18/01/2017

Uma visita ao Convento do Carmo através de um novo livro

É a ruína mais cenográfica de Lisboa, postal da cidade, palco de acontecimentos decisivos da história recente e, ao mesmo tempo, quase um segredo. O Convento de Santa Maria do Carmo, construído na colina frente ao Castelo de São Jorge e casa ligada a Nuno Álvares Pereira, herói do Portugal medieval, tem novo livro.
Célia Nunes Pereira, conservadora do Museu Arqueológico do Carmo, ali instalado desde 1864, andou pelas bibliotecas e arquivos de várias entidades à procura de documentos que lhe permitissem fazer a reconstituição arquitectónica e artística deste monumento nacional, desde a sua fundação, em 1389, até ao violentíssimo terramoto de 1755, que o destruiu quase por completo.
Desse trabalho de investigação, que deu origem a uma tese de mestrado e à recente publicação de A Igreja e o Convento de Santa Maria do Carmo de Lisboa (ed. Associação dos Arqueólogos Portugueses), resulta uma espécie de percurso virtual que exige do leitor – e do visitante, já que o ideal é combinar livro e monumento – algum talento para recriar.
É preciso, desde logo, imaginar um tecto a cobrir as naves da igreja e altares em talha dourada nas 25 capelas carregadas de pintura e ourivesaria que o convento teve entre os séculos XV e XVIII; é preciso imaginar as cerimónias religiosas de uma comunidade carmelita que se habituou a contar com os favores da coroa e da nobreza, mas que foi perdendo frades e poder.
Se quisermos levar mais longe o exercício que constrói esta ficção informada e trazê-lo até aos séculos XIX e XX, teremos também de ali instalar os cavalos que pertenciam à Guarda Real da Polícia, a força militar que viria a dar origem à actual Guarda Nacional Republicana. E isto sem esquecer que, boa parte do espaço agora ocupado pelo museu, incluindo a capela-mor, servia de palheiro e de estrumeira.
A construção do convento, que tinha em volta campos de cultivo que abarcavam o que é hoje o Rossio, teve muitos percalços. O edifício ruiu duas vezes quando estava a ser feito e que foi preciso que Nuno Álvares Pereira (1360-1431) contratasse dois mestres de obras judeus para que se descobrisse uma forma de lidar com a instabilidade do terreno na colina, que insistia em ceder sob o peso da pedra. A igreja sofreu profundas alterações na decoração entre 1523 e 1537 e também depois da restauração da independência (1640), época em que os conventos carmelitas foram ampliados. No século XVIII seria ainda dedicada a Nossa Senhora do Carmo e há até um inventário das jóias e vestidos que pertencia à imagem da santa que, naturalmente, ocupava lugar de destaque na capela-mor.
As principais fontes usadas no livro são um manuscrito de 1721, de Frei Manuel de Sá, e os dois volumes de crónicas deixados por Frei José Pereira de Santa Ana, de 1745, ambos membros daquela congregação (a primeira destas fontes é integralmente reproduzida em fac-símile nesta edição).
As crónicas carmelitas estavam publicadas, mas o manuscrito iluminado de Frei Manuel de Sá, que a autora levou uma semana a transcrever, permaneceu fechado num cofre (onde ainda está) durante anos sem que ninguém olhasse para ele. As circunstâncias que levaram o Estado a comprá-lo há dez anos num leilão são descritas pelo actual presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP), José Morais Arnaud, no prefácio de A Igreja e o Convento de Santa Maria do Carmo de Lisboa. Este documento valiosíssimo para reconstituir a história do convento faz hoje parte da colecção da Biblioteca Nacional de Portugal. Neste manuscrito Frei Manuel de Sá descreve detalhadamente cada capela e chega a desenhar pormenores e até um altar inteiro. Muitas das peças estão em museus. Os escritos de Manuel de Sá tornaram mais acessível a tarefa de identificar os artistas que ao longo de séculos foram chamados a contribuir para o enriquecimento deste templo. Estão entre os melhores que havia no país, no maneirismo e no barroco. Sendo uma das igrejas mais acarinhadas de Lisboa, por causa de Nuno Álvares Pereira, tinha muitos benfeitores e eles competiam entre si pelos melhores pintores quando se tratava de decorar a capela de que eram mecenas. Bento Coelho da Silveira, Simão Rodrigues, Domingos Vieira Serrão, Marcos da Cruz ou André Reinoso são alguns destes pintores.
