06/03/2014

"Os Czares e o Oriente" no museu Gulbenkian em Lisboa

No Museu Gulbenkian, em Lisboa, está patente a exposição Os Czares e o Oriente. Ao todo, são 66 os objectos que é possível ver na Galeria de Exposições Temporárias, até 18 de Maio. São quase todas peças de aparato, ou seja que foram criadas para serem usadas em cerimónias oficiais em que a regra era a ostentação. São opulentas, vêem-se à distância e, no entanto, obrigam quem as visita a olhar para o pormenor. São os detalhes que, em primeiro lugar, denunciam a História da Rússia entre os séculos XIV e XVII, o espaço temporal representado nesta selecção de peças. Foi o tempo do Oriente — e por isso o subtítulo da exposição é Ofertas da Turquia e do Irão no Kremlin de Moscovo. Um tempo que, nestes objectos, começa na Horda de Ouro, um dos quatro canatos que sobreviveram à fragmentação do Império Mongol (e o que mais tempo durou). No seu apogeu, a Horda de Ouro integrava a zona europeia da Rússia, o Cazaquistão, a Ucrânia, parte da Bielorrúsia, o Uzbequistão, parte da Sibéria e a Roménia. Era um império extenso em território e intenso nas relações comerciais, e um dos seus vestígios abre esta exposição da Gulbenkian — o oklad (revestimento) do belíssimo ícone da Nossa Senhora do Leite, talvez a peça mais discreta do conjunto que o Kremlin trouxe a Lisboa. O ícone é uma cópia do século XVI de outro anterior, mas o revestimento é o original do século XIV e reflecte a “singular simbiose das culturas da Rússia, do Ocidente e do Oriente” — o ornamento principal do fundo é uma flor em forma de lótus, característica da ornamentação e objectos do Oriente Próximo e Médio e da Ásia Central.
A exposição pode ser dividida em três núcleos: objectos religiosos, militares e têxteis. São os têxteis que fazem a ligação desta exposição temporária à colecção permanente da Gulbenkian. Como explicou o director do Museu, João Castel-Branco, na programação das exposições de curta duração procura-se completar o espólio, dando aos visitantes uma visão mais completa de um período ou de um conjunto artístico. E esta iniciativa com o Kremlin segue essa intenção — a colecção permanente tem objectos deste período e destas regiões — e tem um têxtil muito semelhante a um que veio do Moscovo, o cortinado turco, do século XVII, em veludo lavrado a ouro. Mas o Museu Gulbenkian não tem armas e metais, que estão fortemente representados nesta exposição temporária.
Em expositores amplos, sem fundo, acompanhados de espelhos que jogam com a luz e com os reflexos e tornam a sala de exposições num cofre mágico, podemos ver armas cerimoniais, arreios de cavalos, tecidos luxuosos e peças ricamente ornamentadas com pedras preciosas.
A maior parte do acervo, explica o catálogo, é constituída por objectos oferecidos aos czares pelos xás do Irão e pelos sultões turcos. O intercâmbio regular entre a Rússia e o Irão começa em 1480 — 29 embaixadas iranianas vão à Rússia entre o fim do século XVI e o século XVII. Relações comerciais e interesses territoriais aproximam as duas cortes. Mas como esta é uma exposição de arte, sublinhe-se a raridade de alguns objectos, como os da dinastia timúrida, que no seu apogeu dominava os territórios do Irão, da Arménia, da Ásia Central, da Geórgia, do Iraque.
Artisticamente, este período distinguia-se pela combinação das tradições artísticas da China, do Irão, e da Ásia Central, explicaram os especialistas — olhe-se com atenção para a parte de cima (a que cobre os ombros) do felónio de cetim lavrado originário do Império Otomano e na influência da arte chinesa no bordado.
Já a Rússia e o Império Otomano estabeleceram relações diplomáticas e comerciais praticamente a seguir à formação do Estado turco, no final do século XV. A arte turca está representada através de têxteis, peças militares (sempre de ostentação) — como o elmo de gala embutido a ouro e com inscrições do Corão —, correias de peitorais para enfeitar ricamente os cavalos e armas brancas ornamentadas com pedras preciosas de grandes dimensões.
A conservadora do Museu Gulbenkian Maria Fernanda Passos Leite explicou, na apresentação da exposição, que muitas destas prendas aos czares (que também compravam matéria-prima a estes países) não chegaram todos à corte na forma como as vemos agora. As oficinas reais intervinham nas peças, modificando-as ou fabricando-as. A sela russa do século XVII foi feita nas oficinas do Kremlin usando veludo iraniano. “Os artigos dos mestres turcos não só se tornaram um elemento essencial da vida oficial e quotidiana da corte moscovita, como também tiveram um impacto significativo na actividade das oficinas do Kremlin. Nos inventários do arsenal real são mencionados artigos de armamento fabricados conforme o ‘forjamento turco’ ou decorados segundo a ‘arte turca’”, explica no texto de arranque do catálogo Inna Vishneskaia. “Tinha tudo a ver com a representação do poder do czar. Trata-se de usar a linguagem da ostentação ao serviço do poder”, explicou Olga Mironova, conservadora chefe do Museu do Kremlin. dizendo que a influência oriental na arte e nos objectos do luxo se manteve até tarde na Rússia. O gosto mudou com Pedro o Grande, o czar que impôs o gosto ocidental aos russos e virou a política externa para o campo europeu (também transferiu a capital para São Petersburgo, mais próxima do Ocidente e onde quis criar uma corte mais semelhante ao que vira na Suécia ou na Inglaterra) .
Depois de Pedro o Grande, a ostentação tornou-se mais civil e mais privada — são famosas as jóias da família imperial russa, criadas pelos grandes joalheiros de Londres e Paris com as pedras preciosas compradas pela aristocracia ou oferecidas ao czar. Muitos dos tesouros dessa nova fase desapareceram na sequência da revolução soviética — muitas jóias foram desmontadas e as gemas vendidas para financiar a revolução. A filha do primeiro homem no espaço explicou que, já nessa altura, se percebeu a importância dos tesouros que agora se mostram na Gulbenkian. Nesses ninguém ousou mexer. “Foram sempre do Estado, e foram sempre preservados”.
Ícone de Nossa Senhora do Leite
Ícone de Nossa Senhora do Leite Pintura: Moscovo, séc. XVI Revestimento: Horda de Ouro, séc. XIV

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