16/01/2015

A fénix do património colonial

Texto de Walter Rossa
Público 15/01/2015
Quem há 40 anos veio das colónias para a metrópole no âmbito dos processos de descolonização, deixou para trás edifícios herdados, adquiridos, por si erguidos ou feitos erguer. Habitações próprias ou de rendimento, locais comerciais, armazéns, escritórios, fábricas, etc. que corporizavam os espaços do quotidiano familiar, de trabalho e convívio, as suas fortunas, trabalhos e rendimentos. Eram expressão de um profundo enraizamento, paradoxal face à quase súbita decisão de abandono perante sérias ameaças à integridade física. Quem hoje os visita percebe como bairros e cidades foram e estavam a ser construídos por quem nunca pensara “retornar”, mas na esmagadora maioria dos casos o fez numa demonstração cabal da sua situação de colono. A maioria desses patrimónios imobiliários assim subitamente legado aos países que então adquiriam soberania, surgiu em contextos urbanos servidos por processos de planeamento, desenho ou gestão urbana qualificados, e por equipamentos bem concebidos e executados, muitos de elevado nível arquitectónico, adoptando desenho, técnicas e materiais de vanguarda. O ordenamento do território e o planeamento das cidades do 2.º Império Português fez-se com recursos consideráveis sobre espaços com poucas condicionantes edificadas, numa época em que os bons exemplos abundavam e o conhecimento beneficiava de um grande desenvolvimento. Fez-se também segregando, ou mesmo dando como inexistente, a presença esmagadora do “outro”. O Estado Português promoveu as acções de colonização também com a mobilização de técnicos qualificados, criando estruturas de enquadramento e desenvolvimento, provendo a formação adaptada àquelas realidades, etc. Entre a maior liberdade criativa e experimental das iniciativas privadas e uma maior contenção formal da encomenda pública, a arquitectura modernista acabaria por ali atingir um desenvolvimento e especificidades insuspeitas na metrópole e, em alguns aspetos, até na Europa. Compreensivelmente a utopia do Movimento Moderno encontrou ali campo de ação mais livre e fértil. Era, claro, uma utopia para a minoria branca.
De há uns anos para cá tudo isso tem despertado a atenção de grupos de investigadores portugueses, de que apenas refiro quatro responsáveis por trabalhos de equipa: José Manuel Fernandes (pioneiro com vários títulos no âmbito da história da arquitectura), a quem coube coordenar a parte relativa à África Subsariana da “enciclopédia” da Fundação Calouste Gulbenkian Património de Origem Portuguesa no Mundo: arquitectura e urbanismo, dirigida por José Mattoso (2010); Ana Tostões, responsável pelo projecto de que resultou o livro Arquitectura Moderna em África: Angola e Moçambique (2013); Ana Vaz Milheiro, que, além dos textos reunidos em Nos trópicos sem Le Corbusier… (2012), concluiu com a exposição África: visões do Gabinete de Urbanização Colonial (2014) um outro projecto; antes de tudo isso Maria Clara Mendes (a pioneira no que diz respeito ao urbanismo) coordenou um projecto que deu conta d’Os Planos de Urbanização nas Antigas Províncias Ultramarinas, 1934/1974. Entre os resultados mais interessantes destes projectos relevem-se a formação de investigadores e o suscitar da atenção, pois potenciam o desenvolvimento dos estudos.
De um ponto de vista eurocêntrico, o que acima se delimitou é património (cultural) de matriz, origem ou influência portuguesa. Não vale a pena discutir essas três asserções de significados, abrangências e princípios éticos completamente diversos, pois basta-nos a questão do “português”. Faz todo o sentido que as culturas arquitectónica e urbanística portuguesas ali se vejam representadas e desenvolvidas, e que isso seja enaltecido. O que necessariamente desafia sentimentos de perda mal resolvidos, que ganham expressão de cada vez que se verifica a sua destruição, transformação ou mera negligência na sua manutenção. É aí que a “autoridade” crítica encontra obstáculos éticos, pois choca com outros parâmetros da equação que possa classificar esses itens como património cultural. A esmagadora maioria dos naturais não colonos desses territórios viram