O fóssil de Lucy foi descoberto a 24 de Novembro de 1974 pelo famoso paleoantropólogo norte-americano Donald Johnson, no local arqueológico de Hadar. O esqueleto era de uma fêmea adulta com pouco mais de um metro de altura e continha alguns fragmentos do crânio, o maxilar inferior (mandíbula), parte das vértebras e das costelas, a maioria dos ossos dos dois braços, parte da bacia e alguns fragmentos dos ossos das pernas. Cerca de 40% do esqueleto sobreviveu até hoje. Na altura, foi um dos fósseis mais completos de um hominídeo pré-humano. Ou seja, antes do género Homo, que terá surgido há menos de 2,8 milhões de anos.
A explicação de como a evolução humana aconteceu, nos últimos seis milhões de anos, está dependente dos fósseis e dos vestígios como os de Lucy. África é um ponto central nesta investigação. Foi neste continente que despontou primeiro o género Homo e, mais tarde, a nossa espécie, o Homo sapiens.
Entre os hominídeos pré-humanos, como os Ardipithecus e os Australopithecus, e o Homo sapiens, ocorreram uma série de mudanças anatómicas e culturais que são alvo de estudo. A capacidade de caminhar de forma erecta, o uso de utensílios, o desenvolvimento da fala são algumas características-chave que os cientistas pensam ter marcado a nossa evolução. A paleoantropologia tenta compreender como e quando se deram estas transições. A Lucy está numa destas encruzilhadas.
Os fósseis de outros Australopithecus afarensis tinham características antigas como um volume cerebral pequeno, uma crista óssea no crânio e ossos da face projectados para a frente, que os afastavam do género Homo. No entanto, a Lucy apresentava características que ajudaram a compreender a transição entre o estilo de vida arborícola e um estilo de vida bípede. A região pélvica da Lucy é mais parecida com o género Homo e o joelho indica que ela caminhava direita, como nós. Naquela região da África austral, a expansão das savanas nos últimos milhões de anos poderá ter sido um factor importante para o aparecimento deste tipo de locomoção.
Por tudo isto, o esqueleto tornou-se importante. A oportunidade para um novo olhar sobre o fóssil surgiu em 2008 quando a Lucy fez uma tour pelos Estados Unidos e entrou no Laboratório de Tomografia Computacional de Alta Resolução por Raios-X da Universidade do Texas.
Este equipamento é usado para analisar material geológico como rochas. Desta vez, em vez de rochas, analisou fósseis.
As 35.000 novas imagens obrigaram a uma reinterpretação de fracturas dos ossos que até agora tinham sido associadas a processos ocorridos após a morte deste australopiteco. A ponta do úmero direito (osso do antebraço) tem uma fractura que não é costume encontrar-se nos fósseis, preservando uma série de fragmentos de osso afiados que se mantiveram no lugar. Esta fractura compressiva surge quando a mão bate no chão durante uma queda, provocando um choque entre os ossos do ombro. Além do úmero, a equipa identificou fracturas no ombro esquerdo, no tornozelo, no joelho esquerdo, na pélvis e na primeira costela. Segundo os cientistas, a melhor forma de explicar o conjunto de lesões é ter havido uma grande queda. De acordo com o contexto da paisagem local, tudo indica que a queda terá sido de uma árvore.
Segundo John Kappelman, é muito provável que o pequeno australopiteco procurasse alimento e pernoitasse nas árvores, onde estaria em segurança. Há estudos sobre chimpanzés que caem de árvores em que estes primatas batem no chão a uma velocidade de 60 quilómetros por hora. Lucy tinha menos de 30 quilos de peso, pelo que os cientistas calculam que terá caído de uma altura de 12 metros e que atingiu o chão a 56 quilómetros por hora: os pés bateram no chão primeiro, depois as mãos. O fóssil não mostra qualquer vestígio de que as fracturas tenham cicatrizado. Por isso, a morte terá sido quase instantânea.
Yves Coppens foi um dos responsáveis pela expedição em Hadar, onde se descobriram os vestígios do australopiteco, afirmou: “em geral, os primatas arborícolas são habilidosos, ágeis e têm equilíbrio. Depois de 20 anos a observá-los (chimpanzés, gorilas) no seu meio natural, nunca vi tal coisa [uma queda] acontecer”. “Mas a priori não sou hostil a esta tese que, apesar de tudo, é tão válida como outra qualquer, principalmente se o investigador tiver argumentado bem.”
A equipa defende que a queda pode estar relacionada com as adaptações desta espécie ao bipedismo. “As adaptações que facilitaram a locomoção bípede comprometeram as capacidades dos indivíduos de treparem às árvores em segurança; esta combinação de características pode ter predisposto esta espécie a quedas”, lê-se no artigo da Nature. Para a equipa, encontrar traumas semelhantes noutros fósseis poderá ajudar a descortinar o estilo de vida de outros hominídeos.
Nunca vamos saber o que originou a queda de Lucy. Seria preciso estar naquele local, no meio de África, há 3,18 milhões de anos. Mas para John Kappelman, a compreensão de como ela morreu confere uma dimensão dramática a este ícone da paleoantropologia: “Quando me apercebi da extensão dos vários ferimentos, a imagem de Lucy surgiu na minha mente e senti uma empatia súbita que atravessou o espaço e o tempo. A Lucy deixou de ser um simples conjunto de ossos numa caixa e, na sua morte, tornou-se um indivíduo real: um pequeno corpo todo partido, abandonado à beira de uma árvore.”
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O esqueleto de Lucy aqui fotografado na sua visita aos EUA em 2008. |
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O paleoantropólogo John Kappelman. |
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