De acordo com um outro manuscrito impresso do arquivo da Ordem Terceira, chegou até a haver uma escultura de Miguel Ângelo, um Cristo crucificado(informação que não é possível confirmar).
Em 1755, a irmandade carmelita tinha 105 frades, 14 morreram no terramoto de 1755. Naquele trágico dia de Novembro, a igreja estava cheia. Depois do sismo, ficaram de pé apenas a zona cabeceira, embora o tecto da capela-mor tenha ruído, a fachada e parte das paredes norte e sul. A destruição foi enorme porque, a seguir ao terramoto propriamente dito, houve, como aconteceu em tantos outros sítios espalhados pela cidade, um incêndio que consumiu praticamente todo o recheio. Os frades começaram logo a reconstruir  os arcos, a capela-mor. Os trabalhos arrancaram em 1756, mas a falta de dinheiro deixa-os por acabar, vindo a ser abandonados em definitivo depois de 1834, ano da extinção das ordens religiosas em Portugal. Isto porque, à reacção contra a Igreja, veio juntar-se o gosto romântico pela ruína e pelos grandes monumentos medievais que marca o século XIX. Foi nessa altura, aliás, que chegou a ser desenhado um plano de reconstrução que previa a instalação de uma cobertura de ferro e vidro.
O museu do Carmo, o primeiro de arte e arqueologia do país, foi criado em 1864 por Possidónio da Silva. Arquitecto da família real portuguesa, este primeiro presidente da aReal Associação dos Arquitectos Civis e Arqueólogos Portugueses viajava intensamente pelo país e usou toda a sua influência para proteger o património nacional, que sentia estar fortemente ameaçado, primeiro pela extinção das ordens religiosas e, depois, pelas invasões francesas e pelas lutas liberais que se seguiram.
Hoje o Carmo tem na sua colecção muitas peças por ele reunidas e outras que foi recebendo ao longo de décadas. Quem entra e percorre as salas encontra túmulos – o de Maria Ana da Áustria (século XVIII) impressiona pelo tamanho, mas é o de D. Fernando I (século XIV) que fascina. Colecções de arqueologia que começam na Pré-História, múmias peruanas do século XVI e arte contemporânea.
Cruzando as fontes documentais disponíveis, e contando com o acompanhamento do historiador de arte Vítor Serrão, seu orientador, a conservadora do Carmo foi identificando peças e documentos que pertenceram àquela igreja e àquele convento carmelita em colecções públicas (nestas muitas já se sabia de onde vinham) e privadas. A antiga capela de Santa Ana e São Joaquim, por exemplo, está no velho Convento de Colares, hoje uma quinta particular, casa a que o Carmo a doou no século XVIII, com talha, pintura e imagens; o arquivo carmelita está agora em boa parte na Igreja do Loreto, no Largo do Chiado; uma imagem de Nossa Senhora da Piedade (século XIV-XV) e outra de Santo Elias (século XVIII) estão na Capela da Ordem Terceira do Carmo, gerida por uma comunidade de leigos ali bem perto; as pinturas Santa Maria Madalena de Pazzi Coroada de Espinhos (XVII), de Bento Coelho da Silveira, Santa Catarina e os Doutores (XVII), de André Reinoso, e Nossa Senhora do Rosário, de Vieira Lusitano, integram a colecção do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa; duas jóias do século XVIII ligadas à imagem da Senhora do Carmo da capela-mor estão hoje confiadas ao Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto.
Quem lê o que escreveu, por exemplo, Siro Ulperni, um forasteiro do século XVII que passa por Lisboa e descreve a festa de canonização de Madalena de Pazzi, quase acredita que quem vê a igreja se torna automaticamente devoto pela beleza disto tudo. 
Ao longo de quatro anos de trabalho de investigação, Célia Nunes Pereira localizou 96 peças do espólio do Carmo (pintura, escultura e ourivesaria) e neste livro publica cerca de 30, muitas ao longo das 40 páginas que dedica à reconstituição das desaparecidas capelas da igreja, detalhando, tanto quanto possível, o recheio de cada uma.
Ruínas do Convento do Carmo
Ruínas do convento do Carmo.

Convento do Carmo túmulo de D. Fernando I
Túmulo de D. Fernando I (pormenor).

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