolução em curso que permite a reapropriação daquilo que se produziu – isto é, o novo proletariado já não é massificado e tem autonomia, na medida em que é o conhecimento, a dimensão cognitiva, que constitui parte do “capital fixo”.
Negri
Antonio Negri

Sem comentários:

Enviar um comentário

Comenta as notícias