formar-se todo esse património deliberadamente à margem das suas vidas, mesmo aqueles que foram usados como recursos para a sua concretização, uma vez que depois eram, salvo raras exceções, excluídos da sua fruição. Nuns casos ser-lhes-á indiferente, noutros lembrará um passado de subjugação que não querem lembrar. Raros serão os que nele se revêem nas suas expressões originais. Qualquer uma dessas posições é respeitável e, também ela, património cultural, pois este é, em muito, memória. É por isso que património cultural implica reconhecimento, ou seja, que quem como tal o considere tenha de nele se rever, de o ter integrado no seu mundo com estima. Em última análise o não reconhecimento pelos naturais do valor cultural daqueles bens é, também ele, um legado colonial e por isso deve entrar na equação da sua patrimonialização. Tanto quanto o legado de estruturas urbanas com mecanismos e desenho de segregação racial, grande parte desse edificado subsiste, incluindo alguns majestosos esqueletos de construções que em 1975 estavam em curso. O que não desapareceu durante 40 anos de independência transformou-se por processos muito diversos, de forma desregulada e até anárquica. Foram tempos muito difíceis, de guerra, profundas transições políticas e, essencialmente, sociais. Há já alguns anos que esses processos de adaptação tendem para a estabilização e normalização. No seu seio despontam, reclamando atenção, as estruturas, infraestruturas e equipamentos urbanos e o edificado em geral legados pelo colonialismo. Segundo uma perspectiva global não são, de forma alguma, o que eram; não poderiam ser nem podem voltar a sê-lo.
Legado colonial posteriormente potenciado pela guerra e por um desenvolvimento sem sustentação, são também os musseques ou (conforme o país) os caniços que, agora reconhecidamente, integram as cidades. Foram assentamentos informais desenvolvidos sob a indiferença assumida da governação colonial, mas são também resultado da fuga à guerra e à fome, da desestruturação da assistência pública, da desadaptação do rural ao urbano, das desigualdades, etc. É por tudo isso que, ao invés do património arquitectónico colonial, as comunidades reconhecem-nos como parte das suas identidades. Têm de ser considerados como integrando a cidade, com os seus problemas e características, e não algo à parte uma vez mais excluível na chave da sua equação para o desenvolvimento sustentável.
Como portugueses podemos considerar que, do ponto de vista do património urbanístico e arquitectónico, esse processo de 40 anos conduziu e continua a levar a perdas culturais irreparáveis, ou então que induz um potencial de valorização a explorar. Será, decerto, mais sensato e operativo enveredar pela segunda hipótese, e aceitar que só com a integração nesses bens de alterações decorrentes da sua utilização por uma nova sociedade, esta poderá gerar condições de neles se rever e de assim os aceitar como seu património cultural. No fundo é essa a lição da história de qualquer comunidade com identidade e soberanias consolidadas, é essa a lição da formação e desenvolvimento de Portugal no início e nos momentos mais críticos da sua história. São processos de antropofagia cultural que, quando bem sucedidos, acabam por se revelar integradores e enriquecedores.
Por muito que possa custar o facto em si, deve encarar-se com naturalidade a destruição, transformação ou adaptação de bens nos quais nos revemos, mas que de pleno direito são de outros que, por razões já aduzidas, não lhes têm estima. Nos casos em que tal possa estar ao alcance, isso deve estimular o desenvolvimento do conhecimento e a sua divulgação, por forma a que as decisões sejam enriquecidas e tudo o que se perde, bem como o respectivo processo, fique registado para memória futura. É ainda necessário levar em conta que entre os atores das transformações menos virtuosas estão interesses próximos, alguns deles de clara inspiração neocolonial. Estes processos nunca têm a origem, composição e consistência com que se apresentam…
Alberto Soeiro
Edifício TAP (ou Montepio de Moçambique), Maputo, arquitecto Alberto Soeiro, 1960.

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