08/05/2015

Governo interrompeu há mais de um ano negociações directas para regresso do Crivelli

Christopher Marinello,  um dos grandes especialistas mundiais em acordos para a restituição de obras de arte perdidas, roubadas ou saqueadas, não revela o paradeiro de “Virgem com o Menino e Santos”, uma pintura datada de 1487 e de valor estimado acima de cinco milhões de dólares (4,4 milhões de euros). No entanto, ao longo de várias conversas revela detalhadamente inúmeros passos de um caso que diz ter estado já a ponto de se resolver e que afirma que provavelmente só não se resolveu ainda por falta de resposta do Governo português.
Foi em Julho de 2013 que Jorge Barreto Xavier, o actual titular da pasta da Cultura, anunciou ter revogado a autorização de venda atribuída por Francisco José Viegas, o seu antecessor do mesmo XIX Governo Constitucional. Supostamente, a revogação teria efeitos retroactivos e visaria o regresso da pintura ao país. O anúncio da revogação foi feito na Assembleia da República e desde então que a SEC alega estar a tentar reaver a obra. A 14 de Abril último foi o que alegou perante o Supremo Tribunal de Justiça por forma a continuar a manter em segredo a documentação relativa ao caso. Já na versão de Marinello as diligências pelo retorno da obra foram interrompidas há quase um ano e meio. Marinello diz que “houve um momento em que estava preparado para devolver o quadro a Portugal” mas que desde Janeiro de 2014 que as autoridades portuguesas não dão sequer resposta às suas múltiplas tentativas de contacto. Segundo o negociador inglês, “nos últimos 16 meses” as autoridades portuguesas “ignoraram pelo menos 18 cartas e emails” – uma média de mais de um contacto por mês deixado por responder.
Marinello não esclarece quem detém neste momento a titularidade da obra. Numa conversa inicial aponta “uma colecção privada”. Posteriormente dirá apenas que a pintura “já teve mais de um proprietário” desde que deixou Portugal e que a sua empresa representa “várias partes”. Não explica se “várias partes” numa cadeia de interesses projectada no futuro – com actuais proprietários e novos candidatos à titularidade – se “várias partes” numa cadeia de interesses relativa ao passado – com actuais e anteriores proprietários. Marinello esclarece apenas que Pais do Amaral não está entre os seus clientes – “tem o seu próprio representante”. O negociador inglês não comenta também os pontos de passagem internacionais da obra ao longo dos últimos dois anos. Um percurso que começou em Paris, no antiquário Jean-François Heim, e levando depois a Londres e, por fim, aos Estados Unidos. Sobretudo, Marinello não avança qual o montante pedido pelos actuais proprietários ao Governo português pela devolução da obra. Confirma apenas que o valor do Crivelli aumentou desde que deixou as mãos de Pais do Amaral.
Tanto quanto se sabe, Pais do Amaral teve uma oferta de compra de cinco milhões de dólares (4,4 milhões de euros, ao câmbio actual). Segundo Marinello, a revalorização da pintura com 1,62 metros de altura por 1,07 metros de lado deve-se em parte a um processo de restauro oneroso e complexo.
Mas o dinheiro “não é a questão fundamental”, sublinha o negociador: “Ninguém esperava que o Estado [português] pagasse esta pintura num momento [de crise] como o que atravessa.”
Segundo o negociador, a 18 de Dezembro de 2013, a reunião no escritório de Isabel Cordeiro deu-se por concluída com “uma excelente proposta em que os desejos das autoridades portuguesas seriam respeitados, tal como os direitos dos proprietários” que “de boa-fé” haviam investido na aquisição da peça. Um mês depois, a 16 de Janeiro do novo ano, houve ainda contactos sobre a base do acordo: a criação de um colégio de patronos que colectivamente comprariam a pintura para o Estado português. Depois, nada. “[Os responsáveis da DGPC] disseram-nos que a proposta iria ser entregue à Secretaria de Estado da Cultura”, explica Marinello. Que esperou até Março para voltar a contactar as autoridades portuguesas. Nessa altura, a DGPC tinha já novo responsável.
No princípio de Fevereiro, Isabel Cordeiro deixou funções sem voltar a prestar declarações sobre o “caso Crivelli”. Cedeu vez a Nuno Vassallo e Silva à frente da DGPC. Foi já a assistente deste que a 28 de Março fez saber a Marinello que “a proposta estava ainda a ser analisada”.
Contactada, Isabel Cordeiro recusou prestar declarações alegando estar obrigada a reserva e esclarecendo que não fará quaisquer comentários sobre o caso enquanto o “dossier” não for aberto e feito público. As mesmas perguntas enviadas à SEC foram também enviadas à DGPC, que não lhes deu qualquer resposta.
Acima de Vassallo e Silva, já da parte da Secretaria de Estado da Cultura, o negociador inglês afirma ter sido informado de que “faltava ‘follow up’”.
“Resposta, zero”, diz Marinello. E é assim, sem resposta, que afirma que os actuais proprietários da “Virgem portuguesa” foram deixados desde então pelo Governo português. Uma situação “contrária aos interesses da população portuguesa”.
Afirmando não perceber quais as actuais intenções das autoridades portuguesas, Marinello define como “pouco escrupulosa” a “falta de comunicação em nome da Secretaria de Estado da Cultura”.
“O Estado português nunca reclamou formalmente a devolução da obra, mas também nunca retirou a reclamação informal” constante na carta de Dezembro de 2013, explica o negociador. Por outro lado, “a proliferação de reivindicações infundadas” que Portugal faz sobre a obra “é uma nuvem” sobre o título de propriedade “que é prejudicial” para qualquer proprietário, presente ou futuro. É também “litigável” em tribunal e passível de levar a indeminizações, diz o negociador.
Porque não avançam então os actuais proprietários para uma acção legal? É mais uma pergunta a que Marinello responde apenas indirectamente: explica que mesmo o problema de titularidade dos dois Matisse da família Rosenberg, um dos quais envolvido no complexo “caso Gurlitt”, foi resolvido extrajudicialmente.
Foi resolvido a favor dos clientes de Marinello – apesar de a lei norueguesa, aplicável num dos casos, lhes ser contrária.
A resolução extrajudicial é a especialidade deste negociador que numa entrevista a um jornal italiano sobre o “caso Gurlitt” explicou: “Não há nada mais caro, demorado e prejudicial à reputação […] do que uma litigação.”
Virgem com o menino e os Santos
Marinello com o Crivelli já restaurado, a primeira fotografia pública do quadro de que antes havia apenas reproduções.